Orientação Lacaniana
Setembro 2014
Na Seção Bahia da EBP, Nora Gonçalves trabalhou no último semestre, o Curso de Jacques-Alain Miller O Ser e o Um, que ela nos apresenta aqui. Trata-se de um Curso que esclarece de maneira particularmente fecunda. o último ensino de Lacan articulado ao final de uma análise, ao passe e ao que Miller chamou de "ultrapasse".
Retomando o Há Um trabalhado no Seminário da EBP sobre o Seminário 19 de Lacan, Nora nos aponta que este é um Curso sobre o Sinthoma, a partir da constatação de que não há relação sexual, e tampouco "A mulher", particularmente explorada no Seminário 20. Encore faz equívoco com encorps (em corpo), e é o Seminário onde Lacan avança em direção ao campo da existência, do que há, o real do gozo e do sinthoma.
Nora nos ajuda a entender a mudança de perspectiva operada por Lacan com o Seminário 20, e porque ele anuncia finalmente, que "o Outro é o corpo". Sua leitura esclarece porque o gozo feminino, situado por Lacan nas fórmulas da sexuação, nada mais é, para Miller, que o gozo como tal. Abre também perspectivas em direção ao X Congresso da AMP, cujo tema é: O corpo falante – sobre o inconsciente no século XXI, que terá lugar no Rio de Janeiro, de 24 a 28 de abril de 2016.
Ainda neste mês de setembro, temos notícias do trabalho em curso na Delegação Paraná e na Seção Santa Catarina da EBP, em torno dos Cursos "O ser e o Um" e "O ultimíssimo Lacan", ambos na perspectiva do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: "Trauma nos corpos, violência nas cidades". Nancy Greca nos fala das maneiras como a Delegação Paraná tem repartido, de maneira profícua, o trabalho no espaço da Orientação Lacaniana. E Luis Francisco Camargo e Flávia Cera nos contam como continua o trabalho na Seção Santa Catarina após a exitosa Jornada sobre "Psicanálise, crenças e leis".
Elisa Alvarenga
Sobre o Curso de Jacques-Alain Miller, O Ser e o Um
Nora Pessoa Gonçalves
Nesta era pós-estabelecimento do texto de Lacan, Jacques-Alain Miller tratou de reencontrar o que Lacan não disse, como um descobridor da cidade perdida, o que aparece como um tesouro em seu seminário de 2010/2011? O que nos traz esse título de Jacques-Alain Miller, O Ser e o Um?
Miller demonstra que, olhando para trás, mirando o conjunto de todos os seminários de Lacan, em 30 anos de seu ensino vê-se a arquitetônica lacaniana organizada, como superfícies em torno de um vazio. A análise levada a seu termo nos aproxima desse furo indizível. Esse furo é de cada um e, ao mesmo tempo, da questão de que não há relação sexual. Quando Lacan diz, a relação sexual não existe, isso é dito no nível do real, não do ser. No nível do ser, há relação sexual, pois o Ser é cópula. Miller traz aí uma oposição conceitual entre o Ser - objeto da ontologia - e a existência, campo ao qual Lacan liga o gozo na sua vertente Real. Ele explica que a ontologia diz respeito ao ser e que Lacan pôde dizer que talvez o inconsciente fosse real e que o significante não é ser, mas real.
Na passagem da ontologia à henologia há uma mudança de perspectiva, que passa de uma proposição sobre o Ser para uma proposição sobre o Um, agora visando a letra e o real. Na separação que Miller faz entre o Ser e o Um, há um adeus à ontologia, numa nova abordagem da fala, não mais em direção ao núcleo do ser (o kernunsereswesens de Freud), mas como iteração de um acontecimento de corpo produzido pela pura percussão do corpo pela fala.Trata-se do Um do gozo, que retorna sempre ao mesmo lugar, por isso qualificado de Real. Lacan percorre no final de seu ensino, a trilha entre o significante Um, e o gozo opaco ao sentido.
Sabemos que quando entra o Ser, entram também as identificações, e o Um não diz respeito às identificações. Miller diz que Lacan, seguindo Freud na repetição, viu a ocasião de fundar seu conceito de ordem simbólica. Isso lhe abriu o caminho para a invenção do que chamou de cadeia significante, cujo caráter matemático e formal ele realçava, sem outro conteúdo a não ser um sujeito que se veicula como um zero, sob a sequência de números.
Isso muda por completo quando damos um conteúdo de gozo à repetição. Se for de gozo que se trata na repetição, então o termo "cadeia" é inapropriado: não se trata mais de uma sucessão que se conta e se adiciona, Miller o evoca, trata-se de uma reiteração. Isso é o que podemos chamar de pura repetição, a reiteração do Um de gozo, para a qual hoje, Miller promove o termo adicção.
Miller se reporta à energeia grega, que encontra aqui seu nome lacaniano - gozo. Ele o explica: "A idea, transpondo para o latim e numa palavra francesa inspirada no latim, é a quididade. A idea é aquilo por meio do qual se pode dizer o que é, quid. Pode-se dizer o que é, pode-se dizer sua identidade, fazer dela o desígnio, tal como uma imagem, pode-se dar sua definição no sentido. É também o que foi chamado de essência. A energeia, em contrapartida, é precisamente sem quididade. É uma quodidade, não se pode dizer o que é, pode-se apenas dizer que é".
Miller faz essa distinção para formular, em relação ao que é da ordem imaginária e simbólica, o nível real do há (il y a), e que é a porta do último ensino de Lacan. O há (ya), diz Miller, se quisermos aparelhá-lo com o vocabulário tradicional da filosofia, refere-se à quodidade, à energeia, é justamente ordenado pelo dado puro do há/não há. Em primeiro lugar, o Há o Um (Yadl'Un), fórmula que constitui uma redução do simbólico e também uma redução da articulação, para extrair como seu real essencial, a iteração como núcleo, como o que resta da articulação.
É dizer também não há relação sexual, que é correlativo do Há o Um e que significa que não há dois. O dois não está no mesmo nível que o Há o Um. O dois, segundo Miller, já está no nível do delírio. Não há dois, há apenas o um que se repete na iteração, como reiteração da falta. Esse Um do Real, que não é unário, é da ordem da escrita.
Miller acrescenta ainda uma terceira fórmula: há o corpo, já presente no título Mais, ainda. Ao se soletrar Encore (Mais, ainda), ouve-se en corps (em corpo). Nesse nível, resta pensar em relação aos dois há (il y a), que não são os dois sexos, são o um e o corpo. É nesse nível que o corpo aparece como o Outro do significante, o que Lacan já deixava ouvir quando dizia o Outro é o corpo. No nível da energeia, o Outro do significante é o Outro do corpo e de seu gozo. Miller traduz isso dizendo que, uma vez que o discurso está limpo no nível do real, uma vez livre da relação sexual, o que se desnuda é a conjunção do Um com o corpo.
Lacan coloca aí o corpo. Este só se apreende por aí. E o sinthoma? No fundo, esse seminário de Miller é sobre o Sinthoma. O sinthoma é definido como um acontecimento de corpo que, evidentemente, dá lugar ao sentido. A partir desse acontecimento, uma semântica dos sintomas se desenvolve. Sabemos que o analisante dá sentido, interpreta, trata-se da semântica em jogo na análise, mas na raiz dessa semântica há um puro acontecimento de corpo, o irredutível do sinthoma. Então, onde não há relação sexual, há sinthoma.
Delegação Paraná.
Nancy Greca de Oliveira Carneiro1
Lacan faz do texto, enunciado ou escrito, uma letra que causa, que convoca, que subverte. Sua escrita nos provoca uma experiência corporal de angústia, angustia que, em algum de nós causa, nos faz avançar rumo ao indecidível, ao indefinível, ao infinito.
A Orientação Lacaniana é um espaço de leitura e trabalho da letra freudiana e lacaniana, que se sustenta, na Delegação Paraná, em três atividades: o Cartel de Orientação Lacaniana, a Leitura Comentada dos Seminários de Lacan e a Orientação Lacaniana no contemporâneo.
O Cartel de Orientação Lacaniana tem este ano por tema “O Trauma e o Um” cujo texto base é o Curso de Miller O Ser e o Um. A entrada do Há Um implica em Lacan a dimensão do insconsciente real, para além do inconsciente transferencial. Em o Ser e o Um, Miller separa a existência no campo da ontologia - Ser (onde existe tudo que possa ser dito, com a condição de poder ser afirmado ou negado) da existência na henologia - do Um, impossível de se negativar.
Na Leitura Comentada dos Seminários de Lacan damos ênfase ao Seminário - livro 6: O desejo e sua interpretação de Lacan, estabelecendo a leitura do texto que Miller nomeia “O Outro sem o Outro” e que apresenta como o grande segredo da Psicanálise e que permanece segredo para os analistas: “não há Outro do Outro” S(A/). Cita Hegel “os segredos dos egípcios eram segredos para os mesmos egípcios” 2.
A que nos serve este texto? O Seminário VI – O desejo e sua Interpretação foi ditado por Lacan no ano de 1959 e, orienta Miller, pode ser lido em relação a dois Escritos de Lacan: De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose3 e A direção do tratamento e os princípios de seu poder4, respectivamente textos em que estabelece o Nome do Pai e coloca a questão do final de uma análise.
O segredo, anunciado em 1959, não encontrou no psicanalista o seu destinatário. Será preciso, do Seminário 23 - O sintoma, voltar ao Seminário 6 e dele se extrair o que lá se anuncia “não há Outro do Outro”. Trata-se de uma releitura do enunciado de 1959, considerando as consequências deste anúncio na clínica de hoje.
Finalmente, em A Orientação Lacaniana no Contemporâneo, estamos trabalhando em torno de textos dos colegas da EBP/AMP sobre o trauma e a violência.
1/a> Nancy Greca de Oliveira Carneiro é Psicanalista, Membro da AMP/EBP, Mestre em Antropologia Social, Professora do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Membro do Grupo de Pesquisa Aspectos Psíquicos e Psicossociais do ser Humano em Desenvolvimento, na linha de Pesquisa em Psicopatologia. nancy.carneiro@pucpr.br
2 Apresentação do XI Congresso da NLS em Grand “O sujeito psicótico na época grega” realizado em Atenas, 19 de maio de 2013.
3 Artigo que contém o apresentado no Seminário 3 – As psicoses, de 1955-56.
4 Relatório do Colóquio de Royaumont. Colóquio Internacional da Sociedade Francesa de Psicanálise realizado em 10-13 de julho de 1958. Lembro que Lacan fala do analista ao analista para desalojar a impostura de uma sociedade que traduz o Wo es war, sol Ich werden de Freud por: O Eu deve desalojar o Isso.
Seção Santa Catarina
Seminário da Orientação Lacaniana
Coordenação: Luis Francisco E. Camargo e Flávia Cera
No primeiro semestre deste ano decidimos estudar os textos de Freud, Lacan e Miller, que abordavam o tema da IX Jornada da Seção Santa Catarina – Psicanálise, crenças e leis. Os estudos tiveram como pivô os textos de Freud, “Totem e Tabu” e “O futuro de uma ilusão”.
Passado esse momento, neste segundo semestre, optamos por trabalhar um dos cursos de Jacques-Alain Miller, publicado recentemente em espanhol sob o título “El ultimísimo Lacan”, curso proferido em 2006-2007, no programa do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris 8 e no Seminário da Orientação Lacaniana do Campo Freudiano. Grande parte desse curso foi também publicado no Brasil pela Editora Jorge Zahar no livro intitulado “Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma”.
Neste curso encontramos a leitura de Miller sobre o Momento de Concluir de Jacques Lacan e o Sinthoma, Segundo Miller, é um momento no qual Lacan apresenta uma saída para a prisão de um lacanismo, isto é, um Lacan contra Lacan, o que o levou a afirmar diante da sua Escola, “eu não sou lacaniano”. Encontramos nesse curso o desenvolvimento do termo, apresentado por Lacan para tentar abordar a teoria do traumatismo e do sintoma como acontecimento de corpo, o inconsciente real. Nesse sentido, optamos por estudar esse curso tendo em vista a preparação para o tema a ser abordado no XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: trauma nos corpos, violência nas cidades.
Neste primeiro encontro do Seminário de Orientação Lacaniana trabalharemos o primeiro capítulo do Curso El Ultimíssimo Lacan, "O esp de um laps", (ou O inconsciente real) de Jacques-Alain Miller. Miller indica que Lacan situava-se num traumatismo diante da descoberta freudiana, o inconsciente, para o qual elaborou como resposta o real. A ambição de seu ensino seria, então, repercutir o traumatismo Freud. Para tanto, Miller centra-se em uma leitura minuciosa do Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (Outros Escritos) para apresentar as mudanças operadas por Lacan em relação ao inconsciente. Sua leitura mostra uma passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real. Da concepção de inconsciente atrelado ao Sujeito Suposto Saber (SsS), ao inconsciente como exterior ao SsS, à máquina significante que produz sentido. Uma passagem, enfim, do Sujeito Suposto Saber ao furo do traumatismo. E a interpretação, como fica a partir dessas proposições?
Convidamos todos os interessados para participar destas discussões, a fim de construirmos neste espaço, uma leitura que nos permita pensar os desafios clínicos e políticos que se apresentam com a leitura de Miller.
Data: 03 de setembro de 2014
Horário: 20:30
Local: Rua Jerônimo Coelho, 280 – Ed. Sudaméris – Sala 901 – Centro – Florianópolis.
REFERÊNCIAS
LACAN, Jacques. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In.: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 567-573.
MILLER, J-A. El esp de un laps. In.: MILLER, J-A. El Ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013, pp. 9-22.
Outras versões desse texto podem ser lidas em:
MILLER, J-A. O inconsciente real. Opção Lacaniana online.
Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n4/pdf/artigos/JAMIncons.pdf
MILLER, Jacques-Alain. Primeira lição. In.: MILLER, J. Perspectivas do seminário 23 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 9-21.