Louise Lhullier
Querida Tânia,
Buscava uma forma de escrever algo para este blog e a modalidade epistolar que você inaugurou me agradou muito. Então, sigo por aí, embora mais pela via de compartilhar minhas próprias inquietações do que de respostas às questões que você coloca.
A conversação de sábado, 19 de março, trouxe à luz o incômodo com as disfunções do dispositivo do Passe, que apareceu de formas variadas nos informes de diferentes Escolas da AMP, sob diversas nomeações. Entre outras: inércia, automaton, decepção, regionalismo, mutualismo, efeito homogeneizador da leitura da experiência de análise sob o império do ultimíssimo ensino de Lacan, descuido.
Foram apresentadas questões sobre as nomeações, o funcionamento do dispositivo, a contribuição epistêmica daí esperada, as instâncias do passe e o exercício das diversas funções. Os AEs, seus testemunhos e o ensino que a partir daí se espera do dispositivo também estiveram em foco na conversação. As reações não se fizeram esperar: por aqui falou-se em frisson, animação, mas também em preocupações, angústia… Enfim, a Escola vive!
O que me inquieta não tem a ver com esse instante de ver, que me parece fecundo e oportuno, mas com alguns movimentos daí decorrentes que me parecem apressados. Para mim, o tempo para compreender ainda não foi suficiente, muito menos sinto que já tenha chegado o momento de concluir.
Em Polêmica política, Miller fala de nossa “formação” como um “tipo de atmosfera que seria preciso visar e da configuração geral da nossa conversação”1, em que “dizemos sim, dizemos não, talvez, por que não? E mudamos de ideia”2. Como ele, gosto e aprendo com esse tipo de conversação democrática e me agrada pensar que ainda temos tempo para, talvez, mudar de ideia a respeito de alguns encaminhamentos propostos, avançando na exploração dos problemas apontados. Como Antonio de Ciaccia, neste momento escolho a prudência.
Tomo como exemplo a proposta de “uma só vez”. Se o passe é único, ou seja, se o acontecimento que dá origem ao passe “é um encontro que se realiza para um sujeito uma só vez”, como escreveu Carlo de Panfilis3, isso nos autoriza a concluir que o endereçamento ao dispositivo só pode ocorrer uma vez? Sabemos que o equívoco acontece, que “a cada momento decisivo da análise, o analisando pode imaginar que acabou. Basta-lhe ter acesso a um de seus significantes-mestres”4. Se um analisando comete esse equívoco, a melhor maneira de tratar a questão é interditar para sempre seu acesso ao dispositivo?
Até onde pude compreender, a proposta visa desencorajar a apresentação de demandas precipitadas, por assim dizer. É bem provável que a medida se revele eficiente quanto ao efeito de inibição pretendido. Mas a que custo? E que outros possíveis efeitos diretos e indiretos podem resultar da adoção de uma regra que desconsidera, por exemplo, o tratamento caso a caso em matéria tão importante para nossa Escola? No caso específico da EBP, aliás, se observa também esse disfuncionamento? Se não, por que adotar tal regra?
Miller responsabilizou-se por ter cometido um “erro” ao dizer, certa vez, que a candidatura ao Passe poderia ser apresentada “uma vez, eventualmente duas”. Não vejo erro aí, ao contrário, pois esse “eventualmente” abre a perspectiva da abordagem caso a caso, enquanto “duas” estabelece um limite. A meu ver, o que vale questionar é: o que se passou para que esse “eventualmente duas” tenha se transformado em três, quatro, cinco vezes como norma?
Para finalizar, uma última questão: interditar para sempre o acesso ao dispositivo do Passe para uma parte dos membros não resultaria em nova forma de segregação? Ante a constatação de uma tendência à constituição de castas (de AEs e “ex-AEs”) na Escola, esse parece um risco a considerar.
Fico na torcida para que a conversa siga, apostando no funcionamento.
Abraços virtuais, com saudades dos presenciais!