Orientação Lacaniana
Novembro 2014
As dimensões continentais da EBP não impedem que a Orientação Lacaniana funcione como um fio condutor do ensino de Lacan no Brasil, tal como demonstram as contribuições dos colegas das mais variadas Seções e Delegações da EBP. Trazemos este mes, notícias das Seções São Paulo e Pernambuco, além das Delegações Paraíba e Góias/Distrito Federal.
Na Delegação Paraíba, os membros da Escola – Cassandra Dias, Cleide Monteiro, Cristina Maia, Glacy Gorsky e Margarida Assad - coordenam um Seminário de leitura de textos avulsos de Miller, contemplando seu último ensino e, em especial, a questão do falasser e do inconsciente real. Os textos norteadores de Jacques-Alain Miller são: "O Outro sem o Outro" e "Uma reflexão sobre o Édipo e seu mais além", a partir dos quais se discutiram lições de O ultimíssimo Lacan e de Os usos do lapso. Em direção ao próximo Congresso da AMP e em consonância com o Encontro Brasileiro,trabalham o argumento "O inconsciente e o corpo falante", e vão ler um capítulo do Curso Peças Soltas.
Na Seção Pernambuco, os mesmos textos norteadores iluminaram a leitura, pelos membros da Escola, do Seminário 6, O desejo e sua interpretação, tomando como bússola o momento de báscula que ele constitui no ensino de Lacan, perseguindo a via do desejo a partir do gozo e do real. Destacaram-se como suporte para a discussão o desejo e a fantasia, o grafo do desejo, a interpretação e o sinthoma, antes de dar início às aulas dedicadas a Hamlet, em parceria com a exibição do filme.
Na Delegação Goiás/Distrito Federal, sob a responsabilidade da coordenação, privilegia-se a leitura e o debate de verbetes do Scilicet Um real para o século XXI, tendo em vista a preparação para o próximo Congresso da AMP. Já foram apresentados e debatidos os verbetes "compulsão à repetição" e "excesso".
Finalmente, em São Paulo, o Conselho da Seção coordena um Seminário de leitura do Seminário O desejo e sua interpretação, com cujas contribuições contamos este mês:
Carmen Silvia Cervelatti, no seu texto "O objeto e a causa do desejo", a partir dos primeiros capítulos do Seminário, nos aponta como, no sujeito que fala, o desejo é fixado a uma fantasia. E o objeto desta fantasia é, neste momento do ensino de Lacan, o outro imaginário, que se apresenta como a imagem do corpo próprio. É interessante ver como se constitui, no espelho, o corpo do sujeito, que no último ensino de Lacan vai se tornar o corpo falante. Este momento importante do Seminário 6 desemboca na fantasia como uma banda de Moebius, elaboração de Lacan que mostra a junção do simbólico com o imaginário na fantasia.
Maria do Carmo Dias Batista, em "A mensagem da tossinha", aborda a lição VIII do Seminário 6, na qual Lacan analisa o sonho relatado por Ella Sharpe em seu livro. Conforme o procedimento freudiano, trata-se de decompô-lo em elementos significantes e de revelar o desejo do sujeito. A enunciação é da ordem do ato, descontínua, fragmentada. A "tossinha" do paciente de Ella Sharpe para se anunciar, remete a uma fantasia infantil de despistar sua presença: latir para que o Outro, pensando ser um animal, não o encontrasse. O paciente, a quem falta uma identificação fálica, se faz ninguém.
Essas leituras do Seminário 6 nos permitem entrever que analisar o falasser, como nos propõe Miller no argumento para o X Congresso da AMP, não dispensa a análise do sujeito do inconsciente, mas não é a mesma coisa. Podemos prescindir desta última, com a condição de nos servir dela.
Elisa Alvarenga
Novembro de 2014
O OBJETO E O GRAFO DO DESEJO
Carmen Silvia Cervelatti
O conceito de objeto do desejo é fundamental para acompanhar as articulações de Lacan ao longo do Seminário 6. Este texto, extraído da apresentação que fiz no Seminário do Conselho da EBP-SP, tem por objetivo reunir as coordenadas deste conceito desenvolvidas por Lacan nos primeiros capítulos deste Seminário, especialmente a partir dos capítulos I e VI.
Para responder ao que é o desejo humano, Lacan aborda a questão por um viés diferente do significante, que ele exaustivamente trabalhou neste mesmo Seminário com o sonho do pai morto e outros. Agora não mais com o sonho, mas com a fantasia, não com o significante elidido pelo recalque, mas pela relação ao objeto. Ele disse ser este um dos propósitos do Seminário: tentar definir a fantasia.
Com o seu famoso grafo, o desejo, além de seu aspecto metonímico da falta-a-ser, implica o objeto, o objeto da fantasia, d $<>a. Desta maneira, o objeto vem se inserir naquilo que falta pela via do significante.
É na fantasia do sujeito, "que não é mais que uma sombra, é lá que o sujeito mantém sua existência, mantendo o véu que faz com que ele possa continuar a ser um sujeito que fala"1 . Nesse sentido, a fantasia funciona como uma defesa frente ao desamparo, ao trauma.
A função da fantasia, diz Lacan, é a de fornecer ao desejo do sujeito "seu nível de acomodação, de situação."2 Por esta razão, o desejo é fixado a uma fantasia, não a um objeto. Esta precisão é fundamental, especialmente para não se tomar esta relação como complementar.
Enquanto fórmula, $<>a, reúne o $, barrado, anulado, abolido pela ação do significante, ao encontrar seu suporte no outro, que define o objeto como tal, a, a "relação do sujeito enquanto falante ao outro imaginário"3. É este o estatuto do objeto da fantasia neste momento do ensino de Lacan. Ele diz que o outro ele recupera do Seminário 1: é a imagem do corpo próprio, já trabalhado em seu texto de 1949, O estádio do espelho como formador da função do eu. Por conta da prematuridade neurofisiológica, há uma antecipação da unidade a partir da imagem do outro, da imagem do corpo próprio encontrada no espelho, na qual a criança vai se alienar virtualmente. No espelho, este primeiro estágio da constituição do eu se confunde com a constituição da imagem do corpo próprio, ao mesmo tempo em que a imagem no espelho é apresentada como objeto. Vemos aqui a transitivismo apontado por Freud na Introdução ao narcisismo: a libido desliza do eu ao objeto, de quem Lacan extrai a matéria para o registro Imaginário. O objeto presente na fantasia coincide com o objeto do imaginário, o que irá ser modificado futuramente em seu ensino.
"É o narcisismo que oferece ao sujeito o suporte, a solução, a via de solução para o problema do desejo. O eros humano está engajado numa certa relação com uma certa imagem que não é outra coisa que a imagem do corpo próprio."4
Por se tratar de imagem do corpo próprio, se diferencia do simbólico, evidentemente, porém, temos que ter em vista que esta imagem vai servir de matéria para o sujeito anulado ($) sustentar-se no mundo. Se tomarmos o esquema óptico de Lacan, é a situação em que as flores se encaixam no vaso, desde um exato posicionamento do sujeito.
A partir do Estádio do Espelho, mais uma operação é dada, como vemos no grafo do desejo. Lacan trabalhou isso no capítulo I, Construção do Grafo: é o jogo do fort-da, o apelo ao Outro enquanto presença sobre um fundo de ausência, que permite esta passagem no grafo. A apreensão do Outro enquanto tal, que tem um desejo, que tem falta, este Outro mais além de sua função no Estádio do Espelho, é aquele que poderá dar a resposta ao seu apelo, Che vuoi? Há um horizonte dado pelo que se formou a partir dos desdobramentos de sua demanda e pela exigência de reconhecimento pelo Outro. Lacan diz que é neste intervalo que se situa a "experiência do desejo", primeiramente apreendida como desejo do Outro, permitindo ao sujeito situar seu próprio desejo.
Sabemos que frente à opacidade do desejo do Outro o sujeito fica sem recursos, desamparado; por esta razão é necessário mais um passo, cujo recurso será buscado na experiência especular. Este objeto imaginário tem seu substrato na visão, pois o sujeito falante se refere ao outro imaginário enquanto olhar, ela é estruturante na relação do sujeito com o Outro e com o mundo, isso traz a marca do Estádio do Espelho, disse Lacan.
Também neste capítulo I, Lacan desenvolve o fundamento para o lugar do falo e da castração. O inconsciente sempre coloca o sujeito a uma distância de seu ser, nunca reencontrado: o objeto para sempre perdido; por isso, o desejo é o modo que ele possui de atingir seu ser, na medida em que o desejo é a metonímia do ser. Sempre falta um significante, o falo – advindo da ameaça de castração. O $ enquanto falta, busca seu complemento na imagem fálica, isso vem em acréscimo ao Estádio do Espelho, mas com a condição de acontecer a partir dele.
Este é um momento importantíssimo na elaboração de Lacan, que vai culminar no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, de 1960, ano este que coincide com a inserção de uma nota de rodapé, por ocasião da publicação do Escritos, ao texto de janeiro de 1958, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, na qual ele propõe a fantasia como uma banda de Moebius obtida pelo corte no campo da realidade, pelo Nome-do-Pai (campo do simbólico) e a significação fálica (campo do imaginário). Mais uma elaboração de Lacan mostrando a junção do Simbólico ($) e do Imaginário (a) na fantasia.
1 Lacan, J. Le Séminaire, Livre 6: Le désir et son interprétacion (1958-1959). Éd. De La Martiniére et Le Champ Freudien Éd., 2013, p. 119.
2 Idem, p. 30.
3 Ibidem, p. 30.
4 Ibidem, p.137.
Seminário do Conselho da EBP-SP de 01/10/2014
Leitura do Seminário VI – O desejo e sua interpretação, de Jacques Lacan
Lição VIII – A mensagem da "tossinha" 1
Maria do Carmo Dias Batista
A partir da Lição VIII do Seminário "O desejo e sua interpretação", Lacan analisa o sonho descrito por Ella Sharpe como "um sonho único", em seu livro "Sobre a análise dos sonhos", de 1937. Dedicará à análise do sonho cinco lições do Seminário.
Lacan discute longamente, nos dois primeiros itens da Lição VIII, as implicações da interpretação freudiana dos sonhos, articulando suas conclusões no Grafo [do desejo] Simplificado.
O = curva
retroativa
enunciação
(fragmentada)
enunciado
(monolítico) (cadeia significante)
M = Mensagem
C = Código
D = Demanda
S = Significante
1. Enunciado e Enunciação
O grafo é estrutural, diz Lacan na p. 167, uma estrutura que permite localizar a relação do sujeito ao significante, i. e., desde o momento em que o sujeito é pego pelo significante – e é isso que o define – uma rede se estabelece, que permanece sempre fundamental.
O relato inicial de um sonho constitui-se num bloco, um enunciado total, situado no nível inferior do grafo, aquele da cadeia significante. "Sonhei!", é o exemplo desse enunciado mencionado por Lacan na mesma página, onde esclarece ainda que sonho é discurso.
Entretanto, o sujeito tem de fazer uma enunciação sobre esse enunciado, com suas entonações, que demonstram sua concordância, sua aceitação. As entonações são os diferentes modos de enunciação, com os quais o sujeito assume o vivido no sonho como um acontecimento psíquico que lhe diz respeito. Esses modos de enunciação estão situados na linha superior do grafo (Je da enunciação), linha despedaçada, descontínua, fragmentada. A fragmentação, portanto, é característica da enunciação.
Como demonstrado no nível inferior do grafo, há a retroação do código sobre a mensagem que, a cada instante, dá à frase seu sentido e indica a intencionalidade do sujeito. E há também algo que curva retroativamente o sentido do que foi enunciado antes, formando-se depois de cada parte do discurso, de cada frase, de cada parágrafo. Trata-se da curva retroativa que, partindo do nível inferior, introduz a fragmentação no nível superior do grafo, através da incidência de baixo para cima de outra cadeia significante que corta o sentido da enunciação, decompondo-a. Os pensamentos latentes do sonho, bem como as entonações proferidas pelo sujeito ao relatá-lo, fazem parte da enunciação.
2. A cadeia significante
A cadeia significante tem dois aspectos: a significação e a associação livre.
A significação da frase dá unidade ao sentido. Uma frase tem um sentido único, monolítico, holofrásico, como formando ela própria um significante.
Na associação livre, movida pelo "querer do sujeito", para cada um dos elementos da frase qualquer coisa pode intervir que faz saltar um dos significantes, colocando em seu lugar um outro significante. Sem que o sujeito saiba, de forma inconsciente, um incidente cruza a cada instante seu discurso e intervém na escolha dos elementos da cadeia significante. Um dos efeitos disso é o lapso fonético, que aparece "na superfície". A simples mudança de uma sílaba em uma palavra demonstra que aí está presente e incidente uma outra cadeia significante, que se compõe com a primeira para implantar um outro sentido.
3. Qual a enunciação do enunciado?
No plano da aceitação (assunção) do enunciado pelo sujeito, o Je, segundo a regra interpretativa de Freud, é colocado como consciente. É o Je do enunciado. No entanto, Lacan (p. 169) não diria que o enunciado é produção desse Je, pois o enigma resta intocado. Portanto, de qual enunciado se fala no nível da enunciação? Qual a enunciação do enunciado? O sujeito da enunciação está contido no enunciado e é o si mesmo do sujeito. Nas páginas 92 e 93, fora, portanto, desta lição, podemos encontrar a diferença entre o Je do enunciado e o Je da enunciação: no enunciado o Je irá se transformar (futuro); na enunciação o Je está no ponto atual (presente) de onde se fala. Assim, a enunciação é da ordem do ato.
Para além do sujeito está o inconsciente freudiano, do qual o sujeito retoma algo da mesma natureza despedaçada da enunciação para decifrar o sentido do sonho. Desse modo, a via freudiana para a interpretação dos sonhos é a do despedaçamento da enunciação e a da aceitação do sonho pelo sujeito. Interpretar o sonho corresponde a produzir a máxima decomposição dos elementos significantes, até chegar a soletrá-los, o que destaca a possibilidade do sonho em demonstrar que a cadeia significante é recortada por todas as outras cadeias que se entrecruzam.
4) Demanda e desejo
Na análise procuramos significantes que ficaram recalcados. E o inconsciente (recalque) está precisamente nos pontos de ruptura, onde o significante está interessado. E é também o significante que nos coloca na via do desejo do sujeito, este x preso nas malhas da rede significante.
Temos por objetivo restaurar, revelar o desejo do sujeito em seu discurso. Porém, como fazê-lo, visto que o desejo é enigmático (x), excluído, ligado aos significantes recalcados? O que se articula nesses significantes recalcados é sempre a demanda. Outra coisa é o desejo, através do qual o sujeito se situa, pelo fato da existência do discurso, em relação à demanda. Não se trata do que o sujeito demanda, mas de como se posiciona, de quem é ele em relação à demanda.
5) Fantasia
Na medida em que sua demanda é recalcada, mascarada, o ser do sujeito se exprime de modo fechado na fantasia de seu desejo (p. 171). A restituição do sentido da fantasia, que é imaginária, se inscreve no grafo entre as duas linhas horizontais – de um lado o enunciado da intenção do sujeito e, de outro, a enunciação, onde o sujeito lê sua intenção sob uma forma profundamente decomposta, despedaçada, fragmentada pela língua. A fantasia, onde o sujeito suspende sua relação ao ser, é sempre enigmática, mais do que tudo. E o sujeito quer que a interpretemos, que interpretemos seu desejo.
Interpretar o desejo é restituir aquilo a que o sujeito não pode aceder sozinho, ou seja, o afeto que designa seu ser e que se coloca no nível de seu desejo. Desejo preciso, que intervém em tal ou qual incidente da vida do sujeito: desejo masoquista, desejo suicida, desejo oblativo.
6) A mensagem da "tossinha"
Lacan, no final da aula VIII, fala da "tossinha" do paciente de Ella Sharpe, uma maneira de tossir levemente ou pigarrear antes de entrar em um ambiente. Hum! Hum! A mais discreta das tosses (p. 179). Tossia para se anunciar, se fazer perceber. A "tossinha" era uma mensagem, assim enunciada por ele: "Eu tossi e isso quer dizer alguma coisa". "Estou aqui!". Porém, a história que acompanha a tosse é a de uma fantasia infantil de, ao contrário de anunciar, despistar sua presença. Como? Latindo. Ao latir, quando não queria ser encontrado, todos pensariam tratar-se de um cachorro e ele se safaria. O uso do significante au-au (p. 182) pelas crianças quando querem nomear o cachorro é diferente do que acontece aqui. Aqui, o sujeito incluído na atividade da fantasia atribui a si mesmo o au-au. Cassa-se o uso da palavra, se faz animal, se naturaliza. Quando está na presença do Outro ele é ninguém. O mesmo "Meu nome é ninguém" de Ulisses frente a Polifemo, o ciclope gigante2 .
Como mostra o sonho relatado no dia em que se fez anunciar pela tossinha, o sujeito de Ella Sharpe é ninguém em relação à mulher.
Ele não é, não pode ser, falta-lhe a identificação com o mais fundamental dos símbolos, o falo.