Dobradiça de Cartéis

Julho de 2013

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 2

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Fazer Cartel é fazer Escola

 

Nesta edição do Dobradiça, recolhemos os efeitos do primeiro encontro do cartel da Comissão dos Cartéis da EBP com o mais-um presente, Carlos Augusto Nicéas, que aqui publica seu texto “A solidão do pequeno grupo”. 


Esse texto, produto provocado pelo encontro do cartel, é posto a céu aberto iluminando este Boletim. Nele, Nicéas retoma os fundamentos do cartel, que são os mesmos fundamentos da Escola tal como concebida por Lacan.

 

Trata-se da possibilidade de reenviar o cartel ao seu estatuto de objeto causa do desejo de Escola. Não nos parece excessivo destacar o cartel como lugar de formação na Escola, retomando inclusive o que Lacan nos diz dele no Ato de Fundação.

 

Assim, o vivo do cartel no um a um e, em última instância, a relação singular com a causa analítica que se manifesta na enunciação do cartelizante, pode ter o efeito de despertar, no outro, o desejo de levar sua questão singular para a construção coletiva de um saber no cartel. Apostamos, assim, nas ressonâncias, que a transmissão das experiências no cartel pode mobilizar em cada um, provocando o desejo de fazer cartel e, portanto, de Escola – o que pode ser lido nos efeitos da fala de Cínthia Busato, Diretora de Cartéis e Intercâmbio da EBP-SC, nas notícias que ela aqui nos fornece da primeira Noite de Cartéis em 2013 na sua Seção.

 

Colhemos, da nossa reunião no cartel, o efeito de agalmatização do dispositivo do cartel experimentado por cada um no encontro. Pudemos verificar como as discussões da comissão ampliada dos cartéis na EBP, relançadas no dispositivo do cartel, abriram as discussões sobre a posição ética de cada um em relação ao saber e ao furo e sobre a importância da posição de “cartelizante” em causa na Escola de Lacan.
Por outra parte, no laço igualmente importante com a comissão ampliada dos cartéis da EBP, lançamos uma conversação na qual recolhemos perguntas,diariamente, além de pontuações, discussões sobre o dispositivo a respeito de sua eficácia, seu lugar e seus efeitos, o que ressoa entre os Diretores de Cartéis das Seções e Delegações da EBP, produzindo os trabalhos de vários, dos quais daremos notícias em nossos boletins.

 

Então, à leitura!

 

Paola Salinas
Coord. da Comissão de cartéis da EBP

 

A solidão do pequeno grupo

Carlos Augusto Niceas

(AME da EBP)

 

O cartel: como retomar a intenção de Lacan ao colocá-lo, ao lado do passe, como um dos dois pilares de sustentação de sua Escola? A gente já se acostumou, embora não pensemos mais muito nisso, a repetir que o cartel é o órgão de base da Escola. Mas o que quer dizer, exatamente, que o cartel esteja na base da Escola?
Sobre ele, o Dobradiça de Cartéis n. 1, Boletim eletrônico dos cartéis da EBP, nos trouxe já as primeiras orientações da atual Diretoria da EBP, através das palavras de Josefina Fuentes, Diretora de cartéis. Decidindo dar continuidade à promoção do trabalho dos cartéis na EBP, ela nos passou, na primeira reunião do cartel de sua diretoria, a tarefa de “re-agalmatizá-lo”, direção tomada em Porto de Galinhas, para alcançar, privilegiadamente, aqueles que chegam, a partir de agora, por essa porta de entrada da Escola. Para sua efetivação, no texto de Dobradiça de Cartéis 1, ela quer que recomecemos perguntando-nos por que, no clássico tripé freudiano da formação do analista, Lacan não acrescentou “à análise e à supervisão, o aprendizado da teoria psicanalítica em seminários, cursos e colóquios”, particularizando, em vez de outros lugares de formação, a invenção de um pequeno grupo próprio para a elaboração do saber da Escola.
Agalmatizar o cartel. Lembrei-me, imediatamente, de Jacques-Alain Miller, trinta anos depois de fundada a Escola, por Lacan, dizendo, numa jornada de cartéis da ECF, em 1994, que ele sentia não haver muito entusiasmo por eles no mundo. Em 2014, hoje, somos convidados, outra vez, a retomar a intenção de Lacan com a criação de seus pequenos grupos, dispostos que estamos em nos entusiasmar novamente com a experiência que neles ocorre. À luz da letra do Ato fundador da Escola, em 1964, texto-guia para sabermos se ainda podemos responder às questões e aos impasses atuais que se apresentarem à prática do cartel entre nós, procuraremos resgatar na estrutura de seu funcionamento, verificada por Lacan nos primeiros anos de sua Escola, e afinada por ele, depois, em 1980, o que ele conceituou como “trabalho da Escola”. Ou seja, seguiremos nos orientando pelo acordo que une, estreitamente, o conceito de Escola e o pequeno grupo chamado, por Lacan, de cartel.

Na primeira reunião de nosso cartel, começamos a falar da questão da solidão que nos parecia central na elaboração sustentada no cartel como “órgão” de base da Escola. Em 1964, Lacan nos disse fundá-la, “tão sozinho como sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica”;e, ao mesmo tempo em que ele a criava, nos oferecia um instrumento, o pequeno grupo, que não era um fim nele mesmo, mas o lugar no qual, na qualidade de“trabalhadores decididos”, seríamos chamados para a tarefa de continuar fazendo uma Escola que fosse, de fato, uma Escola para a psicanálise, e não para os psicanalistas entre eles. Do funcionamento do cartel, Lacan esperava que resultasse uma produção de saber por que, como nos lembrou Josefina Fuentes, ele não desconhecia os lugares vários onde recolher elementos para uma formação analítica: seminários; conferências; jornadas; congressos etc. Porém, quando se tratou de definir o “trabalho da Escola”, ele não hesitou, e o disse com clareza: “Para a execução do trabalho nós adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada num pequeno grupo”. Por conseguinte, é no cartel que o “trabalho da Escola” encontra seus fundamentos, faz-se sua base. Ora, o pequeno grupo na Escola tem uma estrutura de grupo, mas Lacan o instrumentalizou para que ele não se reduzisse a um pequeno exército ou a uma pequena Igreja, à imitação das massas freudianas. Por isso, ele substituiu o líder por uma função, a função do mais-um, e o exercício da permutação se tornou uma exigência radical para que o cartel não enredasse sua experiência na trama imaginária própria dos grupos. Assim, o trabalho que Lacan esperava que se produzisse nele, dentro da Escola, não deveria, antes de tudo, responder a uma demanda dirigida ao mestre que ensina.

Em seu texto de Dobradiça de Cartéis 1, Josefina Fuentes insiste, justamente, num ponto importante do trabalho no pequeno grupo, uma vez que ela nos remete ao princípio mesmo do cartel lacaniano: o saber novo que, nele, cada um produzirá a partir de sua questão, acrescenta “algo de si mesmo ao saber que ali se elabora, não sem o Outro da Escola”. Maneira de nos lembrar, portanto, que o desejo do sujeito, em sua tarefa de cartelizante, introduz-se, outra vez, no lugar mesmo da ignorância, como Lacan nos ensinou. E sobretudo, se os significantes sob os quais nos orientamos para trabalhar em cartel continuam sendo os significantes de Freud e de Lacan, é o singular do um a um que deverá se articular ao Outro da Escola. Enfim, porque a solidão subjetiva de cada um não supõe, no trabalho do pequeno grupo, nenhuma ruptura com esse Outro da Escola; distanciam-se da experiência dos membros do cartel a errância e a deriva.

 

Então, afinemos os termos: do “sozinho” do ato fundador de Lacan ao singular do “si mesmo” que vem se juntar ao Outro da Escola, na experiência do cartel, afirma-se uma solidão que é de estrutura, uma mesma relação solitária, que é a de cada um à causa analítica. A mesma causa analítica que se lê em Lacan, quando ele, um dia, se perguntou onde estavam “as histéricas de antanho”. Não era, certamente, de um tipo clínico clássico que ele reclamava a volta, mas, com sua pergunta, ele nos devolvia, ao lugar ocupado pelas histéricas freudianas, ou seja, ao lugar da causa que permitiu a Freud, inventar a psicanálise. E depois dele, a todo analista de reinventá-la.

É disso, portanto, que se trata quando sublinhamos que a solidão de cada um na Escola corresponde a uma posição estrutural, pois, se a Escola é uma formação coletiva, nela, cada um, analisante sempre, não se ilude quanto ao que esse coletivo quer dizer: que as solidões, nele, não fazem grupo, mas que elas, reunidas sob uma “transferência de trabalho”, se somam, simplesmente. O pequeno grupo do cartel, “órgão de base” do grande coletivo da Escola, não dá lugar, portanto, à particularidade de nenhum ideal narcísico do analista solitário, mas realiza o trabalho que lhe cabe produzir na Escola: na estrutura de uma pequena “soma de solidões” – a expressão nos vem de Miller definindo assim, mais amplamente, a Escola de Lacan, em sua “Teoria de Turim”.

 

Notícias do Cartéis na EBP

EBP-Santa Catarina

Diretora de Cartéis e Intercâmbio: Cínthia Busato

 

No dia 04/06/2013 aconteceu, na sede da EBP-SC, a primeira Noite de Cartéis deste ano. Estavam presentes 30 pessoas, a maioria alunos da formação, mas também muitos interessados especificamente pelo dispositivo como lugar privilegiado de acesso ao ensino de Lacan. Formaram-se dois cartéis no ato, outro no dia seguinte e mais três estão, nesse momento, em vias de se formar, já inseridos no “Procura-se Cartel”, tanto no site da Escola, como no quadro que fica em nossa sede.

 

Identificada com a colocação de Carlo Viganó no Dobradiça número 1, de que um dos pontos críticos, tanto do cartel quanto da Escola é “sentir-se num nível superior, algo para iniciados, e não um furo a escavar-se no saber escolástico”, na fala que fiz abrindo a Noite, tinha como objetivo passar as informações mais importantes, a plasticidade do dispositivo, a estrutura, a função do mais-um, mas, principalmente, o meu profundo interesse e deslumbramento pelos cartéis. Sem dúvida, nesses anos todos, que estou em torno do ensino de Lacan, foi dentro do dispositivo cartel que mais avancei com minhas questões, impasses, dúvidas. Não era um objetivo difícil, pois a ideia que embasa e estrutura o dispositivo é muito bem vinda para aqueles que têm alguma transferência com a psicanálise.

 

Lacan conseguiu forjar um modo “não sem os outros” para privilegiar nossas perguntas, nosso “não-todo”, descolando-nos do ideal, esse que pretende acabar com a falta própria à estrutura. Lançando-nos numa lógica muito diferente das que vemos proliferar à nossa volta; a lógica, aqui, contempla o furo no saber, e possibilita falar em nome próprio, descolando-nos do coletivo como igualdade, homogeneidade, para irmos em direção a nossa singularidade.

 

Portanto, é colocar a ética da psicanálise em ação, é atuar, criar, produzir, partindo de seu não-saber, de sua questão mais íntima para, daí, afirmar a importância da relação com a diferença; poder sair, enfim, da frente do espelho narcísico.

 

É dessa forma que a Escola convida quem quiser se aproximar dela para trabalhar e, depois, expor seu trabalho nas jornadas de cartéis, espaço muito importante, poisaí, cada um, por sua conta e risco, pode sempre dividir suas questões, debater e manter vivo o discurso que nos enlaça.

 

DOBRADIÇA DE CARTÉIS ANTERIORES