Territórios Lacanianos #003

Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis

 

Soluções sob medida parece ser um bom termo para falar do projeto Criamundo e que a partir desta edição passa a fazer parte dos Territórios Lacanianos. O Criamundo começou em 2002 no Hospital Juliano Moreira em Salvador. A partir de 2010, ele saiu do hospital e tornou-se o principal Programa de Responsabilidade Social da FAPEX, fundação de apoio à Universidade Federal da Bahia e à Universidade Federal do Recôncavo Bahiano. Atualmente ele ocupa um espaço na própria sede da Seção Bahia da Escola Brasileira de Psicanálise. Conta com algumas parcerias institucionais, dentre elas com o CAPS II UFBA, as Voluntárias Sociais da Bahia, e com a principal instituição estatal direcionada à capacitação em artesanato da Bahia, o Instituto Visconde de Mauá. A própria configuração do projeto constitui um território anti-segregacionista, onde a psicanálise se conecta a outros domínios e práticas e contribui  para o sujeito psicótico tecer seu modo singular de se conectar no tecido social.

A especificidade desse projeto é constituir um dispositivo de psicanálise aplicada que visa a reinserção do sujeito psicótico no mercado de trabalho para além dos ideais de rendimento e êxito que vigoram no mundo contemporâneo. Tornou-se um projeto bastante peculiar na medida em que envolve geração de renda e trabalho ao mesmo tempo em que não está a serviço do mestre capitalista. Embora sua inspiração venha de projetos endereçados aos portadores de necessidades especiais, designados por Pessoas com Necessidades Especiais-PNE’s, e o ingresso dos contratados se dê através de cota para os PNE’S, estipulada pela lei federal brasileira 8213/91, a orientação pelo sinthoma afasta a possibilidade de encerrar os pacientes em categorias identificatórias. Não se trata de uma inserção a qualquer custo e sim a busca de intervenções que ajudem a construir uma inserção sob medida às invenções psicóticas e que venham cumprir sua função de suplência e estabilização.

A orientação lacaniana da EBP/AMP se faz presente neste projeto e destacamos dois pontos. A equipe clínica do Criamundo, constituída em forma de um cartel declarado na EBP, introduz a dimensão clínica num programa que envolve geração de renda e inclusão social. Outro ponto é o fato de que muitos dos participantes se analisam e estão em formação analítica. Portanto, um projeto orientado pela psicanálise lacaniana contribui para que cada um dos praticantes envolvidos aprenda em sua formação a lidar com a inconsistência dos ideais em jogo num projeto como também se colocam advertidos quanto às exigências narcísicas do sucesso do outro. Em última instância, aprendem a lidar com os princípios universais que governam políticas públicas sem abrir mão do princípio do um a um e da singularidade que orientam a psicanálise.    

 

 

Programa de Responsabilidade Social FAPEX Criamundo

Marcelo Magnelli

 

O Criamundo é um dispositivo de psicanálise aplicada que busca pensar a reinserção do sujeito psicótico no mercado de trabalho para além dos ideais de sucesso do mundo contemporâneo. Partimos da premissa de que há sempre um hiato entre os ideais do Outro social e as invenções psicóticas. Por ser uma solução para o gozo inútil do sinthoma,  estas invenções não estão a serviço do mestre capitalista, mas cumprem uma função de suplência e estabilização. O ideal de reinserção ?para todos?, fundamental ao espírito de democratização que forjou a psiquiatria social nas últimas décadas, se choca muitas vezes com o fato de que a segregação nas psicoses ocorre devido ao real não simbolizado em questão. Ou seja, há sempre um resto que escapa à lei e ao ideal.

 

Não se trata, assim, simplesmente de preencher um número de cotas em uma empresa. Quando, por exemplo, todos os empacotadores de um supermercado são contratados por exigência de uma lei de cotas, inevitavelmente corre-se o risco de reforçar ou apenas trazer a segregação para dentro da empresa. O Criamundo visa, precisamente, inserir o sujeito psicótico levando em conta sua diferença, e não sua identificação a uma categoria especial, a de PNE´s (portadores de necessidades especiais).

 

O projeto surgiu em 2002, inspirado nos Centre d´Aide par le Travail (CAT´s) - instituições governamentais francesas conveniadas com o terceiro setor e alvo de política interministerial (Saúde e Trabalho) para pessoas portadoras de handicap. Ele nasceu no Hospital Juliano Moreira, hospital psiquiátrico referência em Salvador, e ocupou inicialmente o espaço de um antigo módulo de internação. A partir de 2010, ele saiu do hospital e tornou-se o principal Programa de Responsabilidade Social da FAPEX, Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão (fundação de apoio à Universidade Federal da Bahia e à Universidade Federal do Recôncavo Bahiano), com quase 3 mil servidores. Atualmente ele ocupa um espaço na própria sede da Seção Bahia da Escola Brasileira de Psicanálise. Ele conta com algumas parcerias institucionais, como o CAPS II UFBA, as Voluntárias Sociais da Bahia, e com a principal instituição estatal direcionada à capacitação em artesanato da Bahia, o Instituto Visconde de Mauá.

Pensamos que o Criamundo pode ser um dispositivo particular para cada caso, para cada sintoma, de modo a permitir em seu interior tantos Criamundos quantos sujeitos que passam por ele. Não há metas institucionais precisas, cada sujeito seguirá um caminho diferente. Alguns logram entrar no mercado formal de trabalho via lei de cotas, outros passam pelo projeto por um tempo em busca de capacitação e se vão, outros permanecem nas oficinas de artesanato.

 

Habitualmente, a via de entrada se dá através da participação em atividades de artesanato com qualidade para comercialização. Estas oficinas garantem um regime de contratação formal, ou seja, carteira assinada, seguro saúde e todos os demais benefícios legais. Evidentemente o mesmo se passa com aqueles que conseguiram ser alocados em funções administrativas na própria sede da Fundação. Todos os contratados ingressam no projeto através de cota para Pessoas com Necessidades Especiais (PNE?s), estipulada pela lei brasileira (lei federal 8213/91).

 

O entendimento do que é um PNE em Saúde Mental com frequência é um obstáculo a ser superado em cada caso. Os pacientes com retardo mental e síndrome de Down são aceitos com mais facilidade do que os pacientes com psicoses produtivas, e estes ainda mais facilmente do que os casos em que se formula a hipótese de uma psicose ordinária. Por isso se faz necessária uma discussão caso-a-caso com a Divisão Regional do Trabalho (DRT), de modo a garantir um regime diferenciado de contratação. Isso faz com que cada recolocação no mercado de trabalho se dê de modo único, todo caso é uma exceção e um desafio clínico para o projeto.

 

A equipe clínica do Criamundo, constituída em forma de um cartel declarado na EBP, busca sempre privilegiar a clínica, e não simplesmente a geração de renda e inclusão social. Estas, contudo, acabam por ser grandes facilitadoras na reconstrução dos laços sociais de pacientes submetidos, por vezes, a um longo regime de segregação. Para isso o projeto pode, por exemplo, oferecer cursos dentro e fora de sua grade curricular, intermediar contratações para o mercado formal e informal ou estimular geração de renda domiciliar. Em seus mais de dez anos de existência o projeto se reinventou diversas vezes, tomando uma forma nova sempre que os aspectos institucionais passavam a ser mais importantes que a necessidade de criação permanente. Foi desse modo que, por um momento, foi interessante tornar-se uma ONG; e posteriormente foi igualmente importante dissolver essa mesma ONG. Outro ponto crucial é o fato de que muitos dos participantes se analisam e estão em formação analítica. É importante que cada um saiba lidar com a inconsistência dos ideais da Saúde Mental, por um lado, e o narcisismo do sucesso, por outro. 

   

Nossa oferta tem sido, então, de um espaço para trabalhos e invenções, sem que a instituição e seu peso se interponham. Conciliando as exigências da lei com a flexibilização que exige as soluções sintomáticas de cada um, o Criamundo avança para sua segunda década tentando se manter como uma instituição tão leve quanto possível.