Editora: CRISTINA DUBA
Editorial
Um corpo é bem relativo
Romildo do Rêgo Barros
Um corpo, tal como se apresentou a Freud, é relativo. Hoje, já nem tanto…
Isto quer dizer que, em princípio, ele não é nunca, ou quase nunca, um campo de certezas. Há sempre uma dúvida, ou uma imprecisão no trato ou na experiência do corpo, que pode ser entendido como algo que faz fronteira entre o sujeito e a carne. É aliás por essa imprecisão no seu estatuto que os males do corpo puderam ser interpretados.
Lembro de um antigo analisante que me dizia, depois de testemunhar durante alguns dias na UTI de um hospital o sofrimento dos pacientes vizinhos e o seu próprio (ele lembraria para sempre, com uma nitidez quase alucinatória, dos gemidos que vinham de todo os lados durante as noites):
“Sabe o que eu descobri nesses dias? Descobri que a carne dói…”.
Na clínica analítica de outros tempos, a certeza do corpo, como um estado mais ou menos permanente, indicava basicamente uma psicose, como recorda François Ansermet referindo-se ao seminário de Lacan sobre as psicoses. O que terá mudado, a ponto do corpo e de sua certeza serem objetos de abordagens tão diversas e amplas como as que são expostas neste número de Latusa…?
Um corpo é igualmente relativo no sentido literal, isto é, dependente de relações: na experiência especular, assim como nas sucessivas inscrições que se fazem ao longo da vida, ele depende de um consentimento do Outro, que ao mesmo tempo em que legaliza nossos lugares no mundo, nos dá uma identidade imaginária, fundada no corpo.
Um corpo, tal como o definia Lacan no seminário RSI[1],
…é alguma coisa que presumimos que tem funções especificadas nos órgãos, de tal modo que um automóvel, e mesmo um computador (…), também é um corpo.
O corpo é, portanto, objeto de presunção, no sentido que tem esta palavra, por exemplo, no jargão jurídico: presume-se um corpo, desde que algo se manifeste como articulação entre órgãos.
O corpo se transforma
Mas, como a própria psicanálise, o corpo sofre transformações. O corpo das histéricas que levaram Freud a inventar o seu método inédito não é o mesmo da anoréxica ou bulímica dos nossos tempos, e isso exige do psicanalista respostas novas. Há uma forma inédita de certeza, que não é a mesma que parecia circunscrita à loucura.
Domenico Cosenza ilustra um dos aspectos dessa transformação, apresentando-nos a anoréxica como alguém perfeitamente adequado a certas exigências do seu tempo, como, por exemplo, à da quantificação. Para fugir do aumento de peso:
“… a anoréxica coloca em campo sua obsessão pela medida. Na quantificação, trata-se da tradução quantitativa de seu estado corporal em peso e em relações numéricas.”
E mais adiante,
“A anorexia contemporânea, tão engajada em quantificar more matematico os efeitos da privação no corpo, é irredutível à anorexia santa, e sua radicalidade encontra terreno fértil não no campo da religião, como para esta última, mas frequentemente no enquadre cientificista do discurso social contemporâneo, no qual tem valor o que é quantificável, redutível ao número.”
Na nossa comunidade da Associação Mundial de Psicanálise, temos usado uma expressão que procura dar conta de um novo estatuto para o corpo nos seus novos desafios feitos à nossa prática, desde que Jacques-Alain Miller a propôs como parte do tema do próximo Congresso da AMP: o corpo falante, que, juntamente com o inconsciente no século XXI, está mobilizando os esforços que nos levarão ao Rio de Janeiro em abril de 2016, tal como nos explica neste número Marcus André Vieira, diretor do Congresso.
Márcia Zucchi lembra um ponto fundamental da retomada da expressão: “Na formulação ‘corpo falante’, porém, há algo diverso, algo de mistério, afirma Lacan no seminário 20[2].”
É bem interessante pensar que, ao invés de dispormos de uma nova definição, exigida por uma mudança no objeto, ou mesmo de um novo campo de atuação possível de ser incluído em algum protocolo científico, os nossos tempos nos conduzem à fronteira do real como “mistério”, termo forte que Lacan, que sabia do que falava, nos deixou como um viático – para usar um outro termo da religião empregado às vezes por Lacan.
Ou seja, não se trata exatamente de uma evolução, que levaria, digamos por comodidade, do corpo histérico ao corpo falante, mas de uma relação inédita com o real, que será sempre discrepante daquilo que transcorre como história ou sucessão. Algo novo surgiu nos nossos tempos. Ao invés de um encadeamento conduzindo ao necessário, algo irrompe como acaso e contingência, e isso acarreta efeitos radicais para a prática analítica, que sempre teve por base o transcurso, a sucessão, a repetição: por exemplo, a própria ideia de que o tratamento se faz por meio de sessões, e de que a fala do analisante se dá, pelo menos idealmente, como associação livre. Certamente ainda não extraímos todas as consequências dessa mudança. Como disse Jacques-Alain Miller, nós já estamos analisando o falasser, que Lacan sugeriu como substituto do inconsciente, mas ainda não sabemos como dizê-lo.
O corpo muda, e, como não poderia deixar de ser, muda o sexo. Mudam suas práticas, claro, mas muda igualmente a própria relação que há entre o sexo, suas consequências biológicas e suas funções sociais. O que está em torno do fenômeno complexo da procriação ilustra bem esse verdadeiro desafio.
Dois testemunhos dos dois lados da questão
Os responsáveis por Latusa conseguiram uma bela façanha neste número 20 da revista. Puseram no mesmo número duas vozes autorizadas para falarem do sexo contemporâneo. Figuras bem conhecidas quando se trata do assunto, e partindo de posições bem diversas, deram ao encontro nas páginas de Latusa o caráter de um diálogo, ou seja, de uma conversa onde se podem encontrar consequências do que disse o primeiro na fala do segundo.
O primeiro é nosso amigo François Ansermet, de Lausanne, que há bastante tempo se destaca entre nós como uma autoridade no estudo das transformações e das incertezas sexuais, e da clínica que elas implicam.
O próprio título dado por Ansermet ao seu artigo é uma combinação de dois elementos que tradicionalmente, na lógica do “anatomia é o destino” freudiano, se excluem: escolha e diferenças sexuais.
O outro, Laerte, desde muito conhecido pelo seu trabalho de cartunista – quem não conhece Os Piratas do Tietê…? -, resolve em 2004, aos 53 anos, passar a vestir-se de mulher, como informa na entrevista que concedeu às nossas colegas Cristina Duba, atual editora da revista, e Maria Inês Lamy. Não só na intimidade, como ocorre com alguns homens, e tampouco como paródia, como vemos nos carnavais, mas publicamente, reunindo em si próprio – quase diria, em um só corpo… – aspectos que em geral estão separados: uma aparência, uma prática sexual e um reconhecimento público.
Não é no entanto um simples travestismo, como praticam outros – o exemplo de Rogéria é inevitável -, mas a tentativa de assunção de uma prática de mulher, o que tem por prova o uso que passou a fazer do feminino ao falar de si mesmo. Aqui mesmo na entrevista, Laerte parece ter adquirido uma tal aisance no feminino que não se espera da parte dela – o feminino aqui é imperativo – nenhuma dúvida ou titubeio.
A sua fama de cartunista, naturalmente, ampliou a repercussão do seu ato, e o tem levado a entrevistas em inúmeras emissoras de televisão, rádios, jornais, revistas (como Latusa…). Em todas essas intervenções reafirma a sua escolha como um sinal de que as barreiras culturais entre o masculino e o feminino podem ser dissolvidas; mantendo-se, no entanto, as diferenças que são irredutíveis. Umas das suas frases durante a entrevista me parece definitiva:
“Pois é, estou chegando à conclusão de que todo sexo é diferente.”
É a versão “laertiana”, aliás bastante justa, para o aforismo fundamental de Lacan “não há relação sexual”.
No diálogo que estou supondo, o tema central seria provavelmente a certeza.
O clínico Ansermet situaria na certeza o ponto de incidência da intervenção do analista: cabe a este, sem contestar a escolha, questionar a certeza, o que reforçará a dignidade e a responsabilidade da escolha, sem prejulgar qual deveria ser.
O transexual ou transgênero Laerte, por sua vez, sem reivindicar ter nascido em um corpo errado – no que difere de boa parte dos transexuais, talvez da maioria -, põe sua certeza no campo, digamos, político: cada um tem o direito de escolher um gênero, seja qual for o aparato com que o dotou a natureza. É preciso dizer que não é fácil, a partir da leitura da entrevista de Laerte, saber com segurança que parte se deve à ironia, que, como nos mostra a experiência corrente, é inimiga da certeza. Aqui e ali, talvez como restos, além do seu presente de humorista, do seu passado de militante, despontam indícios de uma rebeldia que, no seu caso de militante do pós-estalinismo, só pode ser chamada de irônica.
Todos os textos que compõem este número de Latusa – e são muitos – tratam direta ou indiretamente do corpo. Cada um à sua maneira, os autores, partindo de horizontes diversos e de experiências singulares, procuram enquadrar a questão do corpo (não o corpo, mas sua questão) dentro de um espaço que tem em um dos seus extremos o corpo marcado pela inscrição no Outro, que é “sexualizante”, e no outro extremo, esse corpo que tem aparecido diante de nós, e que falam de um gozo sem a atribuição que inaugura uma análise freudiana.
Acho que uma frase extraída do artigo – na verdade uma conferência – de Heloisa Caldas pode exprimir bem uma das ambições da revista:
É preciso situar no corpo o avesso dos semblantes, mesmo quando os semblantes de mulher gozam de relativa liberdade, como no mundo ocidental globalizado. No avesso dos semblantes, há o que chamamos real do corpo e que, grosso modo, equivale a apontar que a linguagem tem limites para tratar do sexo e da morte.
[1] Aula de 10 de dezembro de 1974.
[2] “O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”. Lacan,J. O Seminário livro 20: mais, ainda. (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985. P. 178
SUMÁRIO
Editorial
ROMILDO DO RÊGO BARROS
RUMO A 2016 – O INCONSCIENTE E O CORPO FALANTE
O corpo falante. Sobre o inconsciente no século XXI
MARCUS ANDRÉ VIEIRA
CIÊNCIA E CORPO FALANTE
Escolher seu sexo: usos contemporâneos da diferença dos sexos
FRANÇOIS ANSERMET
O higienismo anoréxico
DOMENICO COSENZA
Um corpo goza: marcas genéticas cifradas pela linguagem
MIRTA ZBRUN
Os não nascidos por natureza se apressam
MÔNICA ROLO
Do que se fala com o corpo
MARCIA ZUCCHI
Alguns passos
SANDRA VIOLA
CORPO, MULHER E CRIANÇA
Um corpo de mulher: da imagem ao gozo
HELOISA CALDAS
O rapto do corpo de Lol V. Stein
ARACELI FUENTES
A sadominadora
JACQUELINE DHÉRET
A mulher que diz não
PIERRE NAVEAU
Um algo a mais
VERBENA DIAS
Entre a vida e a morte:um corpo nasce pelo viés do brincar
RUTH HELENA PINTO COHEN
A confecção de um corpo na neurose: obeso para a mãe, seco para o outro sexo
ANA CRISTINA FIGUEIREDO MANOELA NUNES DE FREITAS
Medos e invenções de um menino diante de um corpo modificado
FLÁVIA HASKY
O corpo e a paixão pelos objetos no autismo
ANA MARTHA WILSON MAIA
VANESSA CARRILHO DOS ANJOS BRANDÃO
CORPO E SEGREGAÇÃO
Sobre ruas e litorais: o corpo da biopolítica ao nó
PAULA LEGEY
Organismos de ferro
VIVIANE TINOCO MARTINS
Que corpo para o “criminoso”?
CARLOS ALBERTO RIBEIRO COSTA
ARTE, PORNOGRAFIA E HORROR
O corpo, esse estranho
STELLA JIMENEZ
A pele que habito
MARIA INÊS LAMY
Hélio Oiticica: arte e acontecimento de corpo
MARIA FÁTIMA PINHEIRO
O Outro artista está presente
GISELLE FALBO
A pornografia da vida cotidiana
MARCELO VERAS
INSTITUTO DE CLÍNICA PSICANALÍTICA
O direito de ter um filho. Notas sobre as maternidades e paternidades contemporâneas
CRISTINA DUBA
PASSE
Après coup
GRACIELA BRODSKY
ENTREVISTA
Conversa com Laerte
CRISTINA DUBA MARIA INÊS LAMY