Territórios Lacanianos #013

Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis

 

Editorial

 

Esta edição de Territórios Lacanianos traz notícias de uma experiência de supervisão clínico–institucional em dois CAPS da rede de Saúde Mental da cidade do Recife.


No primeiro texto, Rosane da Fonte, Membro da AMP/EBP e Diretora da Seção PE/EBP, introduz o tema da supervisão, destaca a importância deste dispositivo para a prática e para a teoria psicanalítica, e ainda apresenta um questionamento sobre "Como reordenar a supervisão para os dias de hoje", dada às mudanças sofridas pela civilização diante das quais o psicanalista deve estar atento.


Como exemplo da constante reordenação dos dispositivos, Rosane nos introduz ao trabalho que é desenvolvido nos CAPS e que é apresentado no segundo texto assinado por Anamaria Vasconcelos.


Nesse texto, Anamaria nos fala de sua experiência e de como busca se servir da teoria psicanalítica para orientar sua prática de supervisora dos CAPS. Apresenta questões sobre o lugar da supervisão, a função que pode cumprir em uma instituição de tratamento e aponta para a especificidade do trabalho em uma clínica ampliada quando o supervisor busca se colocar em uma posição de extimidade e se orientar pela psicanálise.


 

Introdução

A supervisão é um dispositivo da formação analítica que, desde Freud, encontra consenso entre os analistas dada a importância de sua função. Tem estreita relação com a experiência analítica e com a teoria, sendo esse tripé suscetível às modificações do discurso predominante em cada época.


Lacan é contundente quando se dirige aos analistas e afirma: aquele que não pode acompanhar a subjetividade de sua época que renuncie a ser analista.


Nossa época é distinta da época de Freud e também de Lacan. A ascensão concomitante dos discursos capitalista e científico no início deste século vem abalando nossa concepção do mundo, igualmente a do sujeito, consequentemente atingindo os pilares da psicanálise que são revisitados e reconsiderados – trabalho que Miller vem desenvolvendo em seus últimos seminários.


Atravessamos uma época que oferecia uma garantia do saber e deparamos com a supremacia de um real sem lei, fora de sentido, com uma variabilidade de novos sintomas que daí se edificam.


A civilização mudou, a psicanálise muda: tanto na clínica do consultório como na participação dos analistas nas instituições e nos diferentes laços sociais.


A queda do saber que a tradição emprestava confronta o sujeito com um vazio diante do qual lhe resta o recurso contingente da invenção.


Como reordenar a supervisão para os dias de hoje? É uma questão e um desafio para cada analista.
Nessa direção, Anamaria nos oferece sua experiência – A supervisão clínico-institucional realizada em dois CAPS na cidade de Recife –, uma rede substituível ao Hospital Psiquiátrico no país, fundamentada na clínica ampliada: clínica de vários, de formações diferentes com a aposta na reinserção social.


Anamaria fundamenta-se no arcabouço teórico da orientação lacaniana e do lugar de extimidade, sustenta sua função de supervisor, favorecendo a reinvenção da instituição por meio da construção do um a um da equipe e de cada sujeito em atendimento. Afirma: "de maneira singular em cada serviço, a supervisão traça um território que contribui para o avanço de uma clínica e renova a prática analítica ancorada na aposta do sujeito cidadão."

 

Rosane da Fonte
Membro da Seção PE/EBP e da AMP.

 

Supervisão clínico-institucional

e seus desafios

Anamaria Vasconcelos1

 

A supervisão clínico-institucional foi instituída como uma das ações que fazem parte do Programa de Qualificação dos CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, pela PORTARIA Nº 1174/GM DE 7 DE JULHO DE 2005. De acordo com o Art.3º, a supervisão clínico-institucional é definida como "o trabalho de um profissional de saúde mental externo ao quadro de profissionais dos CAPS, com comprovada habilitação teórica e prática, que trabalhará junto à equipe do serviço durante pelo menos 3 a 4 horas por semana, no sentido de assessorar, discutir e acompanhar o trabalho realizado pela equipe, o projeto terapêutico do serviço, os projetos terapêuticos individuais dos usuários, as questões institucionais e de gestão do CAPS e outras questões relevantes para a qualidade da atenção realizada".

 

A experiência do psicanalista na supervisão clínico-institucional em CAPS é viva e cheia de desafios inerentes à aproximação de dois campos teóricos distintos, que implicam duas clínicas: a Clinica Psicanalítica e a Clínica Ampliada.

 

Em que essas clínicas tão díspares poderiam convergir? Haveria alguma convergência possível que viabilizasse esse trabalho? É a partir do ensino e transmissão da Orientação Lacaniana que podemos afirmar que existe sim, se considerarmos o estatuto ético que tais clínicas dão à loucura. É com base nesse estatuto que apresento aqui minha experiência de supervisão clínico-institucional desenvolvida, atualmente, em dois CAPS da rede de Saúde Mental da cidade do Recife.

 

O CAPS

 

O CAPS, criado após o paradigma da instituição total, é estratégico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Trata-se de um equipamento comprometido com o fortalecimento de laços sociais, cuja criação possibilita a organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. Fundamenta-se na Clínica Ampliada − assim denominada por tratar-se de uma clínica feita por muitos, de formações diferentes, com responsabilidades partilhadas, e com a aposta no cuidado com as pessoas através da reinserção social, acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. 

É função do CAPS, entre tantas outras, o atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando as internações em hospitais psiquiátricos e o acolhimento de pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território.

 

De acordo com a política de Saúde Mental, estes serviços devem ser substitutivos e não complementares ao hospital psiquiátrico. O CAPS é pensado como ponto de partida de uma nova clínica, produtora de autonomia, que convida o usuário à responsabilização e ao protagonismo em toda a trajetória do seu tratamento.

(http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=29797)

 

As intervenções feitas nesses serviços, muitas vezes, vão além da própria estrutura física, buscam potencializar as ações do CAPS na rede social, preocupando-se com a cidadania, com o sujeito do direito, a singularidade, história, cultura e vida cotidiana de cada indivíduo que faz uso do equipamento.

 

Por outro lado, a psicanálise de Orientação Lacaniana entende que, em cada cidadão com sofrimento psíquico, há um ser falante de direito e de dever, com uma história de vida, sofrimentos e escolhas, um sujeito do inconsciente. Desse modo, vem contribuindo com seu arcabouço teórico e seus analistas, de vários modos, sendo um deles a supervisão clínico/institucional desenvolvida nos CAPS.

 

A PSICOSE

 

Carlo Viganò, psicanalista e psiquiatra italiano, analisante de Lacan, próximo a Basaglia, entre idas e vindas ao Brasil, manteve um trabalho de quase dez anos, que envolveu CAPS, Conselho de Enfermagem, instituições psicanalíticas e psicanalistas. Desse trabalho, foram publicadas em livro as principais conferências e intervenções feitas por Viganò, em primeira edição financiada pelo CNPQ e, em segunda edição, como homenagem póstuma de seus colegas mineiros.

 

Nesse livro, no artigo Trabalho em equipe na rede, Viganò nos coloca que o psicótico estabelece dois movimentos importantes na busca de sua estabilização. Um, de autodefesa e outro, de autoconstrução. O primeiro (autodefesa) constitui-se em modos de como tratar o Outro, introduzindo uma falta nesse Outro. O segundo tem como objetivo curar o Outro, seja através da introdução de um objeto particular que organiza o próprio corpo, seja introduzindo um signo, um sinal da própria particularidade que venha a funcionar como um significante mestre, como, por exemplo, o delírio, a escrita, a criação artística, etc. O sucesso dessa operação, contudo, depende de qual Outro o sujeito encontra, ou seja, da parceria, como nos ensina Carlo Viganò.

 

O psicótico trabalha muito sozinho, defende-se do laço social, ameaçador e invasor. A parceria tem a função de tornar esse trabalho menos solitário, assegurando a autoconstrução e a autodefesa do Outro com uma presença regular, atenta aos detalhes, mas essencialmente suave, respeitando a invenção de cada sujeito.

A delicadeza e a suavidade, exigidas para o exercício dessa função, consistem em colocar-se em posição de aprender com o psicótico e não de interpretá-lo. Aprender sua língua particular sem confrontá-lo, sem se tornar persecutório e pouco a pouco se constituindo como alguém a quem o psicótico possa recorrer.

 

A SUPERVISÃO

 

A parceria faz surgir o inédito de cada sujeito e o CAPS com sua equipe pode ser esse parceiro do qual fala Viganò. Isso foi o que testemunhamos e aprendemos no trabalho de supervisão clínico-institucional. Entretanto, inúmeros são os desafios encontrados, a partir mesmo do encontro com o impossível de ser simbolizado, do encontro com o real de cada sujeito. As equipes sofrem impactos das passagens-ao-ato, de urgências subjetivas e da fragilidade das redes sociais, surgindo conflitos institucionais, sentimentos de angústia, irritação, desânimo e incapacidade. Impactos que levam os técnicos a se apoiarem nas prescrições medicamentosas ou nas regras institucionais, que engessam as instituições, além de obturar a capacidade criativa e inventiva de parceria das equipes.

 

Viganò alerta, nesse mesmo texto, sobre o cuidado que se deve ter com as equipes, aquelas que se encontram na linha de frente do trabalho com o sujeito psicótico. Coloca que a desinstitucionalização precisa ser feita com os membros de uma equipe, em um ritmo contínuo e permanente. A supervisão a partir da Orientação Lacaniana tem sido um instrumento para esse fim ao possibilitar, para a efetivação da parceria, o surgimento do estilo singular de cada técnico.

 

O saber-fazer da equipe com o sintoma constituído pelo paciente implica suportar o não saber, antes de qualquer coisa. Significa ouvir o outro, colocar em suspenso suas próprias certezas, abrir mão de um saber absoluto e massificador, abrir mão de ideais imperativos de cura e reinserção social. Desde MaudMannoni, aprendemos que, para trabalhar com sujeitos psicóticos em uma instituição, é necessário permitir que a instituição se molde a cada caso, reconheça seus limites e use como guia a realidade psíquica do caso em questão, abrindo suas portas e ligando-se a uma rede de atenção.

 

Dessa forma, entendemos que o lugar da supervisão numa instituição de tratamento é o de favorecer e potencializar a parceria, abrir condições para a reinvenção da instituição no caso-a-caso, interpretando sua experiência, convocando a apresentação do caso clínico na supervisão e separando o que diz respeito ao sofrimento psíquico da equipe e do caso em questão. É função da supervisão, também, fazer aparecer o discurso institucional de suas demandas, e favorecer que cada componente da equipe possa falar, dando abertura à emergência dos vários saberes, trabalhando para que as diferenças sejam melhor suportadas, respeitando e integrando a especificidade de cada técnico, nas diferentes  abordagens.

 

Esse lugar diz respeito à posição de extimidade, neologismo criado por Lacan e trabalhado por Miller, que diz respeito ao que está mais próximo, ao mais íntimo, sem deixar de ser exterior. Esse é um grande desafio encontrado pelo supervisor, o de sustentar sua posição sem ceder às demandas imperativas do campo social e político. Ele não deve se confundir com a preconização de uma lei tantas vezes imperativa e insensata.

 

Como nos diz Elisa Alvarenga:

 

É importante então distinguir o lugar de extimidade do analista supervisor de um lugar de extra-territorialidade. A extra-territorialidade significa a faculdade de reger-se em um pais estrangeiro pelas leis da própria nação, ou seja, fazer valer a própria lei em um território estrangeiro. (Elisa Alvarenga, Opção Lacaniana, nº38, p.110-2003)

 

Advertido, o supervisor acompanhará a organização da instituição em questão, através da construção do caso clínico, visando garantir o discurso institucional particular a cada CAPS, tão precioso para a construção de uma parceria com cada sujeito psicótico.

 

A nossa experiência de supervisão transcorre usualmente em encontros regulares, para onde as equipes trazem casos que tenham algum impasse e o supervisor busca a construção de cada caso, isolando significantes, buscando circunscrever o impossível de ser dito e construindo junto com a equipe a direção do tratamento. Dessa forma, temos acompanhado o esforço e a dedicação das equipes em lidar com o encontro com o real da clínica e testemunhado conduções de tratamento diferentes diante de cada paciente, algumas vezes, com resultados bem-sucedidos.

 

Para além das consequências em torno desse trabalho, no que tange à instituição, sua organização e funcionamento, temos observado também consequências relativas à própria formação para alguns profissionais, no que diz respeito à busca de um melhor aprimoramento e, principalmente, no estabelecimento de transferência para com a psicanálise. Mas também essa experiência tem ensinado muito ao analista que não recua, que busca se adequar ao seu tempo sem perder de vista sua posição. De maneira singular, em cada serviço, a supervisão traça um território que contribui para o avanço de uma clínica e renova a prática analítica ancorada na aposta do sujeito/cidadão.

 

Bibliografia :
Portal da Saúde - www .portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=29797
Viganò, Carlo. Novas Conferências. (Alkmim, Wellerson Durães org.) Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010
ALVARENGA, Elisa. "Os usos da supervisão na instituição". Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 38, dezembro de 2003.