Sobre a função da Escola Una

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Glacy Gonzales Gorski 

Ao me inteirar, através do comunicado da presidência da AMP, que há referências ao AE, como pertencendo a uma Escola específica da AMP, senti-me motivada a refletir sobre este fenômeno, que tem a ver com uma visão territorialista e que, de vez em quando, ressurge nos mais diversos planos. Tal fato nos convoca a uma reflexão sobre o funcionamento das Escolas na AMP e sobre a função da Escola Una, o que me instigou a reler os textos sobre a sua criação.

E, assim, pensei em contribuir para o debate no Blog do Passe, trazendo algumas pontuações, principalmente sobre a função da Escola Una e sua importância para a AMP.

Relembro que a Escola Una foi criada no ano 2000. E, como bem salienta Miquel Bassols, ao ser criada, ela era vazia, não tinha membros. Cito: “Era um lugar vazio que permitia que a série das sete Escolas tivesse uma lógica interna distinta à lógica da IPA”. E, nesse contexto, de forma bem instigante, ele faz referência à função do vazio nas residências japonesas, que eles nomeiam de toco-noma. Em cada casa, existe um espaço que ocupa esta função “do Um como vazio”[1].

Ademais, é importante sublinhar que a Escola Una não ocupa um lugar físico, geográfico, uma vez que a referência não é o território, portanto, não possui uma sede e, tampouco, um estatuto. Ela “é uma experiência sem fronteiras, e translinguística”[2] e tem como objetivo manter viva a orientação lacaniana –  ela tem uma relação de extimidade no que tange as instâncias oficiais. E é justamente esta função de extimidade que viabiliza colocar em cena a inconsistência do Outro. Convém lembrar que a extimidade faz alusão ao espaço, e sua estrutura supõe pensar que ela possibilita, segundo Miller, “conjugar o dentro e o fora e nos coloca em condições de construir o modo de presença do real no simbólico”.[3]

O que se configura como essência da AMP é exatamente a diversidade e a multiplicidade de Escolas que se localizam em distintos continentes e em diversos países, com uma variedade de idiomas. A Escola Una, por sua vez, coloca como norte para todas as Escolas e para todos seus membros, o que, apesar da diversidade, lhes é comum: “as referências teóricas, o cuidado pela formação do analista, o estilo na prática da psicanálise, a doutrina do final de análise”[4].

É interessante constatar que a Escola Una existe através do Comitê de Ação. Vale recordar que esta modalidade de funcionamento foi forjada durante a revolta estudantil de 1968, foi aí que Miller encontrou inspiração e, ao conceber estes comitês, concebeu-os como sendo porta-vozes da crítica e de uma posição de extimidade[5]. Também considero como digno de nota o fato de que o Comitê de Ação se dissolve e se recrie novamente a cada dois anos, obedecendo, assim, ao princípio da dissolução, da permutação, que segue a lógica da inconsistência do Outro.

Sublinhemos ainda a importância de algo novo no funcionamento dos Comitês de Ação nos anos 2021-2022, pois temos não só um Comitê de Ação, mas quatro. A inovação se refere ainda à consideração de uma lógica translinguística no funcionamento, o que constitui sua condição de extimidade, uma vez que “a língua do Outro é o elemento êxtimo”[6]. Os trabalhos nos comitês acontecem neste período em Francês, Inglês, Espanhol e Italiano, mas, no entanto, cada comitê inclui participantes que falam estas línguas, mas não são suas línguas maternas. Tal iniciativa produz, certamente, efeitos interessantes de extimidade e permite, também, de alguma maneira, fazer um furo no territorialismo. Além do mais, podemos inferir que este modo de funcionamento possibilita explicitar também que cada língua, com seu esforço territorial para empreender um todo, nunca vai conseguir apagar a dimensão do impossível.

Assinalo ainda que cada um dos Membros da AMP, independentemente da localidade em que atue, deve se empenhar em manter vivo os princípios diretores da psicanálise de orientação lacaniana e estar à altura de sua época. Segundo Miller, compete a cada membro “subjetivar a Escola”, e esclarece ainda que “constituir esta comunidade una não é outra coisa que fazer da escola mesmo um sujeito, um sujeito barrado” [7]. E penso que a Escola Una – com seus Comitês de Ação e seus papers produzidos por membros, um a um – permite estarmos atentos e vigilantes para não escorregarmos na lógica do todo.

Não existe um todo da Escola, ela é antitotalitária e o único enunciado capaz de coletivizar, segundo Miller, é aquele que a nomeia não-toda: “[…] a Escola é um conjunto logicamente inconsistente, é um conjunto sem universal, fora do universo[8].  Portanto, está fora da lógica territorial. 


[1]Bassols, M., “O grupo e o vazio”, fala na conversação com Membros de Escola realizada em Salvador, promovida pela EBP – Seção Bahia? 27.10.2019. Inédita. (Tradução nossa).
[2] Apresentação da Escola Una no site da AMP. Acesso em 28.02.2022.
[3] Miller, J.-A, “El objeto en el Outro”, em Extimidad, Paidós, Bs As, 2010, p. 14. (Tradução nossa).
[4] Apresentação da Escola Una no site da AMP. Acesso em 28.02.2022.
[5] Comitê de Ação – Papers no site da AMP, acesso em 28.02.2022.
[6] Idem.
[7] Miller, J.-A. Revista lacaniana de psicoanálisis, nº1, contracapa, Madrid. (Tradução nossa).
[8] Miller, J.-A. “Editorial”, em Revista lacaniana de psicoánalisis, p. 5, Madrid. (Tradução nossa).