Extimid@des 16
EDITORIAL
Opiniões políticas à parte, o que se viu antes das últimas eleições nas rêdes sociais no Brasil levantou questão entre os sociólogos, os historiadores, os estudiosos das ciências humanas em geral e, em particular, entre nós, psicanalistas: porque as pessoas se expuseram tanto? Para além de seu voto, os freqëntadores expuseram seu íntimo: suas emoções, sobretudo seu ódio, e suas ideias, sobretudo seus preconceitos.
As colegas Cecília Ferreti e Bernardette Pitteri articularam a psicanálise a esses domínios que as rêdes sociais teimam em misturar, o público e o privado. O boletim do próximo XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano também publicou, em 13 de outubro, texto de Ana Stela Sande sobre o tema, que pode ser acessado abaixo.
Por fim, temos o texto de Fabíola Ramon sobre a questão do imaginário tomada pelo prisma do artista Harun Faroki.
Desejo a todos uma boa leitura.
A PSICANÁLISE, O PÚBLICO E O PRIVADO
Maria Cecília Galletti Ferretti
Membro da EBP/AMP
O tema da oposição entre o público e o privado reveste-se de grande peso no âmbito da contemporaneidade, levando mesmo a que se afirme que o conceito de esfera pública é o mais importante de toda a teoria política na segunda metade do século XX. Para Hannah Arendt, em sua obra magna A condição humana, o conceito de esfera pública é entendido como tudo aquilo que pode ser visto e ouvido por todos e adquire a maior visibilidade possível.
A palavra pública, do latim publicus, refere-se, de maneira privilegiada, a um número mais ou menos considerável de pessoas; refere-se àquilo que é aberto a qualquer pessoa, sem caráter secreto, manifestamente. O privado é o seu oposto, o restrito, aquilo que pertence a alguém em particular; o confidencial, o singular e não comunicado.
Cabe que nos perguntemos qual é a contribuição que a psicanálise pode oferecer para a reflexão sobre estes dois conceitos que se apresentam sempre como um par de opostos e que hoje é referido aos mais variados contextos teóricos e práticos de nossa atualidade.
As reflexões que podemos fazer encontram solo fértil quando direcionadas para o próprio campo psicanalítico. Freud, ao fazer nascer a psicanálise, trouxe para a instância científica e, portanto, pública, pontos axiais de sua vida privada para daí retirar consequências teórico-clínicas de peso. Além disso, Freud utilizou de forma soberana os casos clínicos analisados por ele que a partir de então, saíram do privado para alcançar a instância pública.
Seria também profícuo refletir em que medida o analista ocupa, enquanto Outro ou a, o público, o que nos abriria novas portas para a investigação, tema que não será aberto aqui; neste sentido cabe apenas apontar para o aspecto de que o analisando, ao falar, sai do estritamente privado. Note-se, no entanto, que, neste sentido, a definição de “público” altera-se em determinada medida.
Lacan, especialmente, ao criar o dispositivo do passe, transformou em ensino aquilo que as análises, em sua atualidade, demonstravam, mesmo que em forma de “ficção”.
Se tomarmos a história da filosofia e nela recortarmos apenas o período do século XVIII aí inserindo Kant e Rousseau, veremos que para Kant a clareza (Iluminismo é o século das Luzes) é voltada para a consciência dos objetos e não para si mesmo; enquanto Rousseau escreve um livro intitulado Confissões e é dedicado, como o próprio título indica, aos dados de sua vida e às suas experiências pessoais.
Concluamos em termos breves o que poderíamos desenvolver mais longamente: a psicanálise dignifica a passagem do privado ao público enquanto as redes sociais correm o risco, sempre presente, de tornar perniciosa esta ultrapassagem.
PARA LER MAIS...
O boletim do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano trouxe, no dia 13/10/0214 o texto abaixo, cuja leitura complementa muito bem os textos acima:
http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/10/trauma-intercessao-entre-o-publico-e-o.html
HARUN FAROCKI E O DESVELAMENTO DA ILUSÃO DE COMPLETUDE DA IMAGEM
Fabiola Ramon
Seção S. Paulo EBP. Clin-a Ribeirão Preto-SP
O diretor de cinema, crítico e teórico alemão Harun Farocki, falecido no ultimo mês de julho, tinha como premissa e objeto de trabalho a proposição “desconfie das imagens” . Muitas de suas obras expressam esse convite. Seu método não é explicativo e busca evidenciar, muito mais do que mostrar, que algo está velado na imagem. Ele usa da imagem para revelar o furo de consistência que ela comporta, os estilhaços que escapam da tentativa necessária e estrutural de fazer unidade. Um dos temas preferidos do artista para explorar essa questão foi a guerra. Em exposição na Fundação PROA (Buenos Aires, 2013), intitulada Instalaciones/cine, pude ver a obra “Serious Games III: Immersion” (2009, 20 min) que mostra a experiência de um centro americano de tratamento de soldados que regressaram da guerra do Iraque com diagnóstico de “transtorno pós-traumático”. Essa videoistalação nos interessa como analistas, pois traz pontos interessantes para se pensar diferentes abordagens em relação ao trauma.
A viodeinstalação é composta por duas projeções simultâneas. De um lado, aparece a imagem do procedimento do tratamento: um soldado “pós traumatizado” utiliza uma espécie de óculos acoplado ao seu olho e narra a cena traumática. Conforme ele rememora a cena e a conta (para alguém que não aparece no vídeo e que é responsável por produzir as imagens em computador), constrói-se uma imagem referente à situação traumática, que instantaneamente vai sendo projetada nos óculos do soldado. Do outro lado, Farocki, então, projeta para o espectador a cena produzida a partir da rememoração, concomitantemente a descrição do soldado. Ou seja, o espectador assiste a remontagem da “cena traumática” no mesmo instante em que ela se produz. O espectador vê, então, cenas de games, esses que se jogam nas máquinas de brinquedo dos shoppings. Ainda nesta instalação, Farocki mostra o mesmo recurso, que ele chama de “montagem de imagens” ser utilizado pelo exército americano para preparar soldados para a guerra. Os soldados compõem as cenas a partir de recursos tecnológicos dos satélites que capturam as imagens dos locais onde há possibilidade de confronto e que permitem a composição de um ambiente o mais próximo “possível da realidade”. A videoinstalação evidencia o lugar influente e de destaque da imagem e convida o psicanalista e refletir sobre isso.
No que toca ao procedimento do “tratamento pela imagem” proposto por esse centro de pesquisa, Farocki nos instiga a pensar na concepção e abordagem do trauma presente ali e em sua “resolução”, primeiro a partir da rememoração (essa também foi aposta de Freud ao inventar a psicanálise) e depois da “tradução” desse material para uma “espécie de filme” que supostamente tem o poder de “tratar o horror” vivido em situação da guerra.
O soldado narra, ou seja, fala de sua experiência. No entanto, o enquadre do procedimento busca eliminar equívocos e interpretações. O que se fala é “traduzido” literalmente por um operador de computador. O suposto poder do tratamento, então, não está na fala, mas sim no produto da imagem, quanto mais fiel ao que foi vivido, mais eficácia para o tratamento ela supostamente tem.
Essa proposta evidencia um lugar dado à imagem que estruturalmente não corresponde à sua potência. Propõe-se um curto circuito via imagem que rechaça o simbólico e toma o real como realidade.
Diante do buraco no simbólico aberto pelo encontro com um real impossível de se escrever, esse centro convida os soldados a fazerem uma espécie de “fast-remendo” pela imagem, que resignificaria a experiência traumática pondo fim a uma dor que não cessa de retornar.
Essa proposta de tratamento se sustenta de alguma maneira, pois apresenta alguma eficácia. E isso nos interessa como psicanalistas. Qual a incidência de um tratamento que parte da rememoração, mas que exclui o lugar de endereçamento das questões do sujeito e apresenta, em lugar deste, a produção de uma imagem que daria conta de obturar o horror?
Algumas Terapias Cognitivas Comportamentais também fazem uso da imagem e da rememoração da situação vivida. No entanto, o objetivo é que a rememoração possa levar a uma resignificação, ou seja, o que está em jogo ali é a produção de um (novo) sentido, a imagem como forma de produzir sentido, enlaçar simbólico e imaginário, rechaçando o real, o buraco do sem sentido.
No “tratamento pela imagem” oferecido por esse centro para pós traumáticos, possivelmente a hipótese é de que essas imagens tenham um função catártica, assim como no cinema, nas artes visuais e em outros campos artísticos. Por si, isso não sustenta a pretensa eficácia de um tratamento.
Podemos hipotetizar que a construção dessa “imagem que trata” serve de espécie de produção de um “sonho sem umbigo”, seria como um sonho limpo da incidência da castração e da presença do objeto, uma forma de o sujeito reforçar o recalcamento e descartar, ainda que por um tempo limitado, a insistência do retorno do objeto. Há um trabalho de valorização do recalque e os efeitos terapêuticos advém dessa “reconfiguração temporária” que o sujeito faz com o recalque.
Esse fast remendo parte do princípio de que a passagem por uma situação de horror de guerra necessariamente produz um trauma e oferece um tratamento prêt-à-porter, uma resolução que serve para todos os “pós-traumatizados de guerra”, um rechaço à singularidade, assim como ao próprio simbólico que está em jogo no convite ao sujeito a contar sobre sua experiência, sobre o que e como ressoou a ele essa experiência.
Podemos nos perguntar: mas, para onde vai esse horror ? qual o seu destino ?
Numa análise também não sabemos qual será o seu destino. No entanto, a partir do encontro com o analista o sujeito também é convidado a falar e a rememorar. Mas, o convite se expande a poder colher as consequências de sua fala por meio das interpretações e do ato do analista, que se sustentam na transferência, que por sua vez, necessita da presença dos corpos e do lugar esvaziado, mas apto a ser depósito da realidade sexual do sujeito que ali fala. A aposta é que a partir da rememoração, que já é uma tentativa via imaginário e simbólico de juntar os cacos do encontro com o real, o sujeito possa tecer a sua própria maneira de bordear o buraco e assim moderar a invasão e o retorno do objeto, sem rechaçá-lo, e, quem sabe, a partir desse retorno, escrever um sintoma singular.
Tanto o tratamento pela imagem quanto o tratamento pela via do real de Lacan destacam o lugar não primário dado ao simbólico. No entanto, estes buscam soluções diferentes para o mesmo “problema”. O primeiro faz remendo de real e o segundo incide sobre o real a partir do furo no simbólico e da inconsistência da imagem. Lá onde o primeiro faz uma rápida incisão sobre a singularidade visando a generalização do sintoma, a psicanálise segue na corrente inversa, deslocando do geral para o singular.
Em certa medida, é o mesmo que Farocki faz em suas obras quando expõe a forma como algumas imagens são produzidas; ele parte de uma gramática visual comum e constrói uma sintaxe própria que expõe o furo e faz dele novas invenções.
Veja parte da Instalação Serious Games III: Immersion de Harun Farocki
Colaboraram com a coluna Extimid@des Maria Bernardette Pitteri, Luiz Felipe Monteir, Niraldo Santos e Bia Dias