Orientação Lacaniana
Maio 2014
Apresentação do tema do X Congresso da AMP por Jacques-Alain Miller
Paris, 17.04.2014
“O inconsciente e o corpo que fala”
Apresentamos aqui um extrato resumido do que foi apresentado por Jacques-Alain Miller, ao final do IX Congresso da AMP para anunciar, como de praxe, o tema do próximo Congresso. Agradecemos a Patrick Almeida sua eficácia e gentileza em nos ceder a transcrição de sua gravação da fala de Miller.
Miller parte de um fato: a psicanálise muda no consultório do psicanalista. Esta mudança se manifesta claramente nos títulos dos dois últimos Congressos, de 2010 e 2012, que contêm em seus títulos uma menção ao século XXI.
Se Freud inventou a psicanálise sob a vigência da época vitoriana, a partir do que escapava à repressão da sexualidade, o século XXI vive na época da difusão massiva do que chamamos de pornografia. A sexualidade é exibida, torna-se espetáculo, acessível a cada um na internet com um simples clique do mouse. Não passamos apenas da interdição à permissão, mas à incitação, à intrusão, à provocação, ao forçamento.
Nada mostra melhor a ausência de relação sexual no real do que a profusão imaginária dos corpos. Há algo de novo na sexualidade. A clínica da pornografia é do século XXI. Ela mereceria ser detalhada, porque ela é insistente. Ela se tornou presente em uma análise.
Como não evocar, a propósito desta prática tão contemporânea, o que foi assinalado por Lacan como a exibição dos corpos evocando o gozo na arte barroca? Mas, enquanto o barroco visaria a regulagem das almas pela visão dos corpos, na pornografia há ao contrário uma perpétua infração, provocando um mais-de-gozar. A cópula pornográfica é evacuada de sentido. Estas práticas exigiriam psicanálise e interpretação?
Os dois últimos Congressos foram centrados sobre o simbólico e o real. Agora é a vez do imaginário: “o imaginário, é o corpo”. A imagem é o corpo:
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enquanto imagem, espelho
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Ideal do eu e eu ideal
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Corpo e economia de gozo
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Significado, sentido e significação
“O corpo que fala, é um mistério”, diz Lacan. O que faz mistério, mas é indubitável, é a tomada do simbólico sobre o corpo. Esse fato da experiência é do registro do real. E convém dar lugar ao fato de que o último ensino de Lacan propõe um novo nome para o inconsciente, um neologismo, que não se traduz: o ser que fala (parlêtre).
Esta metáfora, a substituição do inconsciente freudiano pelo parlêtre lacaniano, é a operação que nos dá uma bússola para nosso próximo Congresso. Miller propõe tomá-la como o índex do que muda na psicanálise no século XXI.
A psicanálise muda de fato, apesar do nosso apego às palavras e às cadeias antigas. Trata-se de fazermos um esforço continuado para ficarmos o mais próximo possível da experiência para o futuro, sem nos chocarmos com o muro da linguagem. Para ajudar-nos a ultrapassar este muro, precisamos de um a-muro. Quer dizer, de um nó agalmático que fure este muro. E encontramos esta palavra no parlêtre. Analisar o parlêtre não será a mesma coisa que analisar o inconsciente no sentido de Freud, e nem mesmo o inconsciente estruturado como uma linguagem.
Miller faz a aposta de que analisar o parlêtre é o que nós já fazemos. Resta-nos saber dizê-lo, aprendermos a dizê-lo. Por exemplo, quando falamos do sintoma como um sinthoma, este traduz um deslocamento do conceito de sintoma, do inconsciente ao parlêtre. O sintoma como formação do inconsciente estruturado como linguagem é um efeito de sentido, induzido pela substituição de um significante por outro. Em contrapartida, o sinthoma de um parlêtre é um acontecimento de corpo. Trata-se de uma emergência de gozo. O corpo em questão, aliás, não é necessariamente o de cada um. Uma mulher pode ser o sintoma de um outro corpo.
O sinthoma do parlêtre está para ser esclarecido na sua relação com os tipos clínicos. Da mesma forma que a segunda tópica de Freud não anula a primeira, mas compõe com ela, Lacan não veio apagar Freud, mas prolongá-lo. E os remanejamentos do seu ensino se fazem sem rupturas, utilizando os recursos topológicos conceituais que asseguram a continuidade sem interditar a renovação.
Miller aponta ainda um outro vocábulo ao lado do sinthoma: é a palavra escabeau. O escabeau psicanalítico é aquilo sobre o qual o parlêtre sobe, para fazer-se belo. Ele faz dele um pedestal, que lhe permite elevar-se à dignidade da Coisa. O escabeau é um conceito transversal. Traduz pela imagem a sublimação freudiana, mas no cruzamento com o narcisismo. Uma sublimação que se funda sobre o “eu não penso” do parlêtre, que é uma negação do inconsciente, pela qual o parlêtre se crê mestre do seu ser. Miller tenta um paralelo entre o sinthoma e o escabeau.
O corpo, o parlêtre não o é, ele o tem. Com estes dois gozos: um da fala e um do corpo, um que leva ao escabeau e outro que sustenta o sinthoma. O conceito do corpo que fala está na junção do ça com o inconsciente. Quando analisamos o parlêtre, o sentido da interpretação é o gozo.
A maior mutação que tocou a ordem simbólica no século XXI é que ela é concebida como uma articulação de semblante. As categorias tradicionais que organizam a existência passam a ser simples “construções sociais”, destinadas à desconstrução. Os semblantes são reconhecidos como semblantes, mas para a psicanálise, há Um real. O real do laço social, é a inexistência da relação sexual. O real do inconsciente, é o corpo que fala.
Enquanto a ordem simbólica era concebida como um saber que fazia recuar o real e lhe impunha sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. Se o real não está mais subordinado à ordem simbólica, há uma igualdade clínica fundamental entre os seres que falam, condenados à debilidade mental. Debilidade, delírio e duperie: tal é a trilogia que repercute o nó do imaginário, do simbólico e do real.
Miller propõe então nos reunirmos, para o próximo Congresso, sob o título “O inconsciente e o corpo que fala”, na cidade mais propícia a isso, o Rio de Janeiro, com o seu Pão de açúcar, o mais magnífico emblema dos escabeaux.
Elisa Alvarenga
Maio de 2014