Editora: CRISTINA FREDERICO
Editorial
Cristina Frederico
O que retorna sobre o corpo na experiência de confinamento e que nos ensina sobre o exílio? Por conta de um vírus planetário, evidenciaram-se novos mecanismos de racismo e modos de segregação. Entre análises originais sobre as diferentes formas de exílios e contribuições aprofundadas sobre a pandemia, os textos desta edição abrem vias para interrogarmos a constituição dos laços e a função das fronteiras na atualidade. O corpo se impôs nesta edição por condensar as questões acerca do exílio e, sobretudo, por portar nele mesmo a alteridade que geralmente supomos apenas no encontro de corpos.
No tempo em que o outro é uma ameaça à nossa integridade, o que as fronteiras entre os países, as fronteiras dos corpos, as fronteiras das línguas e das identidades estão regulando? Exilados em terras distantes, em suas cidades ou no movimento e na travessia entre as fronteiras, os corpos em fuga irão produzir sintomas, além de novos arranjos mundiais. Uma questão fundamental é trazida nesta edição por Christiane Alberti: o que se deixa e o que se leva consigo ao partir?
A procura de um lugar no Outro faz do sujeito um imigrante em seu próprio país[1]. O não-pertencimento gera inquietação e, por vezes, encantamento. No cinema do cearense Karim Aïnouz, tão ligado aos deslocamentos dos corpos pelo mundo, é frequente os personagens partirem sem saber o que se procura em seus destinos, pois é na viagem que a vida acontece e é por ela que se parte. Ocorrem tanto rupturas do local de origem quanto rupturas de identidades, como é possível ver nos filmes Praia do Futuro[2] e o Céu de Suely[3]. Há uma aproximação de um “exílio de utopia”[4], desde que seja, nas palavras do próprio Karim, através do movimento de corpos e com uma abertura para a contingência, para daí produzirem, quem sabe, um destino. Ou, como bem disse Gustavo Dessal no lançamento das últimas Jornadas da EBP-Rio e ICP-RJ, em setembro de 2020[5]: “Deixei atrás um lugar para fabricar-me um destino”.
O que, para alguns, é inquietação e encantamento, para outros, é condição de existência. Certa vez perguntei a um jovem errante e recém-morador de rua – que acabara de ser internado pela primeira vez em uma instituição psiquiátrica – como era a cada semana estar em um lugar diferente. Sua resposta ressoa até hoje: “- Tanto faz, só muda o chão. Chego no lugar, monto meu presépio, faço churrasco, conheço algumas pessoas e depois desmonto”. A crueza de sua resposta mostra o que alguns psicóticos, em sua ironia, desvelam acerca do exílio, do pertencimento ao Outro e do estatuto de estrangeiro de todo sujeito. O psicótico desvela também o exílio da língua, pois é testemunha da estranheza e do excesso de real contido na língua que chega pelo Outro e afeta seu corpo. No entanto, ele é propenso a traçar caminhos para os significantes enigmáticos da língua dita materna através da invenção de línguas ou do novo uso de uma já existente, o que o leva a um trabalho simbólico no campo da linguagem.
Impossível tirar o corpo fora. Nas formulações de Lacan acerca do exílio, o corpo está presente. O título da revista foi escolhido para ressoar em várias camadas do tema e surgiu assim para cada autor: impossível tirar o corpo fora tanto no encontro de corpos na pandemia, na angústia de ser reduzido ao corpo organismo diante da iminência de morte, na ausência dos rituais de sepultamento, no trabalho com jovens exilados ou no exílio da artista cubana Ana Mendieta, quanto no racismo, na dimensão do feminino presente no feminicídio e em outras formas de segregação, na circulação de pessoas no processo migratório e na deportação, em que o retorno ao país de origem é imposto; mas haveria retorno possível? Aqui, uma perspectiva merece destaque: é a passagem de Lacan na conferência “Joyce, o Sintoma”, na qual ele traz, ao falar dos deportados como sendo os únicos a participarem da história, a enigmática expressão “avesso do habeas corpus”, “já que o homem tem um corpo, é pelo corpo que se o tem. Avesso do habeas corpus”[6]. Do latim “que tenhas o corpo”, o que seria então seu avesso? Christiane Alberti, Angélica Bastos, Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros e Éric Laurent revelam em seus textos, a cada vez, uma leitura surpreendente a esse tema específico. Remeto vivamente o leitor a todos os outros textos, que, de modo original, contribuem para o tema dos exílios.
No cenário em que há a proliferação do chamado à reinvenção por todos os lados, o que, de tão utilizado, tornou-se quase um imperativo, são muito bem-vindos os textos sobre as invenções, justamente por conseguirem refinar e precisar o termo formulado há alguns anos por Jacques-Allain Miller. Passando ao contexto literário, a equipe de Latusa tem a honra de trazer ao leitor um escrito recente de Hélène Cixous. Autora da peça Retrato de Dora e citada por Lacan em seu Seminário, livro 23, Cixous, juntamente com sua filha, escreve agora sobre o exílio vivido no confinamento.
Durante as mudanças de um ano sem precedentes, a revista migra para o mundo virtual, torna-se mais acessível e com maior alcance. Ainda não é claro os efeitos dessa partida, mas espero que os textos contribuam para que os analistas possam recolher em análise, e fora dela, o que cada um pode extrair das marcas de seu exílio para se ligar ao mundo e fazer laço de maneira inédita.
Por tantas vezes, o leitor teve o prazer de encontrar nas páginas de Latusa os textos de Stella Jimenez e de Vicente Gaglianone, sempre com o estilo firme pero delicado de cada um. Vão fazer muita falta!
Agradeço aos autores e às autoras que cederam gentilmente seus textos para a tradução, como Raquel Cors Ulloa, María Cristina Giraldo, Clotilde Leguil, Dalila Arpin, Hélène Cixous, Éric Laurent e Christiane Alberti. Agradeço muito a todos e a todas que puderam abrir um parêntese em suas vidas para a escrita e o envio de texto em um ano tão propício à dispersão. É o caso, entre outros, de Eleonora Fabião, artista da ação, entrevistada por Fátima Pinheiro, que doou gentilmente ao leitor uma escrita em ato que em si já é uma performance. É o caso também de Mariana Mollica, que fez muito mais do que uma resenha sobre o livro de Achille Mbembe. Agradeço ao Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro pela presença dos excelentes textos que traçam a noção do exílio a partir de uma conversa dos autores com Lacan, Joyce e a “Canção do Exílio”.
Em particular, agradeço ao Lourenço Astúa de Moraes e Patricia Paterson, que, de algum modo, compartilharam a editoria deste número comigo. Agradeço também a todos os outros parceiros de travessia que deixaram a marca de seus talentos na montagem de Latusa 25: Anna Luiza de Almeida e Silva, Angélica Bastos, Cristina Duba, Marina Sodré, Paula Legey, Renata Estrella e Tatiana Grenha.
Por fim, desejo ao leitor um uso próprio da revista, assim como é possível a uma latusa.
[1] MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011.
[2] Brasil, Alemanha, 2014.
[3] Brasil, 2006.
[4] FELDMAN, I. e EDUARDO, C. “A política do corpo e o corpo político: o cinema de Karim Aïnouz”. Revista Cinética. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/cep/karin_ainouz.htm . Acesso em 10 de outubro de 2020.
[5] Lançamento das XXVII Jornadas da EBP-Rio e ICP-RJ, em 12 de setembro de 2020.
[6] LACAN, J. (1975). “Joyce, o Sintoma”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.565.
SUMÁRIO
Editorial
CRISTINA FREDERICO
IMPOSSÍVEL TIRAR O CORPO FORA
As biopolíticas da pandemia e o corpo, matéria da angústia
ÉRIC LAURENT
O exílio e a identificação
CHRISTIANE ALBERTI
Exílios e avesso do habeas corpus: rumo a um porto
ANGÉLICA BASTOS
Vozes e silêncios
MARIA CRISTINA GIRALDO
Algumas consequências psíquicas do confinamento
CLOTILDE LEGUIL
Clivagem Negra: Contribuições psicanalíticas
VILMA DIAS
GEISA DE ASSIS
As novas formas de sepultamento interferem no processo de luto?
ANGÉLICA CANTARELLA TIRONI
GISELLE LEANDRO FLEURY
TRAVESSIAS
Do êxodo ao país da psicanálise
RAQUEL CORS ULLOA
Jovens em exílio, morada n’a Outra língua
ALINE BEMFICA
Clínica do confinamento
DALILA ARPIN
FEMININO E EXÍLIOS
Feminino e Feminicídio no Brasil atual
HELOISA CALDAS
Exílios e a identificação dessegregativa
MARIA DO ROSÁRIO COLLIER DO RÊGO BARROS
Sororidade: do internato ao MeToo
ONDINA MACHADO
Corpo falante e exílio.
MIRTA ZBRUN
ARTHUR FIGER
Feminino e exílio em Ana Mendieta
CAROLINA CARVALHO DUTRA
INVENÇÕES
Com que materiais se faz uma invenção?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA
Exílio e invenção em Cafarnaum
MARIA INÊS LAMY
Exílios, corpo e lalíngua
ANA MARTHA WILSON MAIA
EXÍLIOS COM LITERATURA
Como todo mundo
HÉLÈNE CIXOUS e ANNE E. BERGER
seguido do comentário Formas do Infamiliar
RENATA ESTRELLA
O que cessa de não se escrever como tratamento do exílio
RUTH HELENA PINTO COHEN
INSTITUTO DE CLÍNICA PSICANALÍTICA
O exílio e seus cantos
RAM MANDIL
Exílio e sintoma
MARCUS ANDRÉ VIEIRA
Exílios e o trabalho dos autistas com a língua
MARIA ANTUNES TAVARES
RESENHA
Sair da grande noite: decolonizar a psicanálise com Achille Mbembe
MARIANA MOLLICA
Entrevista
Entrevista com a artista da ação Eleonora Fabião
FÁTIMA PINHEIRO