Não sabido

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 Henri Kaufmanner

Caros colegas da EBP,

Queridos Tânia, Sérgio e Louise,

Resolvi escrever a partir de suas cartas e das ressonâncias em mim provocadas pelo Encontro Marcado com o Passe. Diversas questões ali surgidas foram já assinaladas na carta de Louise Lhullier. Gostaria, contudo, de ressaltar uma outra questão que me tocou particularmente e foi trazida por uma colega da Espanha. Não estaria o Passe tomado pelas experiências identitárias ou mutualistas de nosso tempo, como efeito da lógica contemporânea em nossa Escola? Bem, ao menos foi o que entendi da questão apresentada pela colega.

Éric Laurent prontamente descartou essa preocupação, lembrando que o Passe é um dispositivo sempre atravessado por sua verificação. Não somente uma nomeação se dá a partir da transmissão de uma experiência singular de análise a um Cartel, como também, o assim nomeado AE, terá três anos para sustentar essa nomeação diante da comunidade da Escola Una. Como acentuou Laurent, nem sempre esse ensino deixa de gerar, digamos, suas desconfianças. Em suma, não é algo que aconteça sem revelar seus furos.

Como pensar então a crise do dispositivo do Passe?

Pergunto-me frequentemente como é que a realidade contemporânea atravessa nossa Escola. Estaríamos no mais aquém do Passe, ali onde a hierarquia não é tocada pelo gradus, atravessados pela tensão da prevalência no mundo da imagem, das lógicas identitárias ou do politicamente correto, expresso mais claramente a partir da discussão do movimento Woke? Foi nesse escopo que a pergunta da colega da Espanha me tocou. Quais os dispositivos da Escola, no caso do Brasil, por exemplo, para lidar com o mutualismo, tão tentador em uma Escola continental, como lembrou Miller na ocasião do Encontro Marcado com o Passe?

Nessa perspectiva, ganha relevo a questão relativa ao AE como intérprete da Escola, na medida em que a tomamos como sujeito e que tem a interpretação como laço que nos une.

Qual lugar para a interpretação? Não estaria em jogo a preocupação com um certo automaton do Passe ligado a uma leitura de que algo do dispositivo vem fazendo série e assim funcionando por acúmulo de sentido? Estaria o Passe sendo traduzido por um saber e, como consequência, esvaziado de sua função interpretativa, pelo menos se a pensamos a partir do último ensino de Lacan?

Se o Passe se encontra preso a um certo ideal, em uma pura reiteração de gozo, infinita pois inalcançável, é preciso fazer valer algo do que Sérgio de Mattos retoma a partir da questão da vociferação.

Segundo Laurent[1], a noção de significante novo surge em Lacan no Seminário XXIV como herdeira da jaculação que, por sua vez, é parceira da vociferação, designando um sentido real a essa voz. Em O banquete dos analistas, Miller nos mostra a proximidade dessa construção lacaniana com a invenção do número transfinito por Cantor[2], o aleph 0 (0).

Toda cadeia progressiva infinita (crescente ou decrescente) tem em sua progressão um inalcançável, um mais além. Miller propõe chamar este mais além de “não-sabido”. O transfinito seria o número deste não saber, um número que escreve este inalcançável, e que, mais do que isso, se revela como impossível em cada elemento desse conjunto, pois cada inscrição, cada número, cada letra de uma cadeia, carrega em si um furo, um não-sabido. O número transfinito, portanto, está presente em toda a progressão da série, em cada um de seus elementos. Ele “numera” o infinito presente em cada finitude.

Isso permite que nos aproximemos da ideia do uso do AE como êxtimo, Mais-um ou intérprete.

A nomeação do AE revela algo desse “trans-finito”. O trans aqui entendido como aquele que, fora do conjunto, escreve o que da finitude escapa e não se pode alcançar. É um nome para o não sabido, um significante novo fora da cadeia de sentido.

Se seguimos o desenvolvimento de Miller, veremos que a exterioridade ao saber nomeia de fora esse incalculável, esse não saber, esse real presente em qualquer estrutura. Como poderia o AE, como intérprete da Escola, resgatar o que insiste como não sabido nos acúmulos de sentido da Escola e seus fenômenos imaginários?

Parece-me que a discussão sobre o Passe pode nos ajudar a atualizar o dispositivo a uma nova realidade na qual a Escola se insere. Uma realidade onde a dimensão agalmática da causa é retirada de cena pelos objetos de gozo, que inseridos no mundo concorrem para uma existência superficial, reduzida ao amor e ao ódio, à segregação ou ao mutualismo. Não há como desconhecer os efeitos do virtual sobre nossa própria experiência de Escola, por exemplo.

O AE para nós é sem dúvida agalmático.  Talvez o atomaton que se apontou nos relatos do Encontro Marcado com o Passe traga algo de uma certa acomodação ao dispositivo, o que nesse caso não nos parece interessante.

A experiência do Passe verifica a invenção deste significante que nomeia o impossível de dizer, suspende o deslizamento do sentido, revela o que “atravessa” o infinito de uma vida. A pensar melhor como isso pode repercutir no vivo da Escola.

Espero que a conversa continue.

Um abraço.

Belo Horizonte, 05 de abril de 2022.


[1] LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. In.: Curinga 50. Trad.: Sérgio Laia, Belo Horizonte: EBP-MG, 2021 p.168-188.
[2] MILLER, J.-A. (2011). El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, p. 365.