Bibliô #06

DOWNLOAD

Boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP

Novembro de 2013

Bibliô Entrevista
        

 

ENTREVISTA COM JOSEPH ATTIÉ

POR ISABEL LINS

 

Isabel Lins: Primeiramente, quero parabenizá-lo pela tradução e pelo lançamento do seu livro aqui no Brasil. Conheci você durante algumas de suas vindas ao Brasil. De suas falas sempre extraí ensinamentos e simpatia. É um prazer grande entrar de novo em contato com você, escritor, autor dessa obra, que considero um verdadeiro monumento erguido a Mallarmé, à psicanálise, à poesia.


Quando o colega Manoel Motta me apresentou seu livro, já ao folheá-lo, não resisti: fiz dele, imediatamente, o motivo para oferecer um Seminário, por conta e risco, que mantenho há três anos na EBP-Rio. E poderei continuar por muitos anos mais, ainda... tal é a fonte a jorrar beleza e ensinamentos.

 

Isabel Lins: Você diz que o sintoma de Mallarmé é O Livro (seu desejo, sua causa, seu sonho, seu projeto!), assim como para Joyce foi a própria escrita, objeto de um dos mais fundamentais seminários de Lacan. Podemos pensar que você tomou para si essa causa?


Joseph Attié:
Sim, O Livro é «o desejo, a causa, o sonho, o projeto» de Mallarmé, mas isso não é seu sintoma. Seria melhor dizer que seu sinthoma é a resposta do sujeto a seu próprio sintoma. “O Livro” é fantasia e é só o que nos importa aqui. «É a fantasia poética por excelência», segundo o dito do Lacan.
Como adotei essa causa?


Claro que não foi por «uma ideia do Livro», mas provavelmente como sonho de poesia. Aos 24 anos, Mallarmé disse ter lançado o plano de toda sua obra e que esta tomaria dele 20 anos. A Ideia do Livro partiu daí e permanece especificamente mallarmeana. Segundo ele, essa é a tentação para quem quer que escreva, sem que se saiba. E só há um livro, «a explicação orphica da terra». A explicação poética da terra. Tal é, acrescenta ele, para Verlaine, «a confissão do meu vício».


O que é importante nessa ideia do Livro é que isso pertence ao impossível. Isso não se pode fazer. Escrever O Livro que contém todos os livros. Há aí uma utopia da língua.


A questão que aqui se impõe é a de saber por que ter ficado com Mallarmé e não com Beaudelaire ou com Rimbaud, só para citar os seus contemporâneos. Isso pode se precisar em outros termos: por que esse amor por Mallarmé, que eu porto em mim, há tanto tempo? Precisaria de toda uma obra para respondê-lo. E isso já me ocupa a cabeça, tentando achar-me aí outra vez.


Quanto à causa, ela é dupla em mim. A causa psicanalítica e a causa poética. «Causa sempre». É um preceito, citado por Lacan, do pensamento «causalístico». Sim, há aí uma causa, incontestavelmente.

 

Isabel Lins: Escrever um livro sobre Mallarmé – considerado por muitos como o maior poeta da língua francesa, mas também tido por outros como obscuro – sem derrapar na psicanálise aplicada é um feito extraordinário, porque motivos não faltariam para isso. O que permitiu a você manter-se nesse fio da navalha sem comprometer em instante algum o que há de sublime em Mallarmé, nem o real de que se ocupa a psicanálise?


Joseph Attié:
Não era um objetivo claramente posto desde a partida. É o resultado que me permitiu o dizer.

 

Talvez seja devido a esse amor do qual eu falava. Mas é certamente devido ao ensino do Lacan.

 

Isabel Lins: O que aproxima Mallarmé de Lacan?


Joseph Attié:
Tentei dizer isso na apresentação que eu faço do meu livro e que vai chegar a vocês em forma de vídeo. Basta notar aqui, para responder à sua pergunta, que o que os aproxima é uma certa concepção da língua. É o que faz com que se qualifique, muitas vezes, o estilo do Lacan como mallarmeano. Pode-se falar também, nessa perspectiva, de um Mallarmé lacaniano. De uma parte e de outro, percorre ai uma ética do significante.


Um dito aqui do Mallarmé lacaniano não deixa de tocar: por «jogo insensato de escrever» trata-se de «arrogar-se, em virtude de uma dúvida, qualquer dever de tudo recriar, com reminiscências, para verificar que estamos bem lá onde devemos estar (porque, permitam-me expressar essa apreensão, permanece uma incerteza)». Qualquer dever então de tudo recriar.


Nós alcançamos assim o analisante, o Fauno, Igitur ou o Mestre do «lance dos dados».


Será que não se deve acrescentar aqui que o Verso é um sonho?


Talvez, posso modestamente acrescentar, tudo isso me parece ir por si só, em função do que trago em mim mesmo. Como desejo e como sonho. O que faz com que Lacan e Mallarmé tenham marcado minha vida. Isso deve ser entendido no sentido mais simples do termo. Não cesso, de fato, de lê-los no quotidiano, há quase quarenta anos.

 

Isabel Lins: Muito frequentemente, apresentando passagens de seu livro aos participantes de meu seminário, não sei mais se o poeta de que falo é Mallarmé ou Attié. Os dois se confundem de tal maneira para mim, que sou levada a lhe perguntar: você tem o sentimento, traduzindo à linguagem do Candomblé, culto religioso tão caro a muitos brasileiros, de que você “incorporou” o espírito de Mallarmé?


Joseph Attié:
Se um leitor me diz isso, é verdadeiramente uma grande honra. Isso seria ainda uma honra maior se o mesmo leitor quer acrescentar o espírito do Lacan.

 

Isabel Lins: Transmitir Mallarmé, é bem isso que você faz, cedendo a iniciativa às próprias palavras dele, à sua poesia e ao seus conflitos, ao mesmo tempo em que transmite a seus leitores a psicanálise no mais puro estilo lacaniano. Isso me faz ficar curiosa sobre que efeito teve para você, psicanalista, escrever esse livro?


Joseph Attié:
Acontece que tal ou tal analisante não cessa de repetir que ele quer transmitir tal ou tal parte da sua historia. O que é um dever, de todo fato, honroso.


A idéia da transmissão não era prévia ao meu trabalho sobre Mallarmé. Queria lê-lo somente e entender o que dele retorna. É a mesma perspectiva que operou a respeito de Lacan.


É o amor por um e por outro que me leva a dizer alguma coisa sobre eles. Amor de transferência, em um caso, e uma transferência do amor, em outro. Pois Mallarmé se tornou para mim um Sujeto Suposto Saber. Tenho a impressão que era o único a saber o que é a poesia, nos seus poemas e nos seus escritos teóricos.
Isso, mais uma vez, parece andar por si só. Trata-se de sustentar o proprio desejo, sobretudo quando o chamamos de «desejo do analista». Falamos muitas vezes do desejo do analista em função da teoria e da prática analítica. Com o desejo não se brinca. Isso nos obriga. Escolha forçada, diz Lacan. Siga então a causa.


E concluimos aqui com Mallarmé. O Le figaro, jornal parisiense, tinha feito uma pesquisa sobre o ideal aos vinte anos. Tiveram a boa idéia de fazer essa pergunta ao poeta. Era dia 17 de agosto de 1898, três semanas antes do seu falecimento, que ocorreu dia 9 de setembro do mesmo ano. Sua resposta foi, como de costume, de todo modo concisa: « Suficientemente, eu fui fiel a mim mesmo para que a minha humilde vida guardasse um sentido». Porque ele escolheu, diz ele, «o ato de escrever».


Tal foi o Livro, «esse jogo insensato descrever». Um ato chamado aqui «um lance de dados».


Isabel Lins: Assim concluo esta entrevista, com um forte abraço e meus agradecimentos.

 

Tradução: Pierre Louis Brisset
Revisão: Fernanda Otoni Brisset

 

ENTREVISTA COM MARCUS ANDRÉ VIEIRA E ROMILDO DO RÊGO BARROS

POR ANDRÉA REIS SANTOS

 

Ódio, Segregação e Gozo

Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros (Org.)

Editora Subversos

 

Andréa Reis Santos: Ódio, Segregação e Gozo é uma excelente publicação da Coleção Andamento (ICP-RJ), que reuniu os resultados do Colóquio “Figuras Lacanianas da Crueldade”, que aconteceu no Rio de Janeiro, em maio de 2010, organizado pela parceria entre a EBP-RJ e o ICP-RJ. Este Colóquio foi precedido por uma sequência de encontros que serviram de ocasião para um debate bastante rico, em um formato diferente do usual: a cada encontro, o texto produzido por um autor era discutido por um grupo de participantes e “adotado” por outro autor, que tinha a incumbência de finalizá-lo. Esse coletivo se propôs a tratar de temas relativos aos impasses da civilização – a questão da violência, da crueldade e da segregação nas suas formas atuais –, buscando articulá-los aos limites da clínica psicanalítica. Essa experiência culminou em um grande encontro, que agregou convidados de outras áreas de saber, e na produção desta publicação organizada por de Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros, a quem endereço algumas questões:


Marcus, você define o livro como o resultado da aposta de que sempre é possível encontrar um destino aos extremos do dizer, que não passe necessariamente por ações extremadas. A clínica nos ensina muito sobre isso e é fácil imaginar de que maneira um sujeito que atravessou a experiência de uma análise é capaz de escolher com maior liberdade os destinos que dará aos seus excessos. Como isso se dá quando tratamos do coletivo, que inclui diferentes agentes e diferentes discursos? Quais seriam as boas ferramentas das quais os psicanalistas poderiam se servir para lidar com os extremos do dizer, para além dos consultórios particulares?


Marcus André Vieira:
Gostei muito na época dessa diferença. Nem sempre o que é extremo precisa ser extremado. Ela me parecia dizer bem o ganho de uma análise, ou pelo menos o ganho que eu havia experimentado com a minha. De lá para cá, creio que posso acrescentar que a maior liberdade que uma análise dá, sempre tomando a minha como parâmetro, não é poder fazer diferente, mas fazer o de sempre como se a cada vez ele fosse a escolha da vez. Um tanto então, sobra. Isso não significa que este excedente poderá ser empregado no que eu quiser, continuarei tendo que passar pelas mesmas rotas de meus confins do dizer, só que este excedente não precisa mais ser extremado.


No plano coletivo? Gosto da definição de sintoma na conferência de Lacan em Genebra, o infans é banhado na linguagem e o encontro do corpo vivo com este banho retém alguns detritos na peneira. Estes restos linguageiros compõem o sinthoma e delimitam o leque dos possíveis e impossíveis para escoamento do gozo nos moldes do razoável. Mas além deste leque, um tanto do gozo sempre excederá. Podemos variar as combinações dos restos sinthomáticos, mas o mais interessante é poder improvisar com o excesso que os transborda, o excesso em que o real sempre estará com relação ao significante. Dito do modo mais geral: poder “fazer com” o sintoma, como orientação de uma análise levada a termo, não significa “assumir” seu gozo, tornar um gozo problemático em modo de ser. Não é “ser seu sintoma” como tantos querem hoje (vide as tribos que proliferam do DSM às Mulheres que amam demais), não é tornar sucesso um fracasso. É fazer com o fracasso. Incorporar o fracasso em seu modo de ser, mas como fracasso. Isso libera-o do peso do erro permitindo que seu excedente de vida reluza. Não seria o que Lacan chama de estilo?

 

Andréa Reis Santos: Você diz também que o analista é chamado nas situações em que a civilização encontra o que a lei não recobre. Isso idealmente, pois sabemos que na maioria das vezes as respostas do coletivo a estas situações são respostas burocráticas que acabam produzindo mais segregação e violência. Pergunto então: De que maneira você acredita que a psicanálise pode se fazer presente e se oferecer como um possível tratamento da violência em um mundo cada vez mais burocratizado? O quê as experiências de psicanálise fora dos consultórios – que estiveram presentes no debate, como o trabalho dos psicanalistas na polícia militar e a Associação Digaí-Maré – podem ensinar sobre isso?


Marcus André Vieira:
Você tem razão, as primeiras respostas às ocorrências marginais do corpo social serão sempre da doxa vigente e não da psicanálise. Mas ao mesmo tempo, só a psicanálise atura estas margens em que o extremo muitas vezes é extremado. Não é à toa que são os psicanalistas que sustentam a clínica do campo da saúde mental e em tantos outros campos em que as terapias do contrato e do senso comum depõem as armas. Foi assim no tempo de Freud e me parece ainda ser o caso. Então nem precisamos estar lá necessariamente, de corpo presente, o real nos procura.

 

Andréa Reis Santos: No livro, você nos conta sobre uma experiência vivida na favela da Maré, da qual você se serve para – numa torção da frase de Tom Jobim “O Brasil não é para principiantes” – afirmar que “o ser humano não é para principiantes” e que só se atinge algo do humano quando se decide dedicar um tanto da vida para lidar com isso. Você poderia nos falar mais sobre esse “algo do humano”? Seria outro nome para os restos inelimináveis da operação simbólica? Outro nome para o gozo? Você acredita que este saber sobre algo do humano pode ser capaz de extrapolar os limites da clínica e produzir efeitos no social?


Marcus André Vieira:
O mais humano em nós, Lacan o destaca no Seminário 18, por exemplo, é este gozo da vida, opaco, excessivo às vezes, que nos habita e que chamamos de “gozo” desregulado, como tal, ou real.

Só chegando aos confins do dizer podemos perceber que ele pode ser opaco, ao sentido, mas não é necessariamente concreto, monolítico, ou violento, pode ser vivido em sua matéria pulsante de abertura ao que virá.


Andréa Reis Santos: Romildo, em um dos seus comentários durante o Colóquio, você diz que a grande pergunta do debate se dá em torno da questão da relação entre sujeito e objeto e que, tradicionalmente, na clínica das neuroses, responde-se ao desafio da relação com o objeto através da construção da fantasia. Você observa ainda que a construção da fantasia hoje é o que há de mais difícil e que isso constitui o problema contemporâneo da relação sujeito-objeto. Muito se tem dito sobre as consequências disso para mudanças que observamos na clínica: os chamados novos sintomas. Acompanhando as discussões que acontecem no livro, fica evidente que estas consequências não se restringem ao plano individual e que podem ser verificadas no plano coletivo. Os sintomas individuais mudam, os sociais também se apresentam de forma diferente. De que maneira você relaciona este “embaraço” na relação com o objeto aos efeitos de violência e segregação tal como eles se apresentam hoje na nossa civilização?


Romildo do Rêgo Barros:
Agradeço a você pela sua pergunta. De fato, a nossa época, como se sabe, conheceu a experiência trágica de populações que foram relegadas à condição de resto, ou seja, sem lugar. E de certa forma, isso continua a acontecer. Há nisso, sem dúvida, uma novidade: as formas de discurso dominantes que ficaram conhecidas como totalitarismos, e que caracterizam tão fortemente o século XX, levaram ao extremo a conclusão de que um resto, por ser resto, deve ser excluído: da comunidade, inicialmente e, finalmente, da existência. Isso interessa de muito perto à psicanálise, uma prática que, dentro dos seus limites, busca levar o sujeito a pôr em questão a sua condição de objeto, que pode ser causa de desejo ao invés de objeto de exclusão ou de violência.

 

Andréa Reis Santos: Em outro momento você nos lembra que não há como evitar que uma operação simbólica deixe resto e que a preocupação em achar destino digno para o resto não é apenas da psicanálise. “Agamben e vários outros se perguntam o que fazer com os restos, que não seja a exclusão corporal ou a eliminação”. Qual a diferença entre este tratamento “democrático” dos restos e aquele que a psicanálise propõe através de sua clínica? Além disso, você acredita que o aprendizado que se extraiu da interlocução que aconteceu no Colóquio pode ser capaz de produzir consequências para o trabalho clínico com os novos sintomas?


Romildo do Rêgo Barros:
Esta sua pergunta continua a anterior, e nos leva a aproximar a produção de restos das práticas democrática e psicanalítica. Creio que podemos nos servir da frase com a qual Lacan conclui o seu Seminário sobre os quatro conceitos, e dizer que uma análise pode (e deve) ter a ambição de conduzir um sujeito à sua “diferença absoluta”, sem desconhecer que essa diferença não é inteiramente estranha à posição de resto. Ou de “rebotalho”, como Lacan se expressou na sua Nota aos Italianos. Assim como o desejo do psicanalista não é puro, a diferença absoluta não se aborda se não se assume uma forma singular de gozo.

 

Andréa Reis Santos: Romildo, durante o debate você diz que “politicamente o que o discurso burocrático visa é aplainar os excessos e com isso permitir que se goze dentro de certos limites”. Sabemos que a experiência de uma análise produz mudanças no regime de gozo e por isso, gostaria que você nos falasse um pouco mais sobre as diferenças entre este “aplainamento” do gozo visado pelo discurso burocrático e uma certa regulação do gozo que acontece durante a análise.


Romildo do Rêgo Barros:
Esta sua pergunta me fez lembrar a questão freudiana sobre a possibilidade ou não de se domesticar a pulsão. O termo “aplainar”, que de fato eu usei para falar da estratégia burocrática em relação ao gozo, é completamente estranho ao que ocorre em uma análise – que, aliás, talvez merecesse um outro nome em lugar de “regulação”, que talvez ainda sofra de uma conotação universal. O que a análise pretende não tem correspondente em nenhum outro laço social: produzir uma certa liberação do gozo, que somente se dá como singularidade, sem com isso acenar para o sujeito com a miragem sadeana.