21 de novembro 2013 - Hotel Panamericano - Buenos Aires - Calle Carlos Pellegrini 551

 

Boletim haun #004

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Editorial

Maria Josefina Sota Fuentes

As pinturas cegas de Tomie Ohtake e a escrita cartelizante sobre o haun.

 

Dobradiça de Cartéis

 

Conforme nos aproximamos da comemoração dos 100 anos da artista plástica brasileira Tomie Ohtake, que será exatamente no mesmo dia em que realizaremos o Seminário Internacional da EBP, haun, em Buenos Aires – dia 21 de novembro de 2013 –, podemos buscar as ressonâncias entre a tese central do Seminário 19, ... ou pior, de Jacques Lacan, explorada nos textos que este Boletim vem recolhendo, e a obra da artista.


No marco do início da celebração do centenário de uma das mais expoentes artistas brasileiras do século XX, Tomie Ohtake, a mostra das pinturas cegas, realizada em 2011 e sob a curadoria de Paulo Herkenhoff, retrata a aventura da artista entre 1959 a 1962 na qual se lançava numa experiência única de pintar com os olhos vendados.


Segundo a visão do curador, a artista parece procurar o ponto cego ou o vazio da pintura subtraída da forma e da cor, do sentido e do próprio olhar. No limite da percepção, Tomie assim pinta o inominável, o silencioso, posto em marcha pela pura ação do tempo em que se desdobra tal experiência, onde a operação de redução atinge sua máxima expressão e localiza-se um ponto, ou melhor o ponto no qual a artista pode, por fim, ver em plena cegueira. “Quando fiz esta série de olhos fechados – explica a artista – , buscava retirar a cor e a forma para encontrar o osso da pintura”1.


Que lugar teriam as pinturas cegas, buscar o osso da pintura, “no mundo sem centro”? – indaga com lucidez seu curador.
No Seminário 19, ...ou pior, Lacan adentra num terreno que contrasta com aquele percorrido num primeiro momento de seu ensino, quando explorava o poder das substituições próprias da linguagem, onde a metáfora paterna mostrava todo seu alcance como operador capaz de arrancar a criança da posição de objeto de gozo do Outro materno. Mas nesse Seminário, a relação S1-S2 reduz-se a um semblante e a função paterna mostra seus limites frente ao que inexoravelmente se apresenta: Há-um gozo que insiste como um real que não se liga a nada nem se dissipa, o Um sozinho, que se manifesta ali onde esperaríamos encontrar a relação sexual que não há.


No mundo sem centro e nem pai, onde o Outro desfalecido já não responde, onde se sustentar?


No quarto número do Boletim haun será a vez de encontrar as respostas nestes três textos que seguem, que são produtos de Cartéis declarados na EBP e que trabalham direta ou indiretamente o tema o Seminário 19,... ou pior, de Lacan.

 

Zelma A. Galesi indica ao menos uma consequência fundamental da tese do “Há-um” no ensino de Lacan: a passagem do sintoma ao sinthoma. Nessa mesma direção, Paula Marinho avança explorando a relação do Um com o sinthoma, indicando um real que existe no S1 separado do S2, e que pode se inscrever como uma letra na construção de um sinthoma a ser tecido em uma análise. Paula Borsoi nos apresenta um caso em que um muro intransponível na queixa de uma mulher frente aos impasses emergentes na parceria amorosa, torna-se um nome do impossível, expressão do amuro. Finalmente, graças ao Bibliô Referências deste número, podemos decifrar a “carta de a(muro)”, trabalhada no Capítulo VI do Seminário 19 de Lacan.

 

1 HERKENHOFF, P. Pinturas cegas: Tomie Ohtake. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2012, p. 79.

 

 

Algumas  consequências do Há o Um no ensino de Lacan

Zelma A. Galesi

 

Foi a partir do último ensino de Lacan, precisamente, a partir do Seminário, livro 19, que a questão do real se tornou dominante. O que lhe permitiu avançar até esse ponto foi o que chamou de gozo feminino, um gozo não-todo, indizível, infinito, não mediado falicamente.1 Se, num primeiro tempo, distinguiu o gozo feminino do masculino, na sua última teoria do real – condensado no aforismo não há relação sexual, ou Há o um (Yad’lun) –, as posições subjetivas (masculina e feminina) passaram a ser sintomas, suplências da relação sexual que não existe. Ao generalizar o não-todo, Lacan faz dele o regime do gozo como tal. Alcançar as consequências últimas dessa mudança de perspectiva é o que nos interessa aqui.


Algumas consequências podemos apreender na sequência do seu ensino, com  a imprescindível passagem do sintoma para o sinthoma. Se o falo obedece ao regime da castração, e o sintoma se origina no momento em que o sujeito se confronta com a castração, ele é tomado pelo sujeito como um efeito de verdade pensado em termos significantes.  Lacan vai  modificar esse  termo para falar de sinthoma, colocando, em primeiro plano, o efeito de gozo, o que resulta numa nova definição do significante, do significante como se referindo ao corpo, sob a modalidade do sinthoma, um gozo que está fora do significante e da significação, mais-além do fantasma 2 , no qual considera que, de fato, o significante já de entrada é causa de gozo. 3


 O gozo é, então, localizado como subtraído da maquinaria do Édipo, da mortificação significante sobre o corpo, do corpo como  corpse (cadáver)4 , que foi uma maneira de ele representar a anulação da libido e do gozo. Agora, o gozo vai ser reduzido a um puro acontecimento de corpo que nos dirige ao nível da existência e não da dialética.5 Lacan vai apoiar-se, então, na lógica matemática para cingir e fisgar algo deste real  conjugado com a escrita, já que o Outro não existe para o regime do gozo e as palavras faltam para dizer desse gozo, por um impossível ao nível da estrutura.


Paralelamente,  neste momento, Lacan antevia que a globalização havia mergulhado a cultura na posição do não-todo. Então, passou a destacar que esse indizível e sem limites encontramos, também, no modo de gozo contemporâneo desligado da perspectiva do pai como significante amo da civilização, anulado desde a sua função de proibição como agente da castração. Sendo assim, a negativização do gozo não se processa, mas sim a sua positivação, ou seja, uma mostração e jubilação do gozo que se experimenta.


Se antes o sujeito barrado estava identificado ao corpo mortificado num nó bem apertado entre a linguagem, a Lei e o falo, neste momento  último,  com as novas contingências da subjetividade, Lacan vai retomar a relação do falo com o Nome do pai promovendo-os à categoria de sintoma, sendo que a questão da não-relação entre os sexos não se resolve mais pela via da ética do desejo mas, sim, graças à responsabilidade pelo sintoma e pela diferença sexual. Esta parece ser  uma questão e consequência primordial situada, com  precisão, no Seminário, livro 23, o sinthoma.


O que vai vigorar, neste contexto como a lei do Pai, não é mais a Lei edipiana, que diz Não àquilo que interdita o constituinte do desejo, mas, sim, a lei do amor, sendo que é um amor nascido da responsabilidade pela diferença sexual, que surge do casamento impossível entre o organismo e a linguagem, entre o corpo e a declaração subjetiva de pertencer a um sexo. Pois, não há responsabilidade, senão sexual. "Não se é responsável, senão na medida de nosso savoir-faire".6


Então, como o conceito do sinthoma  pode formular que o real é sem Lei, isto possibilita entrar na clínica da contingência  a partir da conexão entre o significante (S1-UM) e o gozo, que está incrustrado no corpo do sujeito na forma de objeto (a), que é uma fixação de real. Diante disto, o “Há o Um” possibilitou a clínica da união entre o significante e o gozo. Se há o um, é porque há o corpo vivificado, o corpo inserido na condição de algo que goza intensamente como consequência do significante, ou seja, ele privilegiou o significante como causa de gozo sobrepondo-o ao significante como mortificação.7


 Se tal palavra do Outro tomou valor determinante para um $, é porque “o Um  começa ao nível onde há algo que falta”8, ou seja, somos remetidos à contingência de uma história particular, “a algo que num momento cessa de não se escrever” e fixou-se para o sujeito num encontro. Tudo o que concerne à emergência de um modo de gozo particular de um sujeito, é sempre da ordem da contingência, da redução da análise ao traumatismo.  Estamos na passagem do “Eu sou” (je suis) para o “Eu gozo” (il se jouit), momento em que desaparece o $. Esta redução à contingência é da ordem do possível, do desinvestimento do patógeno/traumático, ou seja, é um momento que deixa de se escrever. É aqui onde se inscreve o ato analítico e se joga o destino do sujeito, na margem entre a redução significante (S1-UM) e a redução quantitativa (J), e é também aqui que se escreve o passe, precisamente em caráter de possibilidade: onde o falasser pode demonstrar  de que maneira atravessou as vicissitudes da existência e encontrou um singular modo de gozar, fora do sentido.

 

1 Cartel formado por Zelma A. Galesi (mais-um), M. Souza e Silva, Nancy Carneiro, Nohemí Brown, Teresa Pavone, Maria Fátima Ramos e Inez Carneiro, cujo tema é “O real no século 21”.

2 Lacan, J. Le Séminaire, livre XIX…ou pire (1971-72), Paris: Seuil, 2011, p. 167.

3 Miller, J.-A. El partenaire-síntoma, Buenos Aires: Paídos, 2008, p. 386.

4 Idem, p. 385.

5 Lacan, J. Autres écrits: Radiophonie (1970), Paris: seuil, 2001, p. 409 ; Miller, J.-A. El partenaire-síntoma, Buenos Aires: Paídos, 2008, p. 383.

6 Miller, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana: O Ser e o Um, 2010-2011, inédito. 

7 Lacan, J. Le Séminaire, livre XXIII, Le Sinthome (1975-1976), Paris: Seuil, 2005, p. 61.

8 Miller, J.-A. El partenaire-síntoma, Buenos Aires: Paídos, 2008, p. 386.

9 Lacan, J. Le Séminaire, livre XIX…ou pire, op.cit,  p. 146.

 

 

Homem e mulher: o real da não-relação

Paula Borsoi

 

A tomada de posição por um dos lados da partilha sexual, a sexuação, não é um processo linear e não se dá sem desordem. As manifestações sintomáticas advindas do processo da sexuação, aliadas à desordem própria da sexualidade, agravam-se como efeito de um simbólico que não é mais o que era, fruto da “desordem do real no século XXI”. Esta expressão foi usada por Miller – quando da apresentação do tema do próximo Congresso da AMP –, na qual abordou as transformações sofridas pelo conceito de real na obra de Lacan. Ele enfatizou que o real não obedece mais às leis da natureza, fato este que gera, como um dos efeitos, deixar os sujeitos à deriva, sem parâmetros.


O trabalho realizado pelo cartel da leitura do Seminário 19 de Lacan, do qual participo, tem trazido, para mim, inúmeras e crescentes questões sobre como se dá a incidência dessa desordem na sexualidade feminina. A questão se refere a como o não há relação sexual – afirmação sobre a impossibilidade de complementariedade entre os sexos – se articula com o Há-um. É desta forma que Miller apresenta este Seminário de Lacan, dizendo que o “Há-um sozinho em seu gozo, como em sua significação, completa o não existe da relação sexual”. Ele prossegue esclarecendo que essa mudança da ordem simbólica engendra no real um simbólico, “que não é outra coisa no real senão a iteração do Um” .


A dimensão de real contida no sintoma remete àquilo que não anda, que não cessa de se repetir, fazendo fracassar, deixando sem lei o modo com que cada um lida com a inexistência da relação sexual. Numa análise, o encontro amoroso, a construção da parceria sintomática, é o modo privilegiado com que o sujeito vai dando notícias dos restos desordenados do real que, desordenando o corpo, tocam o real do sexo. O sintoma tem leis próprias e, quando isso se articula ao real, é essa articulação que o sujeito vai usar como bússola, que vai então decidir, não o sentido, mas a relação com o impossível e a contingência.  O real sem-sentido aponta para uma disjunção entre amor e saber. A rigor, não se precisa saber nada para fazer algo, isso valendo também para o amor. Sendo assim, homens e mulheres se encontram como podem, entre o impossível de fazer relação e seu gozo autístico. Na sexualidade feminina, a função fálica, quando está presente, é usada como máscara para a inexistência da relação sexual, conjugando corpo, gozo e linguagem ao criar um obstáculo à posição feminina.
Um muro. Foi assim, dessa maneira, que a analisante descortinou o engodo de sua posição fálica frente ao marido. Após uma sequência interminável de brigas, de uma disputa sem tréguas, frente a uma radical diferença entre ela e ele, ergueu-se o impossível do diálogo. Ficou paralisada, trêmula, com a cabeça oca. No momento seguinte, teve vontade de “sair correndo”. Tem, com ele, uma relação de muita rivalidade, quer ser como ele e almeja dividir tudo igualmente. Sua posição poderosa é obstinada e gira em torno dessa busca de igualdade. É com um ideal de que sua posição fálica a possibilitaria atravessar um muro, que até então fazia a relação sexual existir. Esse falo-muro encobre o que não existe e, a vontade de sair correndo, é o que há: ela está entre esses dois significantes, sozinha em seu gozo.


Se o valor do parceiro diferente, aquele que designei respectivamente por o homem ou a mulher, é inabordável na linguagem, é muito precisamente porque a linguagem funciona desde a origem como suplente do gozo sexual. Através disso, ela ordena a intromissão do gozo na repetição corporal.

 

Suplente é alguém que é chamado quando o que está designado falta e, ao mesmo tempo, pode estar lá ou não. A linguagem é usada quando algo falha, rateia, mas, ao mesmo tempo, é um recurso, pois também ordena algo. O corpo é onde se goza e a linguagem é que vai causar essa marca do significante no corpo, condenando-nos a uma experiência que vai se repetir incessantemente, enquanto estivermos vivos. Essa repetição também comporta a dimensão de um real indizível, inominável.


O muro, essa barreira impossível de se transpor, ressoou pela primeira vez como o nome do impossível, desmontando, de modo radical, a fantasia de que ela poderia derrubar o muro inteiro, sem inventar uma passagem. Ela supõe que este muro pode não existir para as coisas funcionarem. “O significante Um não é um significante entre outros, e supera aquilo pelo qual é apenas no entre-dois desses significantes que o sujeito é suponível, em minhas palavras.” E Lacan continua: ”Mas é aí que reconheço que esse Um é apenas o saber superior ao sujeito, ou seja, o inconsciente, na medida em que se manifesta como ex-sistente – o saber, digo eu, de um real do Um sozinho, inteiramente só, onde se diria estar a relação” .


Este tem sido o modo sintomático de a analisante escapar, defender-se, ao preço de uma intensa angústia frente ao que Não há e também ao que. Ela fala do que não existe, mantendo seu gozo opaco e operando sem que ela saiba nada disso. A análise pode fazer um furo no real, sustentando que, frente à falta de acordo e da desarmonia entre os sexos, o muro tem sua função.

 
Para concluir: neste Seminário, Lacan vai afirmar: “Há-um e mais nada, porém se trata de um Um muito particular, aquele que separa o Um de dois, e isso é um abismo” . É com esse paradoxo, que o Um que há é absolutamente particular, e não acessa o dois, ou seja, não é pela via da cadeia significante que fazemos relação. Esta via, sim, é um caminho mortífero que pode levar ao abismo, pois só se pode contar com esse Há-um. Nas relações amorosas, homens e mulheres fazem barreira ao impossível de fazer relação, falando sem parar de como isso deve ser. A cada decepção, o que comparece é o gozo que marca e impossibilita a união ideal. O que há não pode ser compartilhado, o que não existe faz relação, o que resta, quando o amor acontece, é fazer um casamento sob o fundo de uma separação, ou seja, só, mas bem acompanhado.

 

Esse parece ser o modo possível de fazer parceria atualmente: inventando um casamento não natural, de criaturas paradoxais, que se encontram em buracos cavados com amor, no a (muro).

 

Cartel formado por Paula Borsoi (mais-um), Claudia de Paula, Francisca Mentha, Gloria Maron, Vicente Gaglianone, cujo tema é “O corpo na psicose: perspectivas do Seminário 19”.

MILLER, J.-A. Apresentação do Seminário 19 ... ou pior.

Lacan, J. O Seminário, livro 19 ...ou pior, Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 44.

Lacan, J., ibid., p. 234.

Lacan, J., op.cit.

Lacan, J., ibid., p. 187.

 

 

O Um e o sinthoma

Paula Duarte Félix Marinho

 

Neste texto, pretendo abordar as afinidades entre a noção de Um e o sinthoma criada por Lacan a partir da leitura do seu Seminário, livro 19: ... ou pior (1971-1972). Ao longo desse Seminário, Lacan apresenta algumas definições muito ricas a respeito do Um, em especial: sua relação com o significante mestre, seu fundamento no lugar de uma falta, seu lugar na constituição do Ser, sua fundamentação como pura diferença e seu surgimento no real como Um sozinho. A partir dessas características, podemos ler a categoria clínica do sinthoma como expressão clínica do Há algo do Um.


Lacan afirma que se trata do significante quando fala do Há-um, já que ele é o significante mestre. O Um surge do efeito da falta, pois é no momento em que falta um parceiro nas duas séries comparadas que surge a ideia do Um. Ele tem seu fundamento na pura e simples diferença. Pois, o que o caracteriza, é a ausência de outra referência qualitativa. Quanto ao Ser, o Um não é o Ser, mas sim constitui o Ser.

 

Há algo do Um: o sinthoma

 

A partir da formulação Há algo do Um, ou seja, o real existe no S1 separado de S2, Lacan nos convida a pensar a consistência do significante como um significante que pode se inscrever como uma letra. O Um de que se trata no S1, produzido pelo sujeito na análise, é o inverso do que se trata na repetição. Nesse caso, o Um surge como Um só. Existe o Um na medida em que, seja qual for a diferença existente, há apenas uma: a diferença. Quando o Um se articula, como diferença pura, destaca-se exatamente isto: não há dois. Dessa forma, ou bem – e Há-um –, ou bem não-dois, o que se interpreta: não existe relação sexual.  


Por fim, de acordo com Lacan, o Um é o saber inconsciente, o saber de um real do Um sozinho, inteiramente só, onde estaria a relação. O Um do sinthomaque é a redução a um modo de gozo invariante e singular, tem suporte na concepção do inconsciente como real. Lacan forneceu uma breve definição do inconsciente real no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” (1976), como aquele em que o espaço de um lapso não tem mais impacto de sentido ou interpretação e, ainda, o que se sabe consigo.


Cartel formado por Laura Rubião (mais-um), Rodrigo Guedes, Paula Félix, Márcia Bandeira e Bruno Machado, cujo tema é “Leitura do Seminário 19...ou pior”.

 

Bibliô Referências

 

 

Referências do Seminário, livro 19, … ou pior, de Jacques Lacan.

Pesquisa realizada por Mirta Zbrun e sua equipe, Patrick Almeida e Luciana Castilho de Souza.

 

CAPÍTULO VIPE?O A TI QUE ME RECUSES O QUE TE OFERE?O

TEMA: DEMANDA, RECUSA E OFERTA.

 

O título, Peço-te que me recuses o que te ofereço, estabelecido por Jacques-Alain Miller, nos orienta, ao longo do presente capítulo, no que tange à relação que Lacan estabelece entre demanda, recusa e oferta. Sabemos, porém, que tal tema é central no ensino de Lacan, mas poderíamos pontuar justamente sua articulação, retomada por Lacan neste capítulo, com o nó borromeano. Ora, Lacan inicia tal capítulo com sua formulação: carta de (a)muro, lettre d’amur, articulando-a com demanda, recusa e oferta.

 

A) A verdadeira carta de (a) muro

 

Lacan afirma que se trata precisamente de “peço-te que me recuses o que te ofereço” e acrescenta: “porque não é isso”. Neste sentido, Lacan nos indica que se deveria escrever: “Peço-te que me recuses o que te ofereço por que: não é isso”. Dentro disso, Lacan isola cada nível verbal e articula, ao longo do capítulo, demanda, recusa e oferta, pontuando o efeito desse (des)nodamento. Tal articulação nos remete ao gráfico do desejo desenvolvido por Lacan em seu Seminário livro 5, as formações do inconsciente (1957-1958), porém, aqui estariam presentes algumas formulações amplamente desenvolvidas posteriormente, como o nó borromeano, em seu Seminário, livro 22, R.S.I.

 

B) Lacan ressalta o trabalho de Roman Jakobson referente a Boetius Dacus e às suas suppositiones

 

Neste sentido, Lacan sublinha a questão do significante e, partindo da análise linguística, articula demanda, recusa e oferta especificando, assim, o estatuto e as funções dos verbos pedir, recusar e oferecer. Assim, ao isolar o “não é isso”, Lacan se refere, paralelamente, aos trabalhos dos filósofos Ludwig Wittgenstein e Alexandre Kojève e suas respectivas asserções: “o que não pode ser dito, não falamos”. Ora, Lacan ressalta justamente a importância do “não é isso”, reservando-lhe um lugar essencial no próprio enunciado como aquilo que não podemos falar. Neste contexto, Lacan formula: “porque não é isso, o que? Que eu desejo”, e evoca, por conseguinte, o discurso do analisando e aquilo ao qual o analista (não) responde. Poderíamos articular tal pontuação ao que Lacan desenvolverá posteriormente no final de seu ensino, em seu último Seminário livro 25, O momento de concluir (inédito), em sua lição de 15 de novembro de 1977, a saber: “O que define a demanda é que a gente somente demanda através daquilo que a gente deseja – quero dizer, passando por aquilo que a gente deseja – e aquilo que a gente deseja, a gente não sabe”. Aqui, não deixa de ser interessante a referência de Lacan ao desejo do analista e ao Sujeito Suposto Saber e o retorno, nessa mesma lição, ao nó borromeano.

 

Autores citados:

Roman Jakobson (1896-1982): pensador russo, pioneiro da análise estrutural da linguagem, poesia e arte. C.f. Jakobson, Roman. Linguística. Poética. Cinema. Tradução Haroldo de Campos et alii. Editora Perspectiva. São Paulo. 1970.

Boetius Dacus (470 – 524): filósofo romano do início do século VI e autor do célebre livro Consolation de la philosophie, uma obra neoplatônica. É considerado como sendo uma referência fundamental da filosofia medieval e da transmissão da lógica aristotélica.            

Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo austríaco, considerado um dos principais autores da filosofia analítica do século XX. O único livro de filosofia que publicou em vida, o Tractatus Logico-Philosophicus, de 1922, exerceu profunda influência no desenvolvimento do positivismo lógico.

Alexandre Kojève (1902- 1968): filósofo francês de origem russa, mestre e amigo de Lacan, tendo exercido grande influência sobre a filosofia na França no século XX, especificamente no que tange seus etudos sobre Hegel.

Jules Henri Poincaré (1854-1912): matemático, físico e filósofo que desenvolveu o conceito de funções automórficas a fim de utilizá-las para resolver equações diferenciais lineares de segunda ordem com coeficientes algébricos. Em 1895, publicou Analysis situs: um tratado sistemático sobre topologia.

Georges-Théodule Guilbaud (1912-2008): matemático francês e amigo de Lacan, conhecido por transmitir métodos matemáticos nos campos da economia e das ciências sociais.  Segundo nos indica Jacques-Alain Miller, G-Th. Guilbaut havia popularizado na França a teoria dos jogos no período pós-guerra.

 

Referências na obra de Lacan:

Sobre a carta de amor:
Jacques Lacan. Cf. O seminário livro 19 ...ou pior, lições de 3 de fevereiro de 1972 e de 9 de fevereiro de 1972; O seminário, livro 20, mais, ainda, lição de 13 de março de 1973; O seminário, livro 21, Les non-dupes errent, (inédito), lições de 15 de janeiro de 1974 e 12 de fevereiro de 1974.

 

Sobre a referência à Roman Jakobson na obra de Jacques Lacan:

C.f. O seminário, livro 3, as psicoses, lição de 2 de maio de 1956; O seminário, livro 5, as formações do inconsciente, lições de 6 de novembro de 1957 e 13 de novembro de 1957; O seminário, livro 9, l’identification (inédito), lição de 23 de maio de 1962; O seminário, livro 12, problèmes cruciaux pour la psychanalyse (inédito), lições de 2 de dezembro de 1964 e 28 de abril de 1965; O seminário, livro 14, la logique du fantasme (inédito), lição de 1° de fevereiro de 1967; O seminário, livro 19, ...ou pior, lição de 9 de fevereiro de 1972; O seminário, livro 20, mais, ainda, lição de 19 de dezembro de 1972.

 

 

Organização do Seminário Internacional “haun - Leituras do Seminário 19: ou pior” de Jacques Lacan

 

Diretor
Marcelo Veras

Comissão Organizadora
Coordenadoras: Maria Josefina Sota Fuentes e Glacy Gonzales Gorski


Heloísa Prado Telles, Cleide Pereira Monteiro e Simone Souto

Comissão Científica
Coordenador: Jésus Santiago


Marcus André Vieira e Elisa Alvarenga

 

Boletim Haun


Editores: Glacy Gonzales Gorski, Cleide Pereira Monteiro e Maria Josefina Sota Fuentes
Colaboradores: Carla Serles, Patrick Almeida e Júlia Solano

 

Logomarcas: Luiz Felipe Monteiro sobre a obra de Escher (Dobradiça de Cartéis) e Bruno Senna (Bibliô Referências).