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22

LOUCURAS ATUAIS

COMO SE ENLOUQUECE HOJE

2017

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Editora: MARIA INÊS LAMY

Editorial

Angélica Bastos

Loucos, delirantes

Tal como se faz escutar pelo psicanalista, há na loucura algo cambiável. Suas apresentações atuais se impõem antes como enigma que como fato, seja em correlação ao discurso dominante na civilização, seja em função dos

regimes de gozo que nela se articulam, sem excluir – como não poderia deixar de ser – uma insondável decisão do ser.

Recursos inéditos na subjetivação do corpo, circunstâncias inusitadas de desencadear a psicose, de estabilizá-la, mas também formas inauditas de sinthomatizar, de amar ou de ser-para-o-sexo despontam na experiência psicanalítica. Será que deveríamos daí concluir que já não se enlouquece como antigamente? Ou que nos dias de hoje qualquer coisa pode acontecer? Que tudo é possível?

A julgar pelos trabalhos reunidos neste número de Latusa, nem uma coisa nem outra.

Se, conforme afirma Jacques Lacan, o exercício da psicanálise requer da- queles que nele se engajam que a subjetividade da época seja atingida em seu horizonte, os modos atuais de enlouquecimento emergem como um campo de questões urgentes que extrapolam a psicose e o autismo, assim como as loucuras histéricas familiares à clínica freudiana. A loucura concerne “a qual- quer uma das fases pelas quais se realiza mais ou menos, em cada destino, o desenvolvimento dialético do ser humano”.1

Nas páginas que se seguem, as loucuras que nos são contemporâneas exibem tanto diversidade nas formas de eclosão das crises quanto variedade nas respostas sintomáticas, que não poderiam ser suficientemente repertoriadas. Sobretudo, elas atestam que “a estrutura é o real que vem à luz na linguagem”,2 real que admite a contingência mais do que o novo, o qual, conforme sabemos, é provisório e, em nossos dias, dura cada vez menos. Nos aspectos atuais da loucura, não se trata, portanto, de uma evidência ou de uma presença que fale por si mesma.

É próprio do discurso psicanalítico não se tomar pela verdade. Freud reservou ao futuro decidir se a teoria que elaborara acerca da paranoia continha mais delírio do que ele gostaria de reconhecer ou se o delírio de Schreber encerrava mais verdade do que na época seria possível aceitar.As ficções que o delírio e a fantasia engendram na neurose e na psicose possuem um denominador comum: uma perda incontornável e a exigência de posicionamento subjetivo, envolvendo crença, a qual não se confunde com a falsidade do juízo ou o erro. O delírio repousa, por conseguinte, na própria constituição do saber.

Ao situar a loucura como virtualidade inerente ao ser do homem, Jacques Lacan a ela condicionou qualquer compreensão que deste podemos vislumbrar,3 e finalmente asseverou que “todo mundo (se se pode usar semelhante expressão) é louco, isto é, delirante”.4 As consequências extraídas dessa formulação para a prática psicanalítica foram sintetizadas por Jacques-Alain Miller na ex- pressão irônica “clínica universal do delírio”. O adjetivo qualifica a clínica, não o delírio, pois este ‘todos’, o ‘todo mundo’, não comporta universalização, conforme, aliás, sugere o próprio Lacan.

A loucura que nos interessa faz objeção a que a vida seja um sonho no sentido de a psicanálise incorrer em idealismo ou relativismo; ao invés de nos resguardar o sono, ela desperta para um real no cerne da experiência. Esse real não se traduz em abertura infinita de possibilidades, mas em encontro com o impossível.

O número 22 de Latusa é dedicado à loucura em sentido amplo, que não é, entretanto, qualquer uma, uma vez que o dispositivo da análise procura nela destacar um modo singular de gozo.A partir das psicoses ordinárias e do sinthoma, assiste-se à retomada da clínica estrutural e do diagnóstico diferencial, cuja pertinência e alcance são redimensionados e explorados.

As seções nas quais se escandem o presente número da revista não visam classificar os trabalhos em categorias, mas inscrevê-los em uma distribuição que privilegia conexões, vizinhanças e contrastes. As seções são interdependentes, recobrem-se parcialmente, prolongando-se umas nas outras.

Nas psicoses ordinárias ou extraordinárias, maneiras distintas de enlouquecer reclamam acolhida diferenciada e manejo da transferência. O tratamento possível das psicoses relança a psicanálise aplicada à terapêutica em uma clínica das invenções únicas, modestas ou complexas, que vêm enfrentar a desconexão do sujeito ou enganchá-lo no Outro. Na neotransferência, o psicanalista funciona como pivô na articulação dos registros da experiência através do sinthoma.

Marcado pela aliança do discurso da ciência com o discurso do capitalismo neoliberal, o Outro atual revela-se inseparável das redes virtuais com suas injunções e alternativas ao discurso dominante, as quais facilmente redundam em variantes deste último.A profusão de informação prêt-à-porter e a difusão de um savoir vivre promovem uma espécie de higienismo frente à loucura, como, por exemplo, no caso discutido em um artigo e comentado em outro, a loucura das mães.

No discurso analítico fala-se do amor, que é aí quase onipresente. Se, de um lado, ele tece laços, faz parceria, por outro, precipita o sujeito no desvario. Nas parcerias que se produzem, bem como nas rupturas que se interpõem, ele resvala para a loucura, mortifica. Passagem ao ato, luto e, especialmente, a própria análise convocam ao trabalho com o impossível, se o amor – ou sua perda – torna-se enlouquecedor.

Quando a loucura na infância assume a forma do autismo, o Um sozinho prevalece e não cede lugar ao Outro.A questão se desloca da eficácia dos tratamentos preconizados pelo Outro para o trabalho que a criança é capaz de realizar com os objetos em um autotratamento ou em parceria com o analista.

Os sexos trans questionam as dicotomias tradicionais e no terreno da sexuação a diferença se situa além do binarismo. O sintoma transexual e o feminino encontram-se na pauta de discussões.As transformações do Outro contemporâneo evidenciam a insuficiência da chave fálica e da metáfora paterna para regular o gozo, levando a análise a trilhar linhas de tratamento para além do Édipo.

O texto de Débora Rabinovich (EOL/AMP) corresponde a seu testemunho proferido entre nós no seminário Lições do passe em março deste ano. Ela diferencia o “não sei” que suscita sua demanda de análise do “não sei” presente na demanda de passe, o qual participa de um significante novo, seu sinthoma de final de análise.A ela somos gratos pelo testemunho e pelo texto.

Manifestamos nossos agradecimentos aos membros da AMP Araceli Fuentes, Éric Laurent, Hélène Deltombe e Jean-Claude Maleval, que generosamente nos permitiram, com a publicação em Latusa 22, dispor de seus valiosos trabalhos em português.

Agradecemos vivamente aos colegas da EBP/AMP que contribuíram com seus artigos para a existência deste número da revista:Ana Martha Maia, Angela Batista, Christiano Lima, Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna, Lenita Bentes, Marcia Zucchi, Mirta Zbrun, Ondina Machado, Stella Jimenez e Vicente Gaglianone. Agradecemos igualmente os artigos das correspondentes da Seção-Rio Ana Beatriz Freire e Angélica Cantarella Tironi. Graças a Ana Beatriz Rocha Bernat e Marina Sodré (ex-alunas), o ICP-RJ está presente neste número de Latusa. Nosso muito obrigada a Marcia Müller Garcez, que gentilmente colaborou com seu artigo.A Cristina Duba agradecemos a opor- tuna resenha do livro de Maria Lídia Arraes Alencar, Criar e fruir da arte.

Finalmente, a Maria Inês Lamy somos gratos pelo trabalho de editoração de mais um número de Latusa.

 


1 LACAN, J. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 173.
2  LACAN, J. “O aturdido”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 477.
3  Ibid.”
4  LACAN, J.“Transfert à Saint-Denis?”, Ornicar?, n. 17–18, 1979, p. 278. Disponível em http://aejcpp.free.fr/lacan/1978-10-22.htm.Acesso em 15 de outubro de 2017.

SUMÁRIO

Editorial

ANGÉLICA BASTOS

PSICOSES

Capítulos
ARACELI FUENTES

Psicose ordinária e neotransferência
STELLA JIMENEZ

Clínica do diagnóstico diferencial: histeria ou psicose ordinária?
MIRTA ZBRUN

Loucuras atuais: técnicas para montar um corpo
CHRISTIANO LIMA

O sujeito como o guia do tratamento
MARCIA MÜLLER GARCEZ

O OUTRO ATUAL

Como se enlouquece hoje: o museu patológico vivo
LENITA VILLAFAÑE GOMES BENTES

A loucura da atualização
MARCIA ZUCCHI

A loucura materna na blogosfera
MARINA SODRÉ

Vejo-me sendo visto, logo existo
ANGÉLICA CANTARELLA TIRONI

PARCERIAS E LOUCURAS

Algumas notas sobre a loucura e o amor
MARIA SILVIA GARCIA FERNANDEZ HANNA

Um amor que enlouquece
ANGELA BATISTA

Amores e loucuras de futuro
VICENTE MACHADO GAGLIANONE

A incidência da escuta do analistana clínica do luto: do buraco ao vazio
ANA BEATRIZ ROCHA BERNAT

AUTISMO

O traço do autista
ÉRIC  LAURENT

As crianças do Um sozinho – a loucura na infância
ANA  MARTHA MAIA

Arte com psicanálise: considerações a partir dos objetos olhar e voz
ANA  BEATRIZ  FREIRE

SEXUAÇÃO

Da fantasia de mudança de sexo ao sinthoma transexual
JEAN- CLAUDE MALEVAL

O uso do objeto a para a sexuação
HÉLÈNE DELTOMBE

O feminino e a loucura dos gêneros
ONDINA MACHADO

PASSE

DÉBORA RABINOVICH

RESENHA

Arte e psicanálise: os caminhos da criação e fruição da arte à luz da psicanálise. Uma apreciação do livro Criar e fruir da arte, de Maria Lídia Arraes Alencar
CRISTINA  DUBA

RESUMOS / ABSTRACTS