Extimid@des 15

 


EDITORIAL

NO QUÊ SOMOS TÃO DIFERENTES QUE PRECISAMOS NOS FAZER IGUAIS?

Marcia Szajnbok - Psicanalista membro da EBP/AMP

 

"O termo irmão está em todos os muros, Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Mas eu lhes perrgunto na situação da cultura em que nos encontramos: de quem somos irmãos? De quem somos irmãos, em todos os discursos que não o discurso analítico?"1


Quando, em meados do século XVIII, Lineu publicou sua classificação das espécies, ele procurava o método mais próximo possível da racionalidade absoluta, pois não podia crer que a natureza se comportasse de modo caótico. Curiosamente, entretanto, por trás dessa mente tão obstinada com a ciência e a razão, havia um homem profundamente religioso que se recusava a conceber a possibilidade de um deus que criasse o caos, de modo que a história natural teria por missão sistematizar a obra divina.


Ao nos aproximarmos dessa questão, tal antítese presente desde a origem do pensamento classificatório parece atravessar os séculos de modo mais ou menos explícito. Não nos esqueçamos que Kraepellin e Freud foram praticamente contemporâneos mas, enquanto um se dedicou a estabelecer os primeiros critérios supostamente universais de diagnósticos psiquiátricos, o outro reiteradamente nos lembrava de que todos os casos devem ser atendidos como o primeiro, isto é, no âmbito de um não saber, ou ao menos de um saber que é singular, que não se universaliza.


O problema de classificar ou não os humanos, entretanto, longe de se se extinguir parece ter se reforçado e recrudescido com o passar do tempo. Tomemos, por exemplo, as reflexões de Michel Foucault. Partindo da descoberta de micropoderes disciplinares que, surgidos no século XVII, caminham para a formação de instituições normatizadoras - o exército, a escola, o hospital - ele chega aos conceitos de biopolítica e biopoder que passam a ser exercidos por um Estado, sobretudo a partir do século XIX, que tinha como pretensão administrar os corpos e a vida de cada elemento da população. Trata-se, para Foucault, de um Estado que poderíamos chamar de admistrinador da vida. Algo mais contemporâneo?


A psicanálise nasce na contracorrente desse movimento classificatório, normatizador, ou administrável, enfatizando a singularidade, o um-a-um, o que não se repete jamais, o inédito. Em 1972, Lacan nos alertava para o fato de que ainda não tínhamos visto a última palavra sobre o racismo e, ao mesmo tempo, que o discurso analítico é o único diante do qual estamos, de fato, todos irmanados. Seremos todos iguais, na nossa mais absoluta singularidade? Como compreendemos isso hoje? O que, nós psicanalistas, temos a dizer diante de fenômenos contemporâneos que só fazem reafirmar e amplificar a segregação? Em cidades dos EUA, como Ferguson, ou em estádios de futebol brasileiros, diferenças raciais são justificativas para o racismo. Já o foram as religiôes, o sexo, a escolha sexual. O que mais? Que o comentário dos colegas possa lançar uma luz sobre essa questão. No final, trazemos ainda um texto cedido gentilmente pelo colega Antonio Teixeira, e brindamos a todos com uma deliciosa canção, gravada por Billie Holliday, Strange Fruit.

 

1 Lacan, J. – O Seminário: ... ou pior -  livro 19; 2011. Zahar. Rio de Janeiro. P.226

 

 

DERME, DISCURSO E GOZO
- CONTENDAS RACIAIS -
PELE E SEGREGAÇÃO

Ary Farias - Analista Praticante, Delegação MS/MT, Escola Brasileira de Psicanálise

 

Mãos ao alto, não atire.


Esta foi a última legenda da mais recente explosão de racismo nos Estados Unidos. Ocorreu a partir do assassinato de Michael Brow, estudante negro de 18 anos, que foi assassinado por um policial (branco) em Ferguson, uma pequena cidade no Estado de Missouri, com 21 mil habitantes. A cidade concentra uma população negra quatro vezes maior que a média americana.  Os protestos geraram confronto com a polícia, saques e destruição de lojas.


Racismo contra uma minoria? Nesse caso, os números não esclarecem os fatos. Pelo referencial sociológico, "minoria" não necessariamente representa a discrepância quantitativa entre os grupos sociais. Aponta, antes, para os grupos que estão numa posição subordinada na estrutura do poder.
Segregação social? Como pensar que uma cidade eminentemente negra possa ter sua população dominante em situação segregativa?


Ferguson é apenas um ponto no atlas americano, um país onde os negros representam apenas 13% da população. Nessa disposição racial, a minoria negra não conseguiu uma representatividade social suficiente para romper as barreiras quase sempre invisíveis, impostos pelos modelos conceituais e comportamentais segregatórios da sociedade como um todo. Consequentemente, resta aos negros apenas uma expressão social secundária, uma voz de fundo mais afeita a obediência e relegada à marginalidade.


Esse é o mecanismo pérfido e elementar do processo segregativo, ou seja, apartar, dissociar determinado grupo, instaurando distâncias sociais e barreiras comunicativas que insuflam o sentimento de estranheza e rivalidade entre os grupos que compõe uma realidade social.


Por efeito, o que se inaugura a partir dessa realidade é a infraestrutura do que serão os guetos, os lugares silenciosamente autorizados para a ocupação dessas minorias, ratificando, desse modo, o destino de rebotalho legado às minorias segregadas.  Refugados, serão então expelidos para as periferias dos conglomerados urbanos. Excêntricos (aqui no sentido de fora do centro), terão suas possibilidades simbólicas, afetivas, cognitivas e sociais inibidas, cristalizando e perpetuando o fenômeno segregativo.
Longe de ser um fenômeno social restrito às fronteiras americanas, o racismo é uma chaga mundial. Responde por uma gama importante de atrocidades verificadas em todos os continentes, sobretudo quando associado à intolerância sexual e religiosa.


No Brasil, a despeito da democracia racial tão fomentada, de fato, o que se verifica, camuflado pela amabilidade do povo, é a mesma engrenagem de exclusão.


O carnaval, o Brazilian product por excelência, publicado como modelo de comunhão festiva entre raças, ofertando imagens ao mundo de interação harmônica numa sociedade multirracial, apenas colore um racismo cordial"que vigora dissimuladamente, findo os dias catárticos.


Genótipo e Significante

A genética, enquanto discurso da ciência biológica, no que se dedica ao estudo dos fenômenos e das leis da transmissão hereditária, tomando para si o estabelecimento dos escores raciais, pouco diz ao psicanalista sobre o acontecimento racial.


Em psicanálise, subvertendo o conceito, o que tem função genotípica, diríamos, é o significante. A constituição do sujeito perpassa pelo que decorreu do acidente resultante do encontro arriscado entre o significante e o corpo. Desse modo, podemos pensar que o verdadeiro transmissor hereditário ? o que convém à psicanálise ? é o significante, no que este estrutura uma língua. Nela o significante sulca sua ascendência na carne (sexuação) e no destino (estrutura) de todo ser humano. Logo, em psicanálise, o que dá pertencimento racial a um sujeito decorre, antes de tudo, como efeito dos lugares simbólicos que um falasser irá ocupar dentro de um complexo discursivo.


No texto O Aturdito1 , Lacan afirma que a raça da qual se trata não é a que sustenta uma antropologia que se diz física... Ela se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente escravos... .


O que tomamos como raça, portanto, é a revelação do ambiente discursivo do qual cada um sucede enquanto sujeito. Rebento da linguagem, portanto, convocado a interpretar o desejo do Outro, tudo o que, a partir de então, advier no destino desse sujeito trará a rubrica de como se autorizou na linguagem, e de como singulariza a assunção do real.


Feita essa leitura, delimita-se outro viés interpretativo aos fenômenos sociais de racismo e segregação.
Em princípio, o que se coloca em curso nesses avatares sociais e que pulula à percepção do psicanalista, é a manobra que busca a anulação das singularidades. O racismo é a intolerância ao gozo estranho do outro. Antes de expressar uma discórdia social, trata-se na verdade de um contraste de gozos. 


Numa realidade cada vez mais adestrada à generalização globalizante, toda expressão de gozo que verse algum disparate, logo encontrará um Outro normalizador. Haverá sempre um CID onde se possam encarcerar certas singularidades... O discurso da ciência, ávido pela nominação e controle, breve colará no dissidente uma desordem claudicante qualquer, um morbus.


Aqui, Ciência e Capitalismo, os discursos prevalentes da contemporaneidade tem função subordinante. Em seus procedimentos de dominação combinada e colonizadora estabelecem os padrões, os desvios e consequentemente prescrevem as raças e sub-raças, logo, segundo a cartilha do mercado de consumo.
Nessa realidade, dificultados (na sua grande maioria) em acessar níveis de instrução além do elementar e afastados dos padrões de consumo estabelecidos por estes discursos, os negros se construíram como párias na ordenação das raças.


Numa abordagem para além dos pressupostos sociológicos a psicanálise, por sua vez, alcançará outros arranjos nos quais se sustentam os episódios raciais e segregativos. Afastando os resíduos dos discursos vitimários, o discurso analítico buscará nos fenômenos sociais os fatores identificatórios e os regimes de gozo sustentados pelo que aparece em forma de protestos.


Desse modo, não será surpresa verificar que o próprio grupo segregado possa ofertar a mazela como traço de identificação aos seus membros, sob a forma de enxame: todos orbitando o infortúnio coletivo. Isso não impede, por outro lado, que no revés coletivo cada sujeito possa atualizar o gozo do Um. O gozo segregado no corpo.


Racismo e segregação são expressões no coletivo da não-relação-sexual.
Para sempre, a sociedade estará suscetível às lufadas do real que desalinham as conveniências e publicam o provisório, que não cessa de se inscrever...

 

1 Jacques Lacan, "O Aturdito" (1973), in Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 462.

 

 

A REGRA DO JOGO

Jovita Carneiro de Lima - Psicanalista associada ao Clin-a – São Paulo

 

O racismo existe na sociedade, não é uma patologia do futebol, é uma doença social.   A afirmação é do historiador Luiz Carlos Ribeiro, em matéria da revista Carta Capital comentando o fato ocorrido na partida Grêmio x Santos em 28/08/14, na arena do Grêmio em Porto Alegre, quando o goleiro do Santos, Aranha, foi xingado com palavrões de cunho racial pela torcida do Grêmio.


O episódio teve ampla repercussão na mídia e redes sociais, reacendendo no Brasil o debate sobre o chamado racismo no futebol.  Em detrimento das campanhas antirracismo encabeçadas pelos clubes e pela Fifa, o fenômeno só tem aumentado em frequência e intensidade ao redor do mundo.


O racismo, pensado como doença social pelo historiador, vem sendo abordado pela psicanálise desde Freud. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, ele o traz a discussão para mostrar a dificuldade que tem o humano em suportar a aproximação muito íntima com seu semelhante. Em Lacan, o racismo é inerente ao discurso, ou seja à maneira como se estabelece o laço social. É também por essa via que se ordenam os modos de gozo do ser falante. Portanto, trata-se de um fato de estrutura.


Jacque-Allain Miller em seu curso Extimidad, sustenta queo racismo pode ser pensado em relação ao gozo do Outro. Assim, o que caracteriza o chamado racismo moderno, é que não se trata apenas de um ódio à diferença, mas de odiar a maneira como o Outro goza, o que segundo Miller está na base de todas as formas de segregação, um dos nomes do mal-estar na cultura.


Vivemos hoje o futuro que Lacan anunciou em sua Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola:  a parceria entre o discurso da ciência e o discurso do capitalismo funda mercados comuns, onde o mais-de-gozar na forma de objetos diversos e descartáveis, estaria disponível para todos. O efeito disso é, como disse Lacan, a ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação, em todos os aspectos da vida cotidiana.


O futebol há muito joga segundo as regras do mercado. O chamado mercado da bola movimenta somas astronômicas em negociações de jogadores, bilheterias, direito de imagem etc, para ficar no mais conhecido. Os efeitos de segregação já aparecem ai, onde nem todos ganham o mesmo. Porém, tais efeitos ficam mais visíveis ainda nos estádios, onde torcer é uma questão de território: torcedores de times adversários não podem se sentar lado a lado, sob o risco de um ficar impedido de torcer pelo seu time. A separação das torcidas nos ilustra a solução que vem sendo dada a questão da segregação, o estabelecimento de limites como a demarcação de fronteiras que se revelam muito frágeis ou a punição que só faz recrudescer mais ainda o imperativo do supereu.


A meu ver, nada pode ser mais ilustrativo do fracasso da pretensa homogeneização dos gozos proposta pelo mestre moderno do que uma partida de futebol.  Ali, o gol não acontece para todos, comemorá-lo todos juntos e ao mesmo tempo é impossível. O ódio é dirigido ao outro que grita gol primeiro ou mais vezes.

 

Bibliografia:
Lacan, J. – Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola – Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.
Lacan, J. Seminário, livro 17 O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1992.
Miller, J.A – Extimidad. Buenos Aires. Paidós, 2010.

 

 

"BRANCO SAI, PRETO FICA". OU COMO ENFRENTAR A SEGREGAÇÃO?

Maria Noemi de Araujo

 

Branco sai, preto fica, levou o prêmio de melhor filme do 47º Festival de Brasília, domingo último, além de outros onze. Talvez por colocar na ordem do dia as figuras de crueldade como o ódio, a segregação e o racismo, este filme causou estranhamento desde sua primeira exibição, no 17º Festival de Tiradentes. A crítica não conseguiu classificá-lo: documentário ou ficção? É experimental? Não importa! É Cinema, retruca o diretor Adirley Queiroz, cada vez que essa questão vem à baila. Em Tiradentes, recusou-se a subir ao palco para receber uma menção honrosa e ir ao jantar de encerramento do Festival, por não ter recebido convites para toda sua equipe. Radicalizou e inventou, então, um "churrasquinho na laje"...


O filme fala de um antes e de um depois do ato policial que traumatizou um grupo de jovens da Ceilândia (DF,1986). Ao interromper um Baile Black, a polícia meteu bala nos que ficaram, após ordenar: branco sai, preto fica.  O roteiro escrito a partir do único recorte de jornal que restou disso, trata do modo pelo qual esse ato policial, não localizável, foi subjetivado pelos protagonistas, atores-testemunhas da violência que os atingiu - um sem perna, outro paraplégico.

 

Ao D.R., Adirley falou de suas experiências com a segregação. Numa dessas batidas policiais, na periferia de Brasília, percebeu que um dos jovens acuados foi liberado após mostrar uma carteira, o que o intrigou. Ao ver que o objeto poderoso era uma carteira de estudante da Universidade de Brasília, pensou: Ah! quero uma dessa pra mim também, uai. Isso o mobilizou para ingressar na UnB, onde descobriu outras vantagens do ter o tal objeto. Sua escolha pelo cinema foi aleatória, eu tinha consciência dos limites da minha carreira de jogador de futebol na Série C, mas não tinha a menor ideia do que era uma universidade, completa. Inesperadamente, seu trabalho de conclusão de curso, sobre a periférica Ceilândia feito aos trancos e barrancos, com ajuda de uma professora, lhe rendeu o premio de melhor Curta nesse mesmo Festival.  Isso explica, em parte, a sua metodologia de trabalho com uma equipe formada por sujeitos elimináveis, sobreviventes de violência do Estado.


Em Ódio, Segregação, Gozo (Vieira & Romildo; 2012), o sociólogo Luiz E. Soares, define o eliminável como um alvejável da favela que pode, por exemplo,  ser morto por engano, com aprovação do Comandante. Os adjetivos da cor e do vestuário não seriam indiferentes", já no Leblon não há engano. (p.128).


Isso nos remete à da frase de Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes, citada por Vieira ao se referir à necessidade de algo mais em torno da inquietação e da perplexidade neste país que também não é para seguidores de opiniões do senso comum, de certezas, ou antipatizantes (p.21). Com Freud, Ondina Machado entra nessa conversa advertindo que o ser humano que não é para principiante, nem para simpatizantes, só é possível atingir algo do humano com dedicação e tempo, afirma Ondina.


Com Lacan, que ensinou a não recuar diante da Psicose, os psicanalistas brasileiros de orientação lacaniana também dão um lugar para essa questão da segregação. Ficam a convocação da palavra, seus Colóquios, Publicações, Conversações e Sessões de Psicanálise. Assim, tecem uma psicanálise dedicada a algo singular do humano. Enquanto a ONU se ocupa da Lei Universal dos Direitos Humanos, intervindo em países que excedem o nível do suportável. Como ocorre Japão, por exemplo, que perdeu o controla sobre esta questão. Segregam, perseguem e humilham, de modo torturante, seus imigrantes orientais, com aprovação do Comando. Em determinados supermercados, por exemplo, uma música brasileira pode tocar para avisar sobre a presença de brasileiro. Em 1915, Freud já apontava os efeitos disso nas nações civilizadas que recorreram ao ódio, por pouco se conhecerem, se compreenderem.

 

 

A FALSA MEDIDA DO MENTAL1

Antonio Teixeira - Psicanalista membro da EBP/AMP

 

 

Description: sabrina-mix_manc3a9-garrincha1Em 1958 corria a fama de que quando se tratava de Copa do Mundo, o jogador brasileiro era frouxo. Dizia-se que nos faltava fibra, que não tínhamos firmeza para os jogos decisivos, sendo frequentes, da parte dos jogadores, as queixas de dor de ventre na véspera das grandes partidas, assim como sintomas de insônia, ansiedade e nervosismo. A um mal disfarçado racismo, que atribuía essa situação à debilidade de nossa composição étnica, pouco a pouco se substituiria o ensejo por uma observação mais séria, supostamente apoiada, por sua vez, numa psicologia que se pretendia científica por se pautar em avaliações numéricas. Nesse contexto, se inauguraria o primeiro mercado para o tratamento mental de nosso fracasso esportivo, dando ensejo, por assim dizer, a uma saudementalização do escrete canarinho. Surgiria, assim, uma figura até então inusitada na comissão técnica da seleção brasileira: o psicólogo – representado por João Carvalhaes – chamado para diagnosticar e quem sabe remediar a situação, trazendo consigo sua bateria de testes de equilíbrio emocional e aptidão cognitiva.


Embora sejam escassas as passagens em que Rui Castro a ele se refere (elas se limitam a 3 páginas, para ser exato), duas informações a seu respeito merecem nossa atenção. Sabemos, em primeiro lugar, que a avaliação psicológica do jogador Garrincha foi absolutamente deplorável, a começar pelo preenchimento de sua ficha: ele escrevera "atreta" no espaço reservado para indicar o nome de sua profissão. No teste que lhe foi aplicado, Garrincha não obteve mais que 38 pontos num escore de 128; em termos comparativos, ele não estaria habilitado sequer para trabalhar como motorista de ônibus. Sabemos igualmente, em segundo lugar, que um certo Edson Arantes do Nascimento tampouco se qualificaria na avaliação de Carvalhaes, embora tenha se saído melhor do que Garrincha. Fez apenas 68 pontos no mesmo teste, e foi considerado infantil, destituído de agressividade e sem disciplina. Mas eis que a dupla formada por Pelé e Garrincha, ambos considerados inaptos a jogar como titulares pelo avaliador psicológico da seleção brasileira, inauguraria uma das mais grandiosas eras da seleção brasileira: a equipe jamais perderia uma só partida com os dois jogadores em campo, que nos deixaram cenas de jogadas absolutamente marcantes, tão memoráveis, para quem as viu, quanto a contemplação de uma tela de Matisse. O desenrolar dos fatos mostrou quem de fatos eles eram, avaliando assim o avaliador e fazendo com que ele fosse mantido, para a felicidade geral da nação, por longo tempo fora do cenário futebolístico.


Seria prazeroso lembrar-se da figura do avaliador, se ela se mantivesse congelada na imagem derrisória e cômica desse pobre João Carvalhaes. Mas nos preocupa hoje perceber, meio século após esse feliz episódio, que tal figura volta ao panorama do mercado mental e assume formas cada vez mais inquietantes. O avaliador hoje retorna em todos os níveis sobre a cena, trazendo sisudo e triunfante suas réguas e baterias de testes. Não é mais suficiente rir do avaliador, que de funcionário inepto de uma falsa expectativa agora parece exercer uma função condizente com o modo de organização que a sociedade atualmente exibe, na qual se estrutura o mercado da avaliação mental. Cabe-nos antes fazer o diagnóstico da situação da qual ele é o sintoma, para examinar de que modo se pode a ele responder.


É Canguilhem quem nos esclarece que a psicologia, ao se ofertar como uma teoria de avaliação das habilidades no mercado do trabalho, a partir, sobretudo, da revolução industrial, valeu-se de sua constituição, no século XIX, como disciplina do comportamento humano. Em sua composição se solidarizam uma biologia organizada na forma de uma teoria geral das relações entre organismos e meio, apoiada na dissolução da crença criacionista num reino humano distinto, assim como uma ideologia dos valores da sociedade industrial agora voltada para o aspecto instrumental da habilidade humana. O valor dado ao produto da competência técnica aumenta à medida que decresce o antigo valor atribuído à sabedoria. Com o igualitarismo difundido a partir do ideário da revolução francesa, a psicologia se afirma na forma de uma prática da expertise. Sua função é agora determinar objetivamente a capacidade técnica dos indivíduos, uma vez excluídos os valores atribuídos à casta, ao privilégio social, assim como a função antes enaltecida da atividade do pensamento.
Mas sejam quais forem suas motivações ideológicas, o que há de mais criticável na psicologia, assim formulada enquanto pretensa ciência das habilidades e dos comportamentos, diz menos respeito ao problema de sua limitação técnica do que à ausência de uma formulação clara do seu projeto instaurador. Ao aceitar o papel de uma fornecedora de critérios de aptidão, denuncia Canguilhem, a psicologia esquece-se de situar seu comportamento específico com relação às circunstâncias históricas e aos meios sociais nos quais é solicitada a propor seus serviços. Ela quer simplesmente se oferecer como instrumento para o mercado de seleção de trabalho, sem interrogar para quê ou para quem ela está funcionando. E se ela recusa como inútil qualquer questionamento filosófico acerca desse propósito de tomar a habilidade como uma característica a definir os critérios de avaliação, é porque a ideia da utilidade lhe serve de esteio. Sob a condição, é claro, de que essa ideia de utilidade seja extraída, de modo necessariamente inexplícito, da definição instrumental do homem.


Não é supérfluo frisar o caráter "necessariamente inexplícito" dessa definição instrumental do homem, a considerar que tal ausência de explicitação aqui não decorre de uma insuficiência contingente. Trata-se antes, prossegue Canguilhem, de um princípio que não pode, por razões estruturais, ser fornecido explicitamente: esse princípio somente funciona se permanecer ausente de qualquer formulação. Pois é a própria noção instrumental do homem, como meio de utilidade, que se encontra estruturalmente carente de uma finalidade que a justifique: os fins alcançados instrumentalmente se tornam, por sua vez, instrumentos para outra finalidade que os transcendem, sem que se possa definir, no interior desse circuito instrumental, qual seria a finalidade última. É, por conseguinte, necessário, para que o circuito instrumental continue a funcionar, que não se interrogue quanto a sua finalidade; sua exposição colocaria em suspenso o próprio sentido de instrumento em torno do qual gira esse circuito.


Inútil, portanto, perguntar, como o faz Canguilhem, pelo que leva os psicólogos a se ofertarem, no mercado da avaliação mental, como instrumentos de uma ambição de tratar o homem como instrumento. Tal pergunta coloca a perder o próprio sentido da prática de avaliação. Para que a oferta da avaliação continue, é preciso que não se pense nisso. Diríamos mais: o mercado da avaliação mental depende que não se pense, preferencialmente. É próprio da prática da avaliação gerar uma radical demissão do pensamento, visto que o avaliador se encontra normalmente dispensado de interrogar quanto à natureza mesma daquilo cuja avaliação ele oferta no mercado. Cabe a ele somente encontrar o equivalente numérico que lhe possa dar a medida do que se propõe avaliar, pouco lhe importando a razão de ser ou a finalidade do que está sendo avaliado. O que está em questão, na transformação reificante dos homens em instrumento ou coisa útil, é justamente deles fazer algo de comportamento previsível e funcionamento calculável. Nesse sentido, a ideia de se tomar a massa dos indivíduos como um conjunto das coisas instrumentais igualmente requer a suspensão de todo questionamento singular cujo desfecho não admite cálculo estatístico.


Se Lacan, já há muito, havia denunciado a inconsistência de todo projeto que busca tratar o psiquismo nos termos mecânicos de uma causalidade física (sua "Proposta sobre a causalidade psíquica" data de 1946), ele não tardaria tampouco a denunciar a falácia de reificação ou coisificação do sujeito, em sua "Intervention sur le transfert". Todo esforço da psicologia em objetivar o indivíduo é infundado, escreveria ele, em 1951, por desconhecer que o que conta são as determinações dialéticas do sujeito: Dora, diante do seu pai, é visivelmente distinta de Dora, diante da Sra. K, e assim por diante.


Não distante de Lacan, S. Gould por sua vez reconheceria, nessa mesma falácia reificante, a tentação de converter conceitos abstratos, usados para designar faculdades mentais, em entidades autônomas : quando, por exemplo, tomamos a palavra 'inteligência', "esse extraordinariamente complexo e multifacetado conjunto de capacidades humanas", e mediante tal estenograma dela fazemos uma coisa unitária, sentimo-nos autorizados a criar procedimentos standard de uma ciência que virtualmente dita a localização e o substrato físico que devem ser procurados para ela. Posto que o cérebro é o lugar da mentalidade, a inteligência deve ali residir. Temos então o cérebro de Einstein, sobre o qual R. Barthes escreveria um provocante verbete, lembrando que, para a ideologia, o super homem sempre comporta alguma dose de reificação. Órgão antológico que se tornou uma verdadeira peça de museu, o cérebro de Einstein se veria disputado por dois hospitais, como se ali estivesse um aparelho insólito, cujo mecanismo poder-se-ia enfim desmontar. Ao cérebro se pede que pense na relatividade, mas sem se indagar o que significa "pensar em…", como se o cérebro produzisse pensamentos do mesmo modo que o moinho produz a farinha.


Seja como for, não é preciso ser especialista em Economia Política para reconhecer, nesse processo de reificação instrumental que converte sujeitos em produtos substanciais mensuráveis, prontos para serem lançados no mercado, um procedimento organicamente solidário do modo de organização da produção capitalista. É patente, nesse esforço de estabelecer critérios de equivalência formal, o processo que se realiza com os objetos reduzidos à forma de mercadoria. Como bem viu Lukacs, a suposição coisificante da equivalência é o verdadeiro princípio que governa esse modo de produção. Se a prática de avaliação psicológica encontra finalmente ali seu mercado, é porque, com a moderna análise do processo de trabalho, a mecanização racional estende seus direitos à própria alma do trabalhador, visando "facilitar sua integração em sistemas racionais especializados e sua redução em conceitos estatisticamente viáveis".


Mas, embora o princípio inexplícito da avaliação esteja dado na ideia de lançar no mercado o produto homem enquanto valor mensurável de utensílio, é preciso igualmente enfatizar, junto a Canguilhem, que a utilização do homem-utensílio, por ela mesma, não é fato do psicólogo avaliador. Esse mercado é constituído por aqueles que lhe demandam relatórios ou diagnósticos, nos diversos campos em que o avaliador oferta seus serviços. Por esse motivo, prossegue Canguilhem, o avaliador opera, na maior parte das vezes, como um prático profissional cuja ciência é inteiramente inspirada pela pesquisa de leis de adaptação a um meio sócio-técnico – e não a um meio natural – o que sempre confere a suas operações de medida uma significação de expertise. Se quisermos, contudo, efetivamente esclarecer o que vem a ser o meio sócio-técnico sobre o qual hoje se constitui o mercado do mental, não podemos deixar de observar que nossa realidade já se desloca consideravelmente da vertente utilitária descrita por Canguilhem, em que vigorava a definição instrumental do sujeito concebido como valor de uso.


Ao que tudo indica, o sujeito funcional de nossa atual sociedade de consumo, encontra-se determinado por um modo de relação ao gozo que ultrapassa os limites de sua determinação utilitária. Isso se dá na medida em que o discurso do capitalismo não somente reduziu o valor de uso a um simples meio de circulação do capital, como também fez de sua própria finalidade – a circulação do capital na forma de uma contínua produção de mais valia – um movimento sem fim, consagrado a se auto-reproduzir indefinidamente. É a mais-valia, e não o valor de uso, que nesse nível se torna o princípio de organização da economia , conduzindo, assim, à produção inesgotável dos objetos do gozo que por si só excede a toda forma de contenção subjetiva, cuja contrapartida seria a constituição de um sujeito por sua vez determinado por uma relação de obrigatoriedade ao gozo e ao consumo.


Mas seja qual for o valor explicativo da descrição acima, ela ainda deixa sem esclarecimento o próprio princípio dessa imposição de gozo sobre o qual se organiza tal movimento. É provável que um pesquisador, quem sabe?, do início do século XXII, num momento se indague, não sem uma certa perplexidade, como esse fenômeno social foi possível, como foi que, nesse período, uma sociedade pôde estabelecer como modelo homogêneo, à grande massa de seres falantes, essa obrigação de gozo que se colocou a serviço de uma ideologia do consumo. De que maneira – perguntar-se-ia nosso historiador imaginário – terá sido possível socialmente impor o contraditório dever de ser feliz, contraditório do momento em que toda sociedade sempre dependeu, para se constituir, da renúncia de satisfação à qual ela obriga a seus membros? Como pôde acontecer que o supereu de nossa época, no lugar de exigir a abdicação ao gozo, como era o caso no tempo de Freud, tenha assumido a forma do imperativo "goze!", estampado na publicidade de produtos safe sex do início do século XXI? Em que sentido, enfim, se pôde conceber essa paradoxal obrigatoriedade ao gozo, que em nosso tempo se desdobra no não menos paradoxal dever de ser feliz?


Responderíamos, então, ao nosso interlocutor fictício, que por mais contraditória que pareça a articulação, acima indicada, no binômio dever-felicidade, a condição de obrigatoriedade ao gozo não é, na realidade, um fenômeno tão impensável assim. Podemos mesmo reconhecer certo tipo de obrigatoriedade ao gozo, no que tange à satisfação pulsional, no sentido referido por Lacan, em Televisão, de que todos somos, no nível acéfalo da pulsão, senão obrigatoriamente felizes, ao menos inevitavelmente satisfeitos: a pulsão se satisfaz invariavelmente, mesmo quando essa satisfação é percebida como desprazer ou como prazer culpado, ou indevido. Mas, ainda que a satisfação pulsional sempre ocorra, sejam quais forem os desvios que se possam colocar no seu circuito, a dimensão daquilo que própria – ou impropriamente – chamamos de felicidade comporta, por outro lado, um fator de contingência que se distancia dessa necessidade quase mecânica da descarga pulsional.


Essa contingência irredutível que levava Freud a dizer, em "O mal estar na cultura", que "para a felicidade, não há nada preparado, nem no macrocosmo nem no microcosmo", confirma-se filologicamente no fato, observado por J. Lacan, de que em quase todas as línguas a noção de felicidade apresenta-se nos termos de um encontro fortuito. Os lexemas tykhe, augurum, bonheur, Glück, Gelük, happiness, happen estão ali para atestar, na grande pluralidade das línguas, que não existe, para usarmos a linguagem da cibernética, nenhuma programação simbólica que possa organizar, de maneira previsível, a experiência da felicidade humana, assim como não há, no que diz respeito à parceria sexual, nenhum protocolo de condutas que possam conduzir a uma conjugalidade feliz.


Do mesmo modo, portanto, que não se pode delimitar o desejo como objeto de um enunciado no discurso do sujeito, posto que o desejo se coloca como causa no nível de sua própria enunciação, a felicidade não pode tampouco corresponder a um objeto do qual se poderia apropriar discursivamente. Distintamente de um produto visado no plano de sua fabricação, a felicidade, para retomar a feliz formulação extraída de A. Huxley por Sérgio Mattos, seria antes comparável ao carvão coke, no sentido de algo que se obtém como subproduto enquanto se está fazendo outra coisa. Se nos servimos dessa definição, é porque ela tem a vantagem de preservar a alteridade da felicidade com relação ao sujeito, ao mesmo tempo em que lhe oferta, na contingência do encontro, seu lugar como virtualidade indispensável.


É preciso, portanto, retornar ao nível acéfalo da pulsão, a montante, se assim se pode dizer, de todas as coordenadas simbólicas que presidem à constituição do sujeito desejante, para que se possa efetivamente alcançar essa necessidade mecânica da descarga pulsional. É apenas a partir dessa dimensão, por assim dizer, fisicalista do sujeito – dimensão em que o sujeito se reduz a uma fonte de constante tensão e descarga pulsional – que se pode falar numa obrigatoriedade de ser feliz, bem como fazer da felicidade um bem programável. Disso deriva, ao que suspeitamos, a necessidade de se proceder a uma nova espécie de "coisificação" do sujeito, do momento em que somente no nível mecânico das coisas se pode cercar o comportamento absolutamente previsível, ao abrigo do encontro e da contingência.


Não é, aliás, casual que a psiquiatria, que hoje se arvora a ofertar, no mercado do mental, o bem estar psíquico como produto acessível mediante protocolos farmacêuticos e guidelines comportamentais, tenha abandonado a teoria do sentido da qual ela podia se valer, no século passado, em sua vertente fenomenológica, para pensar o indivíduo nos moldes de um aparelho neuronal. Se ela hoje tenta organizar, de forma irrefutável, a convicção de que o psíquico é o cerebral, é porque precisa definir o pensamento como uma função localizável no cérebro e, assim, conceber o mental nos termos de uma necessidade comparável à que se encontra no plano da causalidade física. Tudo se joga na possibilidade de se reduzir o homem ao cérebro, aqui pensado como uma máquina de tratar informações cujas operações seriam, em princípio, programáveis.


Daí se infere por que o corpo vem receber especial atenção na época de imposição da felicidade calculável: queiramos ou não, a corporeidade é a dimensão que melhor se presta a oferecer um suporte para se pensar o sujeito nos termos de um aparelho cujo funcionamento abrigaria uma necessidade previsível. Para Descartes, se os animais nada mais eram do que máquinas que respondiam a estimulações mecânicas advindas do mundo externo, os homens destes se distinguiam por conter a substância incorpórea da alma, enquanto princípio imaterial que governava suas ações. Mas não tardaria muito para que o médico filósofo Julien Offray de La Mettrie publicasse, em 1748 – ou seja, 100 anos exatos após o "Tratado do Homem" de R. Descartes –, a polêmica obra "O homem-máquina", considerada como o primeiro ensaio propriamente moderno de uma antropologia estritamente mecanicista. Contrariamente ao que pensava Descartes, La Mettrie consideraria a hipótese da alma uma idealização supérflua que em nada elucida o funcionamento do comportamento humano. Aos olhos de La Mettrie, os homens em nada se diferenciam dos animais, nem mesmo no que diz respeito a seu modo de agir, que em vários aspectos me mostra mais desprezível do que o comportamento da maioria dos primatas.


Ainda que pela alma se buscasse assegurar um princípio imaterial de exceção a distinguir o homem dos demais seres vivos, a supressão materialista dessa hipótese pelo pensamento científico moderno, longe de idealizar a percepção de nossa realidade corpórea, antes terminaria por produzir o seu aviltamento. O corpo deixa de ser o sacrário que até então encerrava, qual uma relíquia, a substância agalmática da alma, para ser considerado apenas enquanto disponibilidade perecível de satisfação. É por isso que devemos nos referir ao personagem libertino de Sade, e não ao Don Juan de Molière, se quisermos pensar as consequências dessa percepção moderna do corpo. Pois embora Don Juan pareça se aproximar do libertino moderno, ao romper com as normas sociais de retenção do prazer, ele ainda permanece cativo do discurso pré-científico que confere ao corpo um poder narrativo, revestindo-o de imagens metafóricas e virtudes alusivas. Afora isso, por mais que se multipliquem suas oportunidades de gozo, Don Juan ainda depende da perspectiva do encontro que, como sabemos, é intolerável a uma visão fisicalista do sujeito.


Totalmente diverso é o modo de percepção do corpo sadeano, que se dá a ler tal como a ciência o descreve: um dado mecânico, material, desprovido de virtudes narrativas. Só existem a vibração mecânica e a secreção material dos humores no gozo do libertino, para quem o corpo só vale como uma multiplicidade de órgãos, sem unidade interior nem transcendência. Do mesmo modo que um geólogo analisa e esquadrinha a Serra do Curral, para nela definir as melhores possibilidades de extração de minério de ferro, sem se perguntar pelo sentido que a montanha pode ter para um belorizontino, o corpo sadeano será exposto, recortado e inventariado segundo uma combinatória significante que dele visa extrair o máximo de gozo. O corpo nada tem a dizer: ele nada mais é do que uma maquinaria a ser ordenada conforme o programa estabelecido pelo cientista libertino.


Valor sem valor, esse corpo moderno, que Sade antecipa, somente se presta, em nossa contemporaneidade, à expansão quantitativa da função instrumental de gozo a qual nos obriga o dever de ser feliz. A imprensa ocidental que eloquentemente exibe a repressão sexual nos países fundamentalistas, em contraponto com a liberdade sexual que nossa sociedade supostamente conquistou, omite propositalmente que nossa sociedade, desprovida de crença, embora tenha retirado do sexo a imposição moral de sua contenção, nem por isso o desmoralizou. A moral agora se manifesta, conforme enfatiza Alain Badiou, na forma do hedonismo licencioso, no modo do imperativo de gozo que se vê tanto na manipulação desenfreada dos corpos pelas cirurgias plásticas, quanto nas exortações pornográficas que nos impõem uma coerção tão intensa quanto aquela que antigamente nos impedia de gozar.


O que dizer, então, a propósito da posição a ser adotada pela psicanálise, face a essa percepção contemporânea do sujeito referido a seu suporte corporal, reduzido a seu valor de consumo e de gozo? Certamente, uma série interminável de coisas, impossível de listar aqui. Seria talvez mais importante situar, para não nos perdemos num mar de propostas, o que a psicanálise não deve dizer. A psicanálise, em nosso entender, não deve, sobretudo, exortar a civilização a uma retomada do sentido, para além do gozo, através de uma revalorização anacrônica das representações emblemáticas do corpo, como também não deve re-introduzir nada que se assemelhe a um fator equivalente à hipótese da alma como princípio de transcendência da realidade corporal onde se abrigaria a hipótese do sujeito para além do corpo. A procura da felicidade não deve, tampouco, constituir para a psicanálise um guia de conduta, até porque a questão da felicidade, tal como ela hoje se apresenta, não se refere a nada, a não ser, como diz V. Safatle, a uma série de imagens impostas pelo sistema de reprodução de formas de vida sob a égide do capitalismo. Seria então o caso de dizer, segundo sugere V. Safatle, que a função da psicanálise consiste em reconduzir a subjetivação corporal do sexo e do gozo a um regime de indiferença com relação às normas de felicidade da cultura? Talvez sim, por que não? Pois é somente nos mantendo indiferentes em relação ao sexo e ao corpo, no sentido não de desconsiderá-los, mas de não nos valermos de nenhum discurso normativo sobre eles, que poderemos lançar, finalmente, a possibilidade de agenciar formas singulares que, como tais, não servirão de modelo nem de medida à realização de ninguém.

 

texto publicado no blog da subversos, disponível em http://blogdasubversos.wordpress.com/2014/07/15/a-falsa-medida-do-mental/

 


BIBLIOGRAFIA
BADIOU, A. (2005) Le siècle. Paris : Seuil.
BARTHES, R. (1957). Mythologies. Paris: Seuil.
CANGUILHEM, G. (1966) Qu'est-ce que la Psychologie ?. Cahiers pour l'Analyse 1/2, 77-86.
CASTRO, R. (1996) A estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. S.P.: Companhia das Letras.
FOUCAULT, M. (1977). "L'Œil du pouvoir", in BENTHAM, J. Le panoptique, Paris, P. Belfond.
FREUD, S. (1974) O mal-estar na civilização. In __, Obras completas, Standard, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.
GOULD, S. (1981). The mismeasure of man. N.Y.: W. Norton & Co.
LA METTRIE, J. (1981) L'Homme-machine. Paris: Denoel.
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LUKÁCS, G. (1971) History and Class Consciousness. London: Merlin Press Ltd.
TEIXEIRA, A (Relator), "O dever de ser feliz", in FUENTES, M. & VERAS, M. (2008). Felicidade e sintoma: ensaios para uma psicanálise no século XXI. São Paulo: Corrupio.

 

 

STRANGE FRUIT

Bia Dias


 

"Strange Fruit" é uma poética canção de protesto contra o racismo. Na voz de Billie Holiday, a canção adquiriu imensa força expressiva, afetando profundamente todos que a ouviam.

 


"Strange Fruit", livro escrito pelo jornalista David Margolick, abre uma fresta para a realidade dos Estados Unidos nos anos 30 e 40: um país dividido entre negros e brancos. O livro - uma biografia da música - gira ao redor da estrondosa canção, cuja versão mais famosa é a de Billie Holiday que, com imensa ousadia, levou o tema do linchamento para dentro dos cafés e boates.


Composta como um poema, foi escrita por Abel Meeropol (um professor judeu de colégio do Bronx), sobre o linchamento de dois homens negros. Ele a publicou sob o pseudônimo de Lewis Allan e é uma música que confronta os Estados Unidos com seus fantasmas mais cruéis.


A menção aos linchamentos é contundente e a música é um documento histórico. O crítico de jazz Leonard Feather afirma que foi "o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo".

A própria Billie Holiday, em sua autobiografia, registrou o impacto ao relatar que, quando terminou de cantar a música pela primeira vez, se seguiu um silêncio total. Então, diz ela, "uma pessoa começou a aplaudir nervosamente e, de repente, todo mundo estava aplaudindo".


"Fruta estranha" a que se referem título e letra é o corpo dos negros linchados e enforcados em alguma árvore, sangrando e balançando ao vento. Na tradução da letra, o verso final se apresenta assim: "Eis uma estranha e amarga fruta", o que parece nos ensinar sobre a idéia de segregação como uma via de eliminar o insuportável.


Silenciar o negro é uma tentativa desesperada de aniquilação de algo que evoca a diferença. Na "Proposição de 1967", Lacan pontua que a destituição do sujeito é cruel, pois ela o reduz ao silêncio. É o que se observa: o segregado não se pronuncia, ele se torna vítima da máquina da discriminação. Máquina que o induz a não dizer de si mas, a ser dito pelo Outro.


A voz de Billie Holiday é um grito, que ressoa e produz restos ruidosos. O negro não fala de sua miséria, ele a vive na pele, na dificuldade de se assumir, na recusa perante o real do corpo. É vítima da segregação racial instalada pela abjeção de um "coletivo" diante de um real que não suporta encarar.


Aqui se dá a entrada da psicanálise como função ética de abordar a vida naquilo que ela possui de complexo e desconcertante e fazer barra aos discursos de ódio que escolhem uma verdade totalitária e sem brechas para o sujeito. Função que consiste numa lenta ruptura, sempre renovada, contra tudo aquilo que embarca e se fixa num discurso universal de valores.


A psicanálise surge nessa cena, como portadora de um simbólico, que faz borda ao pior, sem negar-lhe porém a existência. E, como discurso que abriga a diferença e o dissenso, pode nos salvar de nos tornarmos bestas feras aniquiladoras de qualquer traço de alteridade.


Ainda hoje ficamos perplexos diante da "estranha e amarga fruta". A tentativa de domesticação da diferença pela violência nos arremessa ao ponto abissal e é um chamado à responsabilidade ética em escutar essa monstruosidade que vive à espreita, e com ela aprender.


Billie Holiday ao cantar " Strange Fruit", nos ensina que a dimensão imaginária pode aparecer como algo sem saída, excesso que mata. No discurso racista e higienista o que aparece é uma posição no mundo hermética ao outro- tentativa de controle de um resto não incorporável, disso que não entra na imagem especular e é causa de extrema angústia. Esse resto é um objeto que escapa à imagem: nem branco, nem negro.
O que os discursos de segregação trazem em seu bojo é o medo de se reconhecer como um outro de si, um estranho de si mesmo. O negro encarna, então, o lugar insuportável de portador de uma cor, que vem denunciar o traumático do corpo, a dimensão do outro.

Como na poesia de Rainer Maria Rilke em seu " The Notebooks of Malte Laurids Brigge": 


"Há uma criatura que é perfeitamente inofensiva; quando ela passa diante de seus olhos, você dificilmente a nota e imediatamente a esquece de novo. Mas, tão logo ela, de alguma maneira, invisivelmente, penetra seus ouvidos, ela começa a se desenvolver, ela choca, e são conhecidos casos em que ela penetrou no cérebro e floresceu devastadoramente, como os pneumococci nos cães nos conseguem entrar através do nariz.Essa criatura é o seu próximo."

 

Colaboraram com a coluna Extimid@des Maria Bernardette Pitteri, Luiz Felipe Monteir,  Niraldo Santos e Bia Dias