Versões críticas do patriarcado no Brasil

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O Fórum Zadig Brasil Doces&Bárbaros abordará, desta vez, o ressurgimento do patriarcado, tal como acontece nos dias de hoje, com uma força de penetração que é considerada, por muitos, como a principal fonte do mal-estar contemporâneo. O patriarcado, em sua acepção recente, é um dos conceitos centrais elaborados no seio dos movimentos feministas, desde o seu reaparecimento nos anos sessenta. Segundo esses movimentos, o patriarcado se confunde com o conjunto das formações sociais assentadas em formas históricas e culturais diversas nas quais prevalece a dominação dos homens sobre as mulheres. Portanto, muito desse retorno se faz em função dos gender studies que têm origem nas universidades americanas e que repercutem de modo marcante nas mídias digitais. É preciso considerar que a implantação do patriarcado no Brasil tem uma história, e que a sua crítica é também marcada por uma diversidade de tendências que lhe conferem uma singularidade própria. É a partir deste ângulo das diversas versões críticas, que decidimos realizar, no dia 20 de outubro, na sede da Seção Minas da EBP, das 18:00 às 22:00, um Fórum sobre o tema com o seguinte título: “Versões críticas do patriarcado no Brasil”.

  1. Perspectiva histórica (ordem patriarcal de gênero): há uma primeira perspectiva crítica que resulta da historiografia brasileira, que postula que a cultura patriarcal no Brasil surge com a colonização do país no século XVI, tendo o homem como figura que detinha a autoridade, o poder político e econômico. Convém notar que a maior parte desses estudos históricos se baseia nos estudos de gêneros, ou seja, a sociedade patriarcal surge a partir da desigualdade de gênero presente principalmente no seio da família colonial. Enfatiza-se que a articulação entre gênero e patriarcado culmina na construção teórico-metodológica da categoria de “ordem patriarcal de gênero”. É o que permite estender o patriarcado para outras esferas de sua ação segregativa, como é o caso do racismo. Por último, é preciso considerar que muitos desses estudos críticos fornecem matéria para os movimentos feministas – denominados feminismos decoloniais – que têm como alvo os fortes vestígios do sistema cultural patriarcal imposto pelos colonizadores portugueses.
  2. Manifesto antropófago (modernismo brasileiro): essa tendência crítica do patriarcado vem à tona por meio da apropriação singular do conceito de antropofagia, que tem lugar no momento histórico chave para a cultura brasileira: o surgimento do movimento modernista. Trata-se do manifesto culto inaugural da modernidade brasileira, produzido por Oswald de Andrade, em que se preconiza a ingestão simbólica do colonizador e de sua cultura. Precisa-se que a antropofagia é uma prática característica dos povos indígenas Tupi, vivendo no Brasil antes da conquista dos portugueses. Ao reavivar esse conceito, Oswald de Andrade afirma por meio da palavra poética a singularidade da cultura brasileira com relação à cultura europeia. O manifesto antropófago constitui-se juntamente com o manifesto da poesia Pau Brasil, um de seus escritos mais radicais. Devorar a cultura colonizadora e patriarcal é a reinvindicação mais marcante de seu manifesto escrito em 1928. Por meio deste prazeroso texto, Oswald de Andrade propõe a degustação simbólica do colonizador, reafirmando a modernidade brasileira em um processo de devoração estética e política que consiste não em cancelar a modernidade europeia, mas em assimilá-la, processá-la para gerar uma declinação singular.
  3. A crítica do perspectivismo ameríndio ou o multinaturalismo: essa terceira versão crítica do patriarcado se apoia sobre o saber antropológico que incorpora, em seu cerne, os dois pressupostos básicos das cosmologias dos povos ameríndios. De um lado, o mundo é povoado de seres (inclusive não-humanos) dotados de consciência e de cultura e, de outro, cada uma dessas espécies vê a si mesma e às outras espécies de modo bastante peculiar. Cada uma das espécies se vê como humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de animais ou de espíritos. É perspectivismo porque a posição do ser vivo enquanto humano ou não-humano apenas é ativada pela perspectiva enunciada por esses seres. Vale dizer que a humanidade à qual o perspectivismo ameríndio se refere não é a que opõe a espécie humana à espécie animal, mas a da condição reflexiva de todo ser vivo: homem, animal ou planta. Os termos que compõem a cosmologia dos povos ameríndios são formas de autodesignação que denotam o lugar dos seres vivos do ponto de vista de quem nomeia e de quem é nomeado. Enfim, o uso desses termos se faz enquanto expressões pronominais – expressões que se referem a alguém ou alguma coisa – com as quais se nomeia quem é humano e não-humano.

O antropólogo Phillipe Descola relata o caso dos Achuar da Amazônia, que estabelecem uma diferença ontológica de grau, mas não de natureza entre plantas, homens e animais. Os habitantes dessa sociedade afirmam que plantas e animais possuem uma alma (wakan) semelhante à dos humanos, que conta com intencionalidade e reflexividade. Deste modo, ambos são classificados como pessoas (aents), que têm sentimentos e interagem – inclusive com os homens, através de mensagens que modificam o seu estado de espírito.

Enfatiza-se que o perspectivismo ameríndio se diferencia do relativismo cultural, assim como do universalismo, opondo-se portanto, a essa dicotomia entre um e outro. Em outros termos, se o perspectivismo se mostra contrário ao relativismo e ao universalismo é porque rompe com a cisão entre animalidade e humanidade, o que por sua vez acarreta a dissolução dos binários natureza/cultura, universal/particular e corpo/espírito. Com a perspectiva relativista, a antropologia deflagra a crítica do etnocentrismo, considerando que cada cultura carrega sua própria verdade. A consequência imediata do relativismo é o multiculturalismo, que afirma que se todos os grupos humanos compartilham da mesma natureza biológica, eles não estão submetidos a uma estratificação hierárquica que torna possível classificá-los segundo critérios que revelam a supremacia intelectual ou cultural de um grupo sobre os outros.

Porém, para Eduardo Viveiros de Castro, o multiculturalismo contém um resto etnocêntrico na medida em que impõe a clivagem natureza/cultura para classificar os diversos grupos sociais. Segundo ele, ao contrário da ideia óbvia do multiculturalismo, muitas sociedades ameríndias desenvolvem-se sob a lógica de um multinaturalismo. Enquanto a sociedade ocidental considera que todos os povos possuem uma mesma natureza (ou biologia), e que eles se diferenciam no tocante às suas culturas, segundo o antropólogo, a maioria das sociedades indígenas da América possui uma concepção contrária: suas sociedades são compostas por seres que partilham uma espiritualidade (cultura/essência), mas que se diferenciam em seus corpos (natureza/biologia). A realidade é produzida por uma continuidade metafísica dada pela potencialidade da alma e por uma descontinuidade física gerada pelos diferentes pontos de vista que se desdobram dos corpos. Disso decorre a elaboração central do multinaturalismo perspectivista em que a diferença se constitui por meio da ordem do mundo que se forma a partir de um sujeito específico. Ao contrário, o relativismo cultural ou multiculturalismo concebe a diferença no interior da própria produção cultural dos homens. Nesse sentido, pode-se dizer que o perspectivismo ameríndio é uma torção radical do pensamento antropológico que abala o seu fundamento epistêmico maior que é a separação entre natureza e cultura. É possível perguntar se o patriarcado, concebido como medida universal da coexistência humana, não sofre um abalo quando se rompe com essa clivagem entre a natureza e a cultura.

Enquanto manifestação do discurso do mestre, o patriarcado exige uma filiação, um pertencimento a uma formação social que adquiriu uma abrangência e um valor universais. Não apenas para as visões etnocêntricas, ele é tomado como universal na medida em que se constitui como o fator que torna possível a passagem do estado de natureza para o estado de cultura. Nesse sentido, o patriarcado tem como principal condição a separação entre natureza e cultura. O multinaturalismo próprio do perspectivismo ameríndio pode ser visto como uma crítica dos fundamentos do patriarcado, na medida em que este não é apenas a fonte, mas é também a forma mais acabada do etnocentrismo. Não há como tomar o etnocentrismo sem considerar que a sua definição se faz por ter um inimigo, ou seja, o etnocentrismo se define por rechaçar tudo aquilo que não se filia à ordem paterna.

Enfim, para essas tendências críticas, o patriarcado, enquanto a fonte mesma de instauração do discurso do mestre, é profundamente etnocêntrico e por isso rechaça tudo aquilo que se opõe ao seu domínio e à sua supremacia como ordem discursiva. Diante disso, cabe colocar a questão sobre a concepção crítica do discurso psicanalítico a respeito desse retorno atual do patriarcado. Essa é uma questão que o Fórum Zadig Brasil Doces&Bárbaros – Versões críticas do patriarcado no Brasil – pretende, com os seus recursos conceituais e clínicos – encarar, problematizar e buscar suas próprias respostas. [Jésus Santiago, responsável pelo Zadig Brasil Doces&Bárbaros]