Bibliô #02
Boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP
Julho de 2013
BIBLIÔ REFERÊNCIAS #002
Jacques Lacan, O Seminário ...ou pior, livro 19. (1971-1972)
De Um e de Outro Sexos.
CAPITULO I
TEMA 1- Linguagem e Metalinguagem
A relação entre linguagem e metalinguagem é um dos temas centrais do ensino de Lacan. Desde o Seminário I até o Seminário XXIV ele o aborda – ora afirmando que toda linguagem implica a existência de uma metalinguagem, pois toda linguagem necessitaria se traduzir, ora criticando a vertente teórica segundo a qual a linguagem seria tomada como objeto-linguagem. No Seminário XVIII “De um discurso que não fosse semblante”, por exemplo, Lacan pontua a diferença existente entre a escrita e a linguagem. Este seria um ponto de apoio à sua afirmação “não há metalinguagem” - e que é retomado, mesmo que subtilmente, durante todo o Seminário XIX “...ou pior” e o uso, e desenvolvimentos, que Lacan realiza a partir dos quantificadores e do uso que ele faz da lógica – e sobretudo da função do não-todo.
A) 1ª posição: Existe metalinguagem
No Seminário sobre “As psicoses”, Lacan afirma que toda linguagem é metalinguagem. Deve-se entender esta posição neste primeiro momento do ensino de Lacan quando ele promove o significante no simbólico. O Outro se inclui a si mesmo, existiria o Outro do Outro – o Outro da lei é Outro da metalinguagem, Nome-do-pai, enquanto que Outro do Outro da linguagem, do significante.
B) 2ª posição: Não há metalinguagem
Jacques-Alain Miller nos seus cursos “Do sintoma ao fantasma e retorno” (1982-83) e em “Extimidade” (1985-86) nos lembra que é apenas num segundo momento que Lacan irá afirmar que não há Outro do Outro através do matema S de A barrado: S(?). Ou seja, não há metalinguagem. O Nome-do-pai é desvalorizado da sua função de Outro da lei, se reduzindo como um artifício que está incluso na linguagem.
Neste sentido, não é possível se utilizar da linguagem como objeto exterior ao sujeito. Por exemplo, uma interpretação que é baseada como que oriunda do exterior do que enuncia o Outro. Neste sentido, a interpretação analítica não é metalinguagem do desejo. A sua justa posição é uma posição de extimidade ao enunciado do analisando, mas isto não implica que ela seja exterior a ela.
Cf. o texto de Eric Laurent sobre a interpretação na orientação lacaniana e o seu princípio que é o de “não há metalinguagem”: E. Laurent “La interpretación ordinária” in Mediodicho – Revista anual de Psicanálise da Escola de Orientação Lacaniana - Seção Córdoba, n. 35 – Año 13, Córdoba, agosto 2009.
Afirmar “não há metalinguagem” é dizer de outra maneira que não existe o sentido do sentido, o Meaning of Meaning, um referência à obra logico-positivista de Ogden & Richards a qual Lacan se refere em diversos momentos: tanto em alguns textos dos seus Escritos assim como, p. ex., no capitulo IV “A escrita e a verdade” do Seminário XVIII.
Com este enunciado “não há metalinguagem”, a psicanalise de orientação lacaniana vêm responder, e fazer eco, aos autores que pressentiam, de um certo modo, o real: “não existe metafisica” de Martin Heidegger e o seu “não existe para-além”; ou mesmo o “não existe metáfora” de Paul Celan que afirmara que “escrever, depois de Auchwitz, não se é mais possível”.
Autores citados:
Sobre a filiação aristotélica do não-todo: Cf. Jacques Brunschwig: « La proposition particulière et les preuves de non-concluance chez Aristote », in Cahiers pour l’analyse n° 10, Paris: Editions du Seuil, 1969, pp. 3-26.
C. K. Ogden & I. A. Richards. The meaning of meaning, a study of the influence of language upon thought and of the science of symbolism, London, K. Paul, Trench, Trubner and Co., 1923.
TEMA 2- O preciosismo e sexualidade feminina
A) O Preciosismo
Este foi um movimento cultural, sobretudo uma corrente literária francesa que data do século XVII e que tinha como objetivo a ideia de se distinguir pela pureza da linguagem, pela elegância dos trajes femininos, assim como pelas boas maneiras e a idealização do amor. Basicamente feito pelas conversas das “précieuses”, das educadas mulheres que frequentavam sobretudo os salões da Marquesa de Rambouillet. Ali se falava de amor entre mulheres, se rejeitava o a priori da superioridade masculina. Entretanto, esse movimento sofreu constantemente críticas dos homens. Cf., p. ex. a comédia de Molière “As ridículas preciosas” (1659).
Sobre as Preciosas em Lacan:
Em diversos momentos do seu Seminário Lacan evoca o Preciosismo. Por exemplo, na aula do 1° fevereiro de 1955 (capitulo IX “Jogo de escrituras”, do Seminário II “O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica”). Neste Seminário, Lacan ao abordar a construção de uma locução, critica a ilusão segundo a qual a locução seria meramente modelada a partir de uma apreensão simples do real. Muito pelo contrário, e é o que demonstra o movimento das “Preciosas”, o fato de que locuções tenham se tornado de uso corriqueiro na língua supõe uma longa elaboração na qual implicações e possibilidades de redução do real são tomadas a partir da operação que se realiza com o emprego de certos significantes.
Por outro lado, Lacan considerou no movimento das Preciosas o lado do Eros da homossexualidade feminina. Elas se interessariam necessariamente pelo amor, ao ponto de inventarem uma teoria sobre o amor, prolongando assim a tradição do amor cortes cujo esforço consistiu em fazer da mulher um objeto, não de gozo, mas de amor.
Autores citados:
Antoine Baudeau e Somaize foi um escritos francês que nasceu em 1630 e morreu em torno de 1680. Ele criticou o Preciosismo e publicou o Grand Dictionnaire des Précieuses ou la Clef de la langue des ruellesem 166, assim como o Grand Dictionnaire des précieuses, historique, poétique, géographique, cosmographique, chronologique et armoiriqueem 1661 – obras em que ele criou uma lista de perífrases dedicadas a elucidas o emprego de termos criados pelo movimento das Preciosas tais como “o conselheiro das graças (o espelho)”, “as comodidades da conversa (a cadeira)”, “sofrer os contragolpes dos prazeres legítimos (dar à luz a um bebê)”, ou mesmo “os rostos da alma (o discurso)”.
Referências
Sigmund Freud. “Algumas consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos (1925), In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (1925-1931). Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XIX.
Jacques Lacan. “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Patricia Howard. “Quinault, Lully, and the Précieuses: Images of Women in Seventeenth-Century France.” in Cecilia Reclaimed: Feminist Perspectives on Gender and Music ed. Susan C. Cook e Judy S. Tsou, editors, pp. 70-89. Urbana: University of Illinois Press, 1994.
Myriam Maître. Les Précieuses : naissance des femmes de lettres en France au XVIIe siècle (Paris : Champion) 1999.
Antoine de Somaize. Grand Dictionnaire des précieuses, historique, poétique, géographique, cosmographique, chronologique et armoirique, 1661, Paris : France-Expansion, 1973.
René Bray. La préciosité et les précieux, de Thibaut de Champagne à Jean Giraudoux, Paris : Albin Michel, 1948.
B) As tetas de Tirésias
“As tetas de Tirésias” é um drama surrealista escrito por Guillaume Apollinaire em 1917. Apollinaire se inspirou no mito do vidente cego de Tebas, Tirésias, para criar um drama onde temas modernos tais como o feminismo e o antimilitarismo estariam entrelaçados. O personagem central é Teresa, que muda de sexo para ganhar poder entre os homens. Seu objetivo é mudar os costumes, rejeitando o passado para estabelecer a igualdade entre os gêneros.
Autor citado:
Guillaume Apollinaire: poeta e escritor francês (1880-1918), é considerado um dos mais importantes poetas franceses do início do século XX, autor de poemas como o “Zone” ou “La Chanson du Mal-Aimé”. Durante um certo tempo ele praticou, e inventou o termo, a “caligrama” (poemas escritos na forma de desenhos e não escritos na sua forma clássica em verso e estrofe). Foi também um importante precursor do que ele inventou como termo de “surrealismo”.
CAPITULO II
TEMA 1- A Questão da Escrita
Eric Laurent, em sua conferência intitulada “A carta roubada e o voo sobre a letra”, pronunciada no curso de Jacques-Alain Miller intitulado “Experiência do real na cura analítica” (1998-1999), e publicada em La Cause Freudienne n°43, em “Os paradigmas do gozo” (outubro de 1999), nos esclarece sobre a questão da escrita e suas divergências entre Jacques Lacan e Jacques Derrida. Sobre esta questão, podemos também nos referir ao capítulo V intitulado por Jacques-Alain Miller “A palavra e a escrita” no Seminário XVIII, De um discurso que não seria semblante (1971) de Jacques Lacan.
A) A letra
Autores citados:
Jacques Derrida: filósofo francês (1930-2004) que se distanciou de Lacan ao criticar a noção da letra, como exposto em “A instância da letra no inconsciente” de Jacques Lacan. A conferência de Derrida sobre Freud (1966) no Instituto de Psicanálise marca, paralelamente, uma escansão, como diria Eric Laurent em sua conferência intitulada “A carta roubada e o voo sobre a letra”. Sabemos, porém, que Lacan o responde em “O aturdito” (1974), Outros Escritos.
Norman J. Kretzmann: filósofo (1928-1988) e professor de filosofia especializado em história da filosofia medieval e filosofia da religião na Universidade Cornell, situada em Ithaca, Nova Iorque, Estados Unidos. Principal editor de The Cambridge History of Later Medieval Philosophy (1982). Krestzman, refere-se ao campo da linguística e da linguagem para explanar suas formulações.
Anthony Kenny: filósofo inglês nascido em 1931 e membro da Sociedade Filosófica Americana desde 1993, dedicou-se ao estudo da filosofia analítica pela via da análise do significado de enunciados. Dedicou-se particularmente ao estudo do pensamento de Tomás de Aquino, apresentando argumentos contra este. Coeditor de The Cambridge History of Later Medieval Philosophy (1982), interessou-se, assim como Krestzman, pelo campo da linguística e por pesquisas sobre a linguagem a partir de obras dos primeiros filósofos analíticos como Frege, Russell, George Edward Moore e Ludwig Wittgenstein.
Jan Pinborg: historiador da linguística medieval e da filosofia da linguagem (1937-1982) e coeditor de The Cambridge History of Later Medieval Philosophy (1982).
B) O sujeito
Autor citado:
Alain de Libera: (1948) historiador e especialista em filosofia medieval, é professor de filosofia na École Pratique des Hautes Etudes. Defensor de um estudo pluralista da razão incluindo normas e exigências, publicou inúmeros livros sobre essa questão, além de Arqueologia do sujeito I. Nascimento do sujeito (2007) e Arqueologia do sujeito II. Nascimento do sujeito (2008) sobre anoção pré-histórica do sujeito em filosofia. Neste contexto, buscou retraçar a arqueologia do sujeito durante o período pré-cartesiano.
CAPITULO III
TEMA 1- A Biologia na Psicanálise
Segundo J. - A. Miller haveria duas biologias na psicanálise, além de Lacan, a de Freud, através do impacto que ele recebe da obra de Weismann, tal como comenta na sua obra sobre Schreber.
A) Biologia lacaniana
Autores citados:
Francis Crick e James Watson desvendaram em 28 de fevereiro de 1953 a estrutura do DNA, a estrutura da molécula mais importante da vida. Como Reconhecimento dos seus trabalhos sobre a molécula de ADN, Watson, Crick e Wilkins receberam o Prêmio Nobel.
François Jacob, biólogo francês (1920-2013) obteve o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1965 pelos importantes estudos sobre a regulação genética das bactérias, autor de “A Lógica da Vida”.
Jacques Lucien Monod, (1910-1976) biólogo francês também agraciado com o Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina de 1965 por descobrir atividades reguladoras no interior das células.
André Michel Lwoff, microbiologista francês (1902 -1994) Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina de 1965, por pesquisar mecanismos químicos da transmissão da informação genética.
B) Biologia freudiana
Autores citados:
Friedrich Leopold August Weismann, (1834-1914) biólogo alemão, descobriu a barreira de Weismann: esta barreira impede, ainda que não completamente, que as células somáticas passem informações para as células germinativas, portanto fundamental, em termos conceituais, para reforçar a teoria da seleção natural de Charles Darwin.
Obras: August Weismann. Porto Editor. Infopédia e “Ensaio sobre a hereditariedade e a seleção natural”.
Sigmund Freud: “Além do princípio do prazer”, capitulo 6, sobre a genética em A. Weismann.
Memórias de um doente dos nervos, Presidente Schreber, sobre “eu a amo”.
_______ “Ensaio sobre a hereditariedade e a seleção natural”.
_______ “Memórias de um doente dos nervos”, sobre “eu a amo”.
TEMA 2- A Lógica da Sexuação
Tema recorrente no ensino de Lacan desde o Seminário 2, “O Eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica”.
Autores citados:
Platón, “Parménides o de las Ideas”. PP.946-990. Ediciones AGUILAR, Madrid, 1966 a 1969.
Kurt Friedrich Gödel, matemático austríaco, naturalizado americanos (1906-1978).
O trabalho mais conhecido de K. F. Gödel é seu teorema da incompletude, no qual afirma que qualquer sistema axiomático suficiente para incluir a aritmética dos números inteiros, não pode ser simultaneamente completo e consistente. Isto significa que se o sistema é auto-consistente, em então existirão proposicionais que não poderão ser nem comprovadas negadas por este sistema axiomático. E se o sistema for completo, então ele não poderá validar a si mesmo, seria inconsistente. Os teoremas da incompletude de Gödel, às vezes também são designados como teoremas da indecidibilidade.
Teorema 1: “Qualquer teoria axiomática recursivamente enumerável e capaz de expressar algumas verdades básicas de aritmética não pode ser, ao mesmo tempo, completa e consistente. Ou seja, sempre há em uma teoria consistente proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas nem negadas.”
Teorema 2: Uma teoria recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente”.
O primeiro teorema garante a existência das proposições chamadas indecidíveis, ou seja, que não podem ser provadas verdadeiras o falsos em dado sistema axiomático.
O segundo teorema impõe uma restrição a qualquer sistema axiomático: não é possível ser consistente e provar a sua consistência, o que não impede que essa consistência seja provada por outro sistema.
Referencias na obra de Lacan:
- “Discurso de Roma”. ESCRITOS, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1995.
- O Seminário livro II: “O Eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica”, capítulos 3, 4, 5, 6 e 7, que tratam da relação entre a função do eu e o princípio do prazer, a partir da leitura lacaniana do “Para além do Princípio do Prazer”. (“Jenseits des Lustprinzips”) Sigm. Freud, Gesammelte Werke, XIII ).
- Le Séminaire livre XX, Encore. Seuil, Paris, 1975.
CAPITULO IV
TEMA 1- A Arte de Produzir uma Necessidade de Discurso
A) O (0) e o número 1.
Autores citados:
Friedrich L. G. Frege, (1848- 1925) matemático, lógico e filósofo alemão publicou em 1884 sua obra “Die Grundlagen der Arithmetik” (Fundamentos da Aritmética), interroga logicamente o concerne ao estatuto do número.
Leopold Kronecker, (1823-1891) matemático alemão, cuja frase “Deus fez os números, todo o resto é obra do homem”, serve a Lacan para resgatar o trabalho de Frege ao se opor a descoberta da aritmética como obra onde se pretende dar conta dos números inteiros.
B) A inexistência, o sintoma e a verdade
A inexistência: ela não é o nada, mais, certo número que faz parte dos números inteiros, porque não há teria dos números inteiros se não se compreende o que vem a ser 0.. N, o que vem a ser o número 0.
A inexistência e o nada.
Autores citados:
Karl Marx: citação deste autor de Lacan (p.49) se refere à problemática da ‘leitura sintomal’ tratada por Louis Althusser em seu clássico estudo que é o Prefacio “Du ‘Capital’ à La philosophie de Marx”. François Maspero, Paris, 1967, In : Lire Le Capital. Tome I. A sua crítica da teoria do valor em Adam Smith é retomada na concepção althusseriana da leitura sintomal.
Gottfried W. Leibniz: Leipzig (1646-1716).
Referencias na obra de Lacan:
- “A significação do falo”, (1959). (Die Bedeutung des Phallus). ESCRITOS, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999. A significação (Bedeutung) é oposta ao sentido (Sinn) que para Frege ser refere ao sentido de uma proposição, o que a fala denota, ou seja, a significação como denotação.
- O leitor lerá com proveito o Seminário XVIII “De um discurso que não fosse semblante”, sobretudo o capitulo 9 “Um homem e uma mulher e a psicanalise” – onde Lacan evoca a significação em relação ao real em oposição ao sentido. Afirma ainda que falar de “significação do falo” é um pleonasmo, pois não há na linguagem outra significação que não seja o falo.
- Lacan, J. “O Aturdito”, Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2003, pp. 491-492. Lacan afirma que a dialética do ser/ter o falo é a função que faz suplência à inexistência da relação sexual.
Pesquisa realizada por: Patrick Almeida, Luciana Castilho de Souza e Mirta Zbrun.
05 de Junho de 2013
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