Um pedaço clarescuro 

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Sérgio de Mattos

Cara Tânia,

Espero que sua carta chegue ao seu destino. Mas qual é esse destino? Aí está. No que toca ao passe, acho que o melhor é ir tateando e ir adiante.

Recém nomeado, me deparo, logo no primeiro depoimento, com notícias de um disfuncionamento. Um modelo passa a ser interrogado. Apesar das diferenças de funcionamento em cada uma das Escolas, as ressonâncias repercutem nas estruturas afins. Onde estamos, para onde vamos?

Vou abordar suas perguntas de uma maneira “lateral”, por aproximação. Começo colocando algumas ideias que me ocorreram, as faço um pouco às soltas, tentando evitar um espírito excessivamente crítico que possa inibir um fluxo que pode ser oportuno neste momento, que precisa ser de abertura. Começando uma conversa.

Impasse. Primeiro, aposto que o passe é o lugar dos impasses fecundos. Esse tempo, no qual algum disfuncionamento aparece, é, a meu ver, o coração mesmo desse dispositivo. Como poderia funcionar se não admitisse no próprio funcionamento a possibilidade do seu fracasso? Sem essa pedra de tropeço, não seria o passe uma banca de doutores a julgar a experiência segundo o escopo do já sabido?

Paradoxo. Cabe ao passe topar com um pedaço de real, esse que, como tal, consiste em não se ligar a nada, mas que é um caroço em torno do qual o pensamento divaga. Abordá-lo pela linguagem, pela cópula (ligar um significante a outro), é uma via de desvio muito pouco reluzente, obscura, como diz Lacan no Seminário 23, e continua: “Obscura, aqui é uma metáfora, porque se soubéssemos um pedaço de real, saberíamos que a luz não é mais obscura que as trevas, e vice-versa”.1

O passe pathos. Continuo com o Seminário 23:

Um dia um tal de Newton achou um pedaço de real, isso provocou um frio na espinha de todos aqueles que pensavam, nomeadamente um certo Kant, a respeito de quem se pode dizer que fez de Newton uma doença. Aliás, todos os seres pensantes da época fizeram isso, cada um a seu modo. 2

O propósito de Lacan foi fornecer um pedaço de real, tão virulento como o de Newton. Caberia pensar o passe a partir dessa aspiração? Propagar a “doença”, frio na espinha, a partir do caroço que encontra cada passante?

O AE intérprete da Escola. Do artigo de J.A-Miller, Est-de-passe?, destaco uma formulação: “O passe é sua interpretação”3. Desse texto e conversas com Jésus Santiago, entendo: o passe é uma interpretação — do passante, dos passadores do júri do passe. Uma nomeação interpreta o saber da Escola, seu funcionamento, sua política.

O AE traduz o fato de que ele é analista dessa Escola, e não de alguma outra, o que implica que, na sua enunciação, do lugar de onde fala, estão presentes os avanços ali alcançados, a sua orientação e política, e, desse modo, a maneira como a Escola interferiu na passagem do analisando ao analista. Ao interpretar sua experiência, o passante interpreta os conceitos e a prática presentes em sua formação.

Dialética. Na Escola emerge um campo dialético em torno desse pedaço desse real. A orientação, a política, os dispositivos, os analistas, os passadores, os passantes, a nomeação e seus efeitos, retroalimentam um circuito de produção, não sem perdas, equívocos e descontinuidades nesse sistema.

Uso. O termo sugerido por E. Laurent, “uso dos AEs”4, faz notar que a Escola deve fazer o melhor uso possível dessa experiência. Distinguir suas disposições, o AE: mais um, êxtimo, intérprete… outros… Vou me permitir aqui um jogo de palavras, cabe à Escola: saber AE fazer…  A experiência do passe evidencia uma liberação de gozo, fixado no fantasma e no sintoma, e me parece estruturalmente admissível que essa sobra concentre a atenção do passante nessa nova satisfação, no entusiasmo e no gay savoir que aí se produzem. É preciso, portanto, que se faça um certo “forçamento”, contra essa inclinação, que favoreça escoar esse ímpeto gerado no final de uma análise para que ele ecoe nos cantos da instituição.

Vociferação. No limite, a transmissão não deveria tender a ser uma vociferação, ser a baliza da presença do AE na instituição? Mas a vociferação não é um ato de vontade. Ela se opõe ao ideal. Poderia nos servir como um vetor essa fala que se ajusta às contingências e tem o peso de um corpo? Segundo Miller, essa era a voz de Lacan proferida em seus seminários, aquela que reformulava incessantemente seu ensino a ponto de, às vezes, deixá-lo sem palavras, como testemunha seu ultimíssimo ensino.

Lampejo. Talvez o passe seja uma história de vagalumes à noite. Lampejos que uma grande luminosidade iria devorar. Lampejos para chamar seus congêneres antes que a escuridão retome seu reino.

15 de março de 2022

1 Lacan, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 120.
2 Idem, p. 119.
3 Miller, J.-A. “É passe?” In: A aposta no passe. Org. e tradução Ana Lydia Santiago. Rio de Janeiro: contracapa, 2018, p.122.
4 Laurent, E. “Usages de l’AE”. In: http://lemessager.online.fr/LaQuotidienne/quotidienne12.htm.