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DESIGUAL!  

IDENTIDADES E IDENTIFICAÇÕES NA PÓLIS E NA ANÁLISE

2018

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Editora: ANGÉLICA BASTOS

Editorial

Angela C. Bernardes

Desigual! Identidades e identificações na pólis e na análise

A editoria de Latusa lançou um desafio:“interrogar as identificações no fundamento do laço social”. Nossa comunidade respondeu com textos desiguais e fundamentais para continuarmos a elaborar questões candentes nos laços contemporâneos.

A subversão das identidades realizada pelos estudos de gênero e, por outro lado, o movimento de grupos identitários têm colocado psicanalistas do Campo freudiano a trabalho.

Nos anos 1990, Judith Butler,1 como se sabe, formula uma crítica às categorias de identidade. Considera que o feminismo se deparava com um problema político, ao supor que o termo “mulheres” denotasse uma identidade comum. A estratégia política butleriana dá voz aos múltiplos, àqueles que de outro modo estariam socialmente excluídos. A desconstrução da identidade binária de gênero produz a multiplicação das identidades.As caixinhas se ampliaram e, em 2014, o Facebook passou a oferecer 56 opções com as quais um usuário pode marcar seu gênero.

O discurso de gêneros, como o discurso universitário de modo geral, produz um sujeito desidentificado em busca do que possa identificá-lo. Efeito disso ou não, assistimos hoje a uma expansão das reivindicações identitárias: direito das mulheres, das minorias etc. Os artigos aqui publicados permitirão destacar aspectos positivos – de transformação política – e negativos – de segregação – dessa tendência atual.

Os artigos de Stella Jimenez, Marcia Zucchi, Ondina Machado e Mirta Zbrun permitem aprofundar o conceito de identificação em Freud e Lacan e nos ajudam a avançar na reflexão sobre as afirmações identitárias. Stella diferencia identificação e identidade, lembrando que a identificação sempre deixa um resto. Por isso, como mostra Ondina Machado, não existe identificação total e o sujeito não é idêntico a si mesmo.

Freud lança mão da noção de identificação desde os primórdios da psica- nálise, inicialmente como fator importante na formação do sintoma histérico.

Anos mais tarde, em Luto e melancolia,2 entende a posição melancólica pela identificação narcísica com o objeto perdido, fazendo obstáculo ao luto do objeto. Somente nos anos 1920, em seu estudo sobre a psicologia das massas,3 todo um capítulo sobre a identificação vem situá-la como constitutiva não somente deste ou daquele sintoma, mas também do próprio eu.

A experiência da análise promove uma queda nas identificações na medida em que o sujeito se depara com a inconsistência do Outro, no qual elas se apoiam. Podemos aqui acompanhar a experiência de Sérgio Laia nesse sentido. Seu relato de passe mostra como seu recurso histórico aos nomes para suprir o que chamou de “falta de legado paterno” deu lugar, a partir da análise, à possibilidade inédita de “tampar a dimensão real da ex-stência não com identificações ou nomes, mas com um furo”. Já Fabián Fajnwaks, em seu relato aqui publicado, refere-se ao sintagma milleriano “identidade sinthomal”4 e pergunta se haveria uma “identidade” produzida em análise, para além das identificações que se desfizeram. Um e outro nos ensinam algo sobre o destino das identificações no percurso de uma análise.

A condução de uma psicanálise visa ao que há de singular em cada um e mesmo ao que “em mim é de mim tão desigual”,5 como canta o poeta. Ainda assim, haveria, segundo Marcus André Vieira em seu Turba e turbantes, um in- teresse político, compatível com a orientação da psicanálise, na inscrição em uma classe, no particular de um grupo identitário. Ele sustenta isso a partir do papel desempenhado pela carta de Marielle Franco aos “Bastardos da PUC”. Nessa linha, o texto de Marcia Zucchi coloca em tensão a política afirmativa das identidades e a política psicanalítica do sintoma, e toma o partido de uma prática da psicanálise em extensão que possa fazer valer o mais próprio do co- letivo, assim como a psicanálise em intensão visa ao mais singular de um sujeito. Ainda nessa temática, Marícia Ciscato nos fala da resistência desses grupos – negros, LGBTQ, mulheres etc. – como “oásis no deserto político em que vi- vemos”. Considera que o desafio do psicanalista na pólis é o de interligá-los contra o risco de “guetificá-los”. Clarisse Boechat aborda essa questão a partir de sua experiência de trabalho com populações de rua. Experiência que oferece um inusitado panorama dos diferentes modos de vida e de gozo.

Matheusa, com seu corpo estranho, foi brutalmente assassinada este ano numa favela do Rio. Renata Estrella faz uma leitura de sua obra interrompida. Tal qual o narrador de O homem da multidão, de Edgar Allan Poe, Renata quer observar a passagem de Matheus, Matheusa, Theusinha pela cidade: corpo em busca de uma escritura.

Num extenso artigo em parceria com Paulo Vidal, Flávia Bonfim pensa nas práticas de experimentação sexuais – poliamores?– como respostas atuais ao impossível da relação sexual. Interessa-se em particular pela nomeação de

“bissexual” como identidade.Ao contrário de Matheusa, que ao que parece era ciente da impossível identidade com o corpo, algumas experiências sexuais contemporâneas parecem querer se inscrever como identitárias.

Júlia Reis, em coautoria com Márcia Rosa, aborda a questão da identificação imaginária com o significante “toxicômano” por consumidores de drogas em tempos de declínio do pai. Antonio Almeida também interpreta como efeito do declínio da função do pai o que ele localiza como um estado de indiferença que se alastra. Serve-se do romance Submissão, de Michel Houellebecq, para desenvolver sua hipótese.

Agradecemos a todos os colegas que enviaram seus textos para Latusa, a Isabel Lins pela delicada resenha do livro de Maria Silvia Hanna, a Sérgio Laia pelo registro de seu testemunho de passe e aos colegas da AMP François Ansermet, Fabián Fajnwaks e Éric Laurent, que cederam seus artigos aqui traduzidos. Ansermet, em seu artigo sumamente clínico sobre os momentos de crise, lança a aposta de aproveitar-se da crise, da contingência, para inventar o novo.

Em seu tocante artigo sobre Lacan analisante, Éric Laurent nos apresenta o percurso do analisante que “soube afrontar o insuportável da questão feminina para um homem” e, graças à letra, formular o matema para a posição feminina da sexuação.

Angélica Bastos, editora de Latusa, com sua comissão de publicação, fez um belo trabalho, que só será concluído pelo leitor.

Boa leitura!


1 BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. 16a ed.
2  FREUD, S. “Luto e melancolia” (1917). In: Obras completas, vol. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 170–94.
3  FREUD, S.“Psicologia das massas e análise do eu” (1921). In: Obras completas, vol. 15. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13–112.
4  MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan (2007). Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 140.
5  Verso da letra da música O quereres, de CaetanoVeloso.

SUMÁRIO

Editorial

ANGELA  C. BERNARDES

ARTIGOS

Lacan analisante
ÉRIC LAURENT

Turba e turbantes
MARCUS  ANDRÉ VIEIRA

Qual identidade funda o sinthoma?
FABIÁN FAJNWAKS

Algumas considerações sobre a identidade
STELLA  JIMENEZ

A crise e o tempo
FRANÇOIS ANSERMET

No deserto
MARICIA CISCATO

Apontamentos sobre a “identidade” em intensão e em extensão
MARCIA ZUCCHI

O impossível da identificação:identidade ao sinthoma e grupos identitários
ONDINA MACHADO

Identificação e modalidades de gozo da época
MIRTA ZBRUN

A identificação imaginária com o significante “sou toxicômano” e o declínio do amor ao pai
JÚLIA REIS DA SILVA MENDONÇA MÁRCIA ROSA

A contemporaneidade e a erótica da  experimentação
PAULO EDUARDO VIANA VIDAL FLAVIA BONFIM

Pólis de poliamores: uma leitura das ruas
CLARISSE BOECHAT

O horror da (in)diferença
ANTONIO ALBERTO PEIXOTO DE ALMEIDA

Corpos à procura de escrituras
RENATA ESTRELLA

PASSE

Identificar, nomear, furar
SÉRGIO LAIA

RESENHA

Transferência no campo da psicose – uma questão, de Maria Silvia Hanna
MARIA  SABEL  LINS

RESUMOS / ABSTRACTS