Territórios Lacanianos #010

Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis

 

Editorial

 

Oficina de Política Lacaniana

Esta edição de Territórios lacanianos apresentará o trabalho que está se desenvolvendo na Oficina de Política Lacaniana da EBP-SC, sob a coordenação de Oscar Reymundo. Trata-se de um projeto que se inicia com uma pesquisa  cuidadosa sobre a articulação entre a psicanálise e a época; sobre as consequências da civilização atual na prática e nos conceitos psicanaliticos e finalmente a maneira como a psicanálise se posiciona frente a elas.  No texto de apresentação do projeto é possível  acompanhar os desdobramentos da pesquisa, que conduzem ao tema das toxicomanias, e perceber de que maneira esse tema se apresenta sob a visada da política lacaniana.

 

No texto de Oscar também temos notícias de como os ensinamentos que são extraídos deste trabalho de pesquisa são endereçados a diferentes interlocutores,  incluindo a cidade no debate sobre as toxicomanias, e promovendo, com estas conexões, uma ampliação do tratamento anti-segregacionista que  a psicanálise propõe sobre o tema. Trata-se finalmente de um projeto que coloca a psicanálise de orientação Lacaniana  a serviço da construção de novos territórios .

 

 

Oficina: Política Lacaniana

Toxicomanias: Pluralização das práticas de intoxicação

 

Fundamentação

Com este projeto, que numa primeira etapa será de estudo e pesquisa, nos propomos articular, inicialmente, dois termos complexos: a psicanálise e a época. A época já diz algo sobre a psicanálise, uma vez que a época incide na prática analítica, incide nos seus conceitos e incide nos sintomas, no sentido mais amplo do termo. Uma das características da época atual está constituída pelas promessas que ciência e marcado fazem de que seria possível produzir a substância que, uma vez incorporada no organismo, nos permitirá ser felizes, sempre felizes.


Perante a mítica eficácia das substâncias que a prática técnica, legal ou ilegal, produz para o tratamento do insuportável para cada sujeito, os psicanalistas preferimos oferecer e trabalhar com nossos precários instrumentos feitos de palavra e de linguagem, sustentados numa perspectiva ética que inclui tanto a responsabilidade social quanto a responsabilidade individual pelas atrapalhações na lida com o impossível de suportar para cada um.


O plural em toxicomanias, do título, deriva da idéia de que as práticas de intoxicação, antes restritas às margens do mundo orientado pela moral civilizatória, já penetraram no discurso do neo higienismo de nossos dias e fazem parte do arsenal de soluções prêt-à-porter para o que não funciona conforme os imperativos da hipermodernidade. A forma mais freqüente dessa prática se apresentar no mundo globalizado é sob a palavra de ordem “Engula a pílula que é pelo seu bem”.  Retorno sinistro do progresso da ciência na dimensão da subjetividade e do laço social.


Constatamos que a civilização entrou numa época difícil para a psicanálise. Com maior ou menor ênfase os discursos de desqualificação dirigidos contra a psicanálise se complementam com estimulantes notícias sobre novas terapêuticas e suas promessas de eficácia e felicidade duradoura, sejam estas atingíveis pela via da química, do comportamento ou da genética. A primeira das vias, a da solução química, pertence ao que chamamos de Toxicomanias: Pluralização das práticas de intoxicação.


O sintoma e a angústia tem se tornado intoleráveis para a ‘sociedade da eficiência’. As intervenções, que pretendem operar nos ‘transtornos’ através de prescrições autorizadas no discurso da ciência e nas piores justificativas da época, acabam constituindo autênticas discriminações em ato que tem por efeito identificar o ‘transtorno’ ao ser do sujeito.


Defronte à feroz tendência da época à homogeneização dos modos que cada um tem que se haver com seu impossível, a psicanálise lacaniana insiste numa política que sustenta a existência dessa estreita margem de liberdade necessária para preservar o incomparável de cada um. Essa é a política do sintoma, que orienta nosso discurso e nossa prática para que com isso que de cada um não se encaixa nas normas sociais, cada sujeito possa produzir seu modo de estar no laço social.    


O pragmatismo cínico da época impulsiona abordagens do sofrimento psíquico que prescindem de toda e qualquer referência transferencial. Vemos, assim, anunciar-se uma nova época quanto aos tratamentos da saúde mental, uma nova configuração com um novo código para as práticas terapêuticas referidas ao psiquismo, um novo regime orientado para uma normatização renovada que tem o funcionamento como o novo ideal das práticas terapêuticas.  Trata-se de uma ordem social preocupada com a medida que pretende opor à nossa prática clínica  que se realiza sob transferência a evidencia das cifras. Neste contexto, a geração de transferência com a psicanálise é crucial. Defronte a opacidade da época com relação ao Outro, a existência do Sujeito Suposto Saber é crucial. Nesse sentido, a política lacaniana nos orienta na tarefa de questionar os limites dessa opacidade com os limites de nossa prática.

 
Assim o laço proposto pela psicanálise adquire, nos tempos que correm, renovada relevância, uma vez que perante um mundo que corre o risco de reduzir-se ao binário winners X loosers, do que se trata é de não ocultar a falta-em-ser, de não ocultar a vã e estúpida existência do sujeito, assim como suas lembranças e suas dores.


Na medida, diz Miller, em que a ciência não considera os efeitos de sentido, na medida em que já não confia no sentido senão na causalidade efetiva real dos hormônios, temos que considerar mais do que nunca o espaço da sessão analítica, o uso das sessões analíticas como o depósito do resto que sobra de sentido em nossa cultura. É ai onde pode colocar-se a pergunta acerca do sentido de minha identificação, do que estou fazendo, do que define meu ser. 


Em agosto de 2013 a Oficina de Política Lacaniana da EBP-SC organizou o primeiro Colóquio que teve por título “Adições: que droga é essa?” Foram convidados para expor suas experiências e reflexões: Ernesto Sinatra, psicanalista, AME da EOL, um dos fundadores do grupo TyA de Argentina; Alexandre Takashima, Juiz Corregedor do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina; Pedro Cabral, Professor de Artes da escola Beatriz de Souza Brito de Florianópolis.


Desta forma, demos mais um passo na direção da Oficina promover a conexão da psicanálise com outros saberes e outras experiências de abordagem das práticas de intoxicação que permita um tratamento das mesmas para além da segregação do sujeito da palavra. Mais um passo na direção de fundar territórios nos quais a psicanálise da Orientação Lacaniana possa promover a escuta do sujeito que insiste além do adito/toxicômano, territórios onde trabalhar na direção de fazer desconsistir o “sou toxicômano”, “sou viciado”, “sou adito”, para que o falasser saiba fazer na sua vida com a falta-em-ser.