Editora: MARIA INÊS LAMY
Editorial
E se me perguntam o que penso agora,
Digo que não penso, verto.
Transbordo, como dizem os dicionários.
E lembro de pensar. E não verto mais.
Penso. E não escrevo mais. Penso
(Júlia Moura[1])
“No que você está pensando?” – esta é a pergunta que surge a cada vez que se acessa o facebook. A jovem poeta citada na epígrafe, ao se deparar com a demanda do Outro virtual, constata que algo nela transborda e as palavras não dão conta. É bem disso que se trata na adolescência: um transbordamento pulsional que não cabe nas referências conhecidas, já que estas parecem caducas da noite para o dia. Mas, apelando ao dicionário, a jovem mostra que não é o caso talvez de abrir mão totalmente dos velhos vocábulos, mas sim de lhes dar um novo uso. Interessante notar que o ‘penso’ emerge aí tanto como um limite ao que se pode endereçar ao Outro, quanto como um intervalo, possível espaço de invenção. E algo se deposita como escrita, poesia.
Moritz, personagem de “O despertar da primavera”, peça do final do século XIX, parece viver problema semelhante. Diz ele: “Eu folheei a Enciclopédia de A a Z – só palavras, palavras! Nem a mais leve sombra de explicação! Que besteira! Para que serve uma enciclopédia se ela não responde à questão mais importante da vida?”[2] De fato, a pulsão não cabe no dicionário. Também o encontro com o Outro sexo, e a verificação da impossibilidade da relação sexual, não têm lugar no já sabido. As metamorfoses da puberdade trazem com elas uma exigência de trabalho. É preciso inventar outras formas de se haver com os velhos parâmetros, para que eles possam fornecer, não toda a explicação, mas algumas pontuações e margens. Processo difícil, às vezes doloroso, que pode acarretar efeitos trágicos, como no caso de Moritz.
Essas e outras questões são, de modos diversos, debatidas pelos autores de Latusa 21.
No primeiro eixo da revista, sobre as metamorfoses, encontramos textos que discutem as mudanças da puberdade como surpresas, sustos, mal estar com o corpo e o sexual, com as correntes e a correnteza. Isso pode-se dar nas neuroses e, mais ainda, nas vivências psicóticas e na transexualidade. Alguns desses casos, mas não todos, são unplugged, ou seja, correm o risco de se desligarem das redes e do Outro.
Que parceiro conviria ao adolescente de hoje? O Outro anônimo da internet? Na segunda seção de Latusa, verificamos que a escuta dos analistas, longe de banalizar a ligação do adolescente com as redes, tem tentado cernir a consequência, para cada um, do recurso ao mundo virtual. Qual a função do parceiro computador? Notamos o uso alienante da internet como rolha imaginária, que visa tamponar a não relação sexual, mas também, em alguns casos, o apelo ao virtual agindo como recurso necessário à mediação no encontro com o Outro sexo. Lacan diz que os adolescentes não pensariam em fazer amor “sem o despertar de seus sonhos”[3]. Esta afirmação multifacetada aponta tanto para o gozo que desperta, às vezes “como um raio”[4], quanto para o necessário recurso à fantasia, já que os sonhos infantis não dão mais conta. E observamos o apelo à internet nesse entroncamento: como se dá, em cada caso, a articulação entre a pulsão, o virtual, a ficção e a fantasia singular de cada um? As redes ligam-se assim aos temas do amor, do desejo e do gozo. Afinal, é disso que se trata.
Até aí temos “adolescência: metamorfoses e redes”, proposta inicial de Latusa 21. Porém, à medida que os textos chegavam, um terceiro termo se impunha: as ruas. Tanto errantes quanto em movimentos articulados, os adolescentes ocupam as ruas. E, muitas vezes, as redes e as ruas encontram-se, num caminho de mão dupla. O que faz margem, para cada adolescente, em suas andanças? Parece ser esta uma chave fundamental de leitura que orienta a escuta do psicanalista, seja na clínica particular, nas instituições ou na rua.
Também as escolas se apresentaram como lugar preponderante de encontro com os adolescentes. Conversações com estudantes, conduzidas por colegas, revelam o fio que percorre suas elaborações sobre assuntos diversos: o corpo, as drogas, a exposição nas redes sociais, o sexo, a cidade e seus contrastes.
Por fim, a ocupação das escolas.
Latusa 21 tem um quê de rebeldia. Inspirados no tema da adolescência, resolvemos fazer diferente, dando a palavra a uma jovem participante do movimento de ocupação das escolas. E concluímos com a entrevista com Léo Vinicius, sobre manifestações e ocupações. Além disso, em tempos de império das imagens, postamos uma foto. Agradeço aos participantes da Comissão de Publicação, que se dedicaram ao trabalho com juventude, entusiasmo e originalidade.
Diz Lacan que a criança não tem à sua disposição o ato[5]. A adolescência é pois o tempo das escolhas, do ato. Perdendo a ilusão de garantia no Outro parental, o jovem não sabe mais se situar. Esse momento, em que se reabre, para cada sujeito, a questão fundamental sobre seu lugar no mundo, é propício a atos mortíferos e radicais se, para evitar a angústia, o adolescente fizer um curto circuito pelo acting out ou passagem ao ato, num movimento selvagem de separação. Como então o jovem pode ter acesso ao ato, o que pressupõe separação, sem dispensar o Outro de forma radical?
Parecendo tentar responder a essa questão, os estudantes escreveram na parede de uma escola ocupada: “por uma educação que nos ensine a pensar e não a obedecer”. Dão a ler assim, em letras garrafais, que, longe de dispensarem a educação que vem do Outro, querem se ver incluídos nela, mas de uma forma em que a separação se faça presente.
Esse é um bom norte para se pensar a travessia da adolescência.
Por fim, agradeço a todos que colaboraram para esse número de Latusa. Antes de tudo, à editora anterior, Cristina Duba, que se mostrou sempre disposta a escutar e a nos dar assessoria ao longo de todo o trajeto. Alguns colegas da AMP generosamente cederam seus textos: Fabian Fajnwaks, Liliana Cazenave, Philippe Lacadée. Da EBP/BA, Marcelo Veras mais uma vez nos trouxe uma contribuição. A Ação Dobradiça da EBP se fez presente, através da entrevista com Marcus André Vieira. Do ICP temos um texto de Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros. E vários outros colegas da Seção Rio (dentre os quais Ana Martha Maia, Andréa Reis, Cristina Duba, Márcia Zucchi, Mirta Zbrun, Ondina Machado, Stella Jimenez, Vicente Gaglianone) enviaram trabalhos. Além disso, recebemos artigos de psicanalistas, jovens ou experientes, que têm transferência com a EBP e frequentam a Seção Rio. E, ainda, a Diretoria de Cartéis e Intercâmbio nos mandou uma Nota sobre a presença da Oficina de Leitura Ato Zero na Ação Lacaniana. Todos os textos, cada um à sua maneira, trazem contribuições valiosas para se pensar a adolescência.
Boa leitura!
[1] Participante da Oficina Literária Ato Zero, coordenada pelo professor Luiz Guilherme Barbosa, no Colégio Pedro II, Campus Realengo II, no subúrbio do Rio de Janeiro. Em junho de 2016, a Ação Lacaniana (leia mais na Nota da Diretoria), atividade da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio, recebeu o professor e alguns adolescentes da Ato Zero, numa noite em que a vivacidade, eloquência e lucidez dos jovens, além de encantar a todos, teve um efeito de transmissão para os psicanalistas.
[2] Wedekind, F. O despertar da primavera. Tradução de Luiz Antônio Martinez Correa. Inédito.
[3] Lacan, J. “Prefácio ao ‘O despertar da primavera’”. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 557.
[4] Wedekind, F. O despertar da primavera, op. cit. Expressão usada pelo personagem Moritz, ao tentar descrever a primeira ejaculação.
[5] Lacan, J. O seminário, livro 8. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.218.
SUMÁRIO
Editorial
MARIA INÊS LAMY
Com a palavra. Entrevista com Jéssica Lene da Silva
CRISTINA FREDERICO PAULA LEGEY
Ação lacaniana. Encontro com a Oficina Literária Ato Zero
DIRETORIA DE CARTÉIS E INTERCÂMBIO DA EBP-RJ
METAMORFOSES
Transexualidade no pensamento lacaniano
STELLA JIMENEZ
Adolescência e as psicoses
MARCELO VERAS
Adolescência unplugged – sobre o início da psicose
CRISTINA FREDERICO
Sobre a imiscuição no Gide de Lacan
VICENTE MACHADO GAGLIANONE
Duas correntes e uma só correnteza
CLEIDE RODRIGUES MASCHIETTO
REDES, AMOR E GOZO
O parceiro computador
LILIANA CAZENAVE
Amores soterrados
ANDRÉA REIS SANTOS
Sexo na adolescência: as mesmas ou novas crises?
MARCIA ZUCCHI
Do desejo do sonho ao desejo do parlêtre na adolescência
MIRTA ZBRUN
AS MARGENS DA RUA
A rua e os corpos, a violência e as drogas
PHILIPPE LACADÉE
No tempo da ação imediata. Entrevista a Nohemi Brown
MARCUS ANDRÉ VIEIRA
As margens da lei – a construçãode uma história para um adolescente
CRISTINA DUBA
Por que não dancei
ONDINA MACHADO
Notas sobre o uso de drogas na infância e na adolescência
VIVIANE TINOCO MARTINS
NAS REDES DAS ESCOLAS
Sobre metamorfoses e a rede na adolescência: uma conversação inter-disciplinar do Cien
AMANDA NUNES ANA MARTHA MAIA
PIETRO PAOLO MEGA
No fio da piada: conversações com adolescentes de uma escola pública
MARINA SODRÉ
Escolas revisitadas
DINAH KLÈVE
INSTITUTO DE CLÍNICA PSICANALÍTICA
Saída da infância: encontro com o Outro sexo
MARIA DO ROSÁRIO COLLIER DO RÊGO BARROS
PASSE
A relação com o parceiro após o passe: da fantasia ao sinthoma
FABIAN FAJNWAKS
ENTREVISTA
Das manifestações de 2013 às ocupações das escolas. Entrevista com Leo Vinicius Liberato
CRISTINA FREDERICO