Territórios Lacanianos #002
Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis
PAI-PJ
Este número de Territórios Lacanianos traz notícias sobre uma iniciativa exemplar daquilo que chamamos Ação Lacaniana na cidade. O Pai-PJ é um Programa bem sucedido e bastante consolidado que acontece no Tribunal de Justiça de Minas Gerais e articula várias instânciasem torno da figura do louco infrator. É um programa interdisciplinar que dá atenção integral ao paciente judiciário, “escutando o sujeito que insiste além do louco criminoso”. Funciona como um dispositivo conector entre a rede de assistência social, a rede de saúde mental e o sistema judiciário, o qual está orientado pela lógica da singularidade do caso a caso. A psicanálise lacaniana orienta a construção dessa experiência assim como a formação dos analistas praticantes que se prestam a sustentar o traçado vivo e pungente desse território lacaniano.
O Pai-PJ funciona na contramão da lógica da segregação, do abandono e das soluções universais, e aposta no valor da palavra como meio para lograr-se as soluções inéditas e singulares de cada um.
Tanto no texto apresentado por Fernanda Otoni quanto no vídeo onde encontramos depoimentos de Antônio Benetti, Elisa Alvarenga e Fernanda Otoni, podemos observar de que maneira o Pai-PJ consegue articular psicanálise pura e aplicada, e extrair importantes consequências do ato de oferecer a palavra ao louco homicida.
Programa Pai-Pj
Fernanda Otoni
Uma nota sobre o PAI-PJ Um território lacaniano instalado no campo da criminologia
A ação lacaniana faz- se à altura de sua época quando recolhemos, nos territórios onde se instala seus efeitos. É por essa via que trazemos, aqui, o testemunho do PAI-PJ1, um programa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que acompanha aqueles que cometeram crimes ou infrações e foram classificados como "doentes mentais". Acompanha como? Escutando o sujeito que insiste mais além do doente/louco/criminoso.
A ciência consagrou a loucura como um perigo social, sobretudo, o louco infrator, único que é segregado, preso/internado por tempo indeterminado, e do qual é exigido, segundo o código penal, um exame de cessação de periculosidade atestado pela psiquiatria para conseguir sua liberação desse exílio forçado, pela extinção da medida judicial, uma medida de segurança.
Em 1999, em Belo Horizonte, havia uma impotência generalizada para tratar disso nos trâmites institucionais – faltavam vagas, faltava entendimento com a rede hospitalar e prisional. Esses corpos indesejáveis geravam incômodos onde estivessem alojados, inclusive nas prateleiras processuais. Coube à psicanálise acolhê-los. O acolhimento desses sujeitos foi um ato capaz de desferir um corte na prática da segregação, e produzir uma torção nessa lógica. A clínica da psicose, tecida por Lacan, ofereceu-nos o entusiasmo necessário e ferramentas para não recuar e inventar, a partir do um por um. O princípio inaugural: não recuar! Escutar em cada um o dizer que localiza seu drama e, assim, sustentar o vazio de saber e garantias que permitem dar lugar à “plenitude dramática da relação sujeito a sujeito”.2
Tal experiência foi responsável pela invenção do PAI-PJ. O Programa está ligado a vários projetos assistenciais e sociais dispostos nas redes institucionais. Orientados pelos princípios condutores da orientação lacaniana, colocamo-nos ao lado do sujeito, em sua trajetória por essa rede diversa, acompanhando-o em seu esforço de produzir respostas frente ao sistema judicial e à comunidade à qual pertence. A oferta de uma "secretaria" é posta à sua disposição, sob medida. Por dispensar as classificações científicas sobre a "periculosidade", escutamos as soluções que cada um inventa, atentos à dimensão do não todo. Quanto ao real em jogo, sabemos que isso se move, isso se agita. As respostas do parlêtre ao real atestam o impossível de saber, que nunca será controlado, assegurado. Mas, talvez, isso se mostre mais espetacularmente, ali, justamente onde se levantam os discursos de segurança máxima de uma suposta sociedade de controle. Um ato se faz necessário para abrir um furo qualquer nessa maçaroca, por onde o sujeito possa advir, conforme o impossível e a pragmática de cada caso, como sabemos, desde Freud e Lacan. Até aqui, nenhuma novidade! Talvez a novidade do PAI-PJ seja a de haver fundado uma prática orientada pela psicanálise, lá onde o princípio era jamais escutar e, sim, segregar; uma prática que não recua diante da convivência cotidiana com outros discursos (o discurso jurídico, da ordem social e da saúde pública). Foi assim que, como passageiro clandestino, o ensino de Lacan se intrometeu, também, no campo da criminologia para, ali, como de costume, promover a subversão necessária. Servimo-nos do improvável para realizar sua instalação portátil, sempre a serviço do sujeito. Um analista esclarecido, ali, sabe se servir das brechas que se abrem entre instituições e discursos para que as soluções singulares possam advir. A sustentabilidade dessa convivência, que com frequência sofre a tensão que afeta seus laços, fez-se na escuta atenta de um por um e, também, através da conversação em torno de cada caso, em uma prática feita por vários; sua intervenção, atenta e discreta, é para que, no funcionamento heterogêneo dessas ações disciplinares, haja um lugar para a resposta de sujeito. Por essas veredas, a psicanálise orienta a conversa com o Outro de nossa época, e a presença decidida de pelo menos um analista praticante, orientado quanto à sua formação, faz um giro na lógica de discurso agenciado pelo significante obscuro da periculosidade. Sabemos que é quando não se crê mais nesse significante, que se abrem clarões, respiradouros em condições de esclarecer "a ideia de responsabilidade, sem a qual a experiência humana não comporta nenhum progresso"3, conforme ensinou Lacan.
Antes de o Programa fazer parte da cena pública, esses casos eram enviados aos manicômios para internação perpétua. Hoje, catorze anos depois, na medida de um por um, e através de um laço possível desses pacientes, ainda que frouxo para com a secretaria do PAI-PJ, muitos dos que são acompanhados realizam seu projeto de vida participando da rede aberta social e da rede de saúde pública, e comparecem regularmente às audiências estabelecidas com o Juiz para responder por seus atos, demonstrando que a responsabilidade de cada um se conjuga com a liberdade "não toda". Testemunhamos, em várias situações, uma nova conexão do sujeito com o Outro que o cerca. Assim, fomos levados, em cada caso, a tolerar o real como impossibilidade de previsão. E pudemos testemunhar o advento de um sujeito novo nas salas do direito penal: um sujeito que fala, mesmo que "inimputável". Muitos demonstram, surpreendentemente, que a temática tratada ali, naquele processo, é de sua responsabilidade, ainda que não se encontre ali como o sujeito cartesiano, cognoscível das teorias do direito.
Esse acontecimento subversivo se torna possível quando o direito se deixa apreender como uma ficção útil e o analista praticante, orientado quanto ao detalhe singular que causa cada um, tem a possibilidade de considerar as soluções jurídicas segundo a gramática do caso a caso. Desse laço possível, entre discursos distintos, o secretário do alienado em seu laço com o sujeito pelos interstícios judiciais, recolhe surpreendido, o vivo de respostas inéditas, que mantém a via aberta ao inusitado que orienta nossa experiência diante das variedades fractais do humano.
1 O PAI-PJ ( Programa de atenção integral ao paciente judiciário) é um programa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais onde se realizar um trabalho de acompanhamento clínico, jurídico e social de adolescentes e adultos em situação de embaraço e sofrimento, e que respondem, judicialmente, por alguma infração ou crime cometido. Os Juízes criminais, ou da infância e juventude, identificam essa situação e encaminham esses sujeitos ao PAI-PJ para um acompanhamento desde o início até o fim do processo judicial.
2 LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível à criminologia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar ed, 2003, p.127.
3 LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível à criminologia. In: Op. cit. na nota 4. p.129.