Extimid@des 10

 

Editorial

RESSONÂNCIAS DE PARIS NOS TRÓPICOS

Marcia Szajnbok

 

Em Paris, falou-se do Real. Recorto dois pontos em que o tema do Congresso da AMP fez intersecção com o campo das Extimid@des: a conferência de Bernard-Henri Levy, intitulada O Engajamento de um Filósofo, e a apresentação musical Impromptu!, dirigida pelo maestro Diego Masson. BHL falou no primeiro dia. A música foi o penúltimo evento do congresso. Duas margens.


O Real, nos disse BHL, irrompe. E quando isso acontece, o sujeito submerge, o sentido submerge, franqueia-se um ponto de não retorno. Nada mais nefasto do que tentar conferir sentido ao que não tem, tentar explicar o sofrimento e o horror como se fossem fenômenos da natureza que momentaneamente perturbam um mundo harmônico. Essa posição conduziu ao fascismo no século XX, e seus ecos se ouvem ainda hoje na produção de toda uma clínica. O sem sentido, é preciso que nos deixemos tocar por ele. Numa linda metáfora, BHL fala da arte: na experiência estética, não é o expectador que olha o quadro, mas o inverso, é o quadro que interpela o seujeito, é o real da arte que o toca.


Essa experiência pudemos ter na apresentação que nos fez o maestro Masson. Numa aula ilustrada de história da música, ouvimos desde os clássicos Mozart e Beethoven até os dodecafônicos e atonais Schoenberg e Boulez. A obra escolhida para fechar a apresentação, “Um Sobrevivente de Varsóvia” para narrador, coro e orquestra Op.46 de Schoemberg, estabeleceu um diálogo com a fala de BHL: Schönberg, o judeu vienense que se convertera ao luteranismo no final do século XIX, e que retorna ao judaísmo em 1933, diante da ascenção nazista, produz essa obra, pela qual é preciso de fato deixar-se tocar: pelo sem sentido da guerra, pela experiência instigante da música dodecafônica, pelas imagens da ilustração de Aniello Eco.
Neste mês, Extimid@des faz ressoar essas falas, essas dissonnâncias e imagens com fragmentos de brasilidade. Liege Uchôa comenta dois textos veiculados pela mídia nacional, muito ilustrativos do modo nefasto pelo qual o cientificismo e o capitalismo tentam dar sentido ao que não tem, levando sempre ao pior. Num contraponto, o canal de vídeos do New York Times divulgou, em março último, um vídeo que ilustra como pode ser criativo dar voz ao sujeito, ao sujeito louco, ao sujeito posto na instituição psiquiátrica. Francisco Paes Barreto nos traz sua pontuação sobre o tema. Bianca Dias entrevistou o cineasta Geraldo Motta, diretor do filme O Senhor do Labirinto (2010), que recebeu o Troféu Redentor na categoria Melhor Longa Metragem de Ficção (Juri Popular) no FestRio de 2010. Baseado no livro homônimo de Luciana Hidalgo, o filme nos conta um pouco sobre Arthur Bispo do Rosário e sua arte.

 
O Real não tem língua, não tem sotaque, não tem nacionalidade. Podemos partir do dodecafonismo europeu e chegar ao samba carioca, passando pela loucura e pela arte. Algo aí há de tocar o leitor. A cada um, na sua particularidade. O que segue é um convite.


 

GERALDO MOTTA, UM DIRETOR NO LABIRINTO DA LOUCURA

entrevista de Bianca Dias para DR

 

O filme "O senhor do labirinto", de Geraldo Motta, é uma linda homenagem a Arthur Bispo do Rosário, um homem que resistiu à química e ao choque elétrico, reestruturando o mundo a partir da arte. 


Nordestino, pobre, negro, descendente direto de escravos, Bispo do Rosário serviu na Marinha, foi lavador de bondes e borracheiro e, por fim, trabalhou na casa de um advogado com tarefas domésticas. Aos 27 anos, em dezembro de 1938, Bispo teve uma alucinação e disse ter visto Cristo surgir no quintal de casa acompanhado de sete anjos azuis. Foi internado e diagnosticado como esquizofrênico-paranóico. Viveu cerca de 50 anos na Colônia Juliano Moreira, onde produziu sua obra mágica, fascinante e monumental. Trancado num quarto-forte da Colônia, um hospício carioca, Arthur Bispo do Rosario criou, ao longo de meia década, um mundo novo. Miniaturas, mantos e estandartes brotaram de suas mãos, ganharam cor, deram novo sentido e outra estética à sucata do asilo psiquiátrico. Para ele, tratava-se de uma obra ditada por anjos, para ser apresentada a Deus no Juízo Final. Além de mantos, Bispo criou compulsivamente assemblages, esculturas e instalações, e é a prova de que o homem pode criar, não importam suas dificuldades. Usando tudo que encontrava - vassouras, canecas, colheres, galochas, chinelos, lençóis, embalagens - reconstruía seu mundo desenhando, bordando, desfiando, costurando. No caso de Bispo, o delírio foi, durante algum tempo, a saída encontrada. E, assim, o artista acabou lançando mão de outra solução: a construção de objetos, sua obra radical em singularidade. 


O filme de Geraldo conduz o espectador por um labirinto potente e mostra a relação íntima entre loucura e criação artística e, a partir da vida e obra de Bispo do Rosario, nos devolve um pouco da beleza de uma cosmologia que reconstitui questões importantes naquilo que é possível aprender com a psicose e com os artistas. 


DR:  Como surgiu a idéia de fazer um filme sobre Bispo?

 
Como quase tudo na minha vida, a ideia de fazer um filme de ficção baseado na trajetória de Arthur Bispo do Rosario ocorreu absolutamente por acaso. Depois de uma sessão para convidados de um documentário meu sobre o arquiteto e urbanista Lucio Costa, intitulado "O Risco", Luciana Hidalgo me indagou se eu gostaria de ler a biografia de Arthur Bispo do Rosario, que ela escrevera, para que eu avaliasse se tinha potencial para vir a ser adaptada para o cinema. Eu já conhecia a obra do Bispo, mas a leitura do livro da Luciana me colocou diante da trajetória uma figura humana sem igual, que se viu diante de enormes desafios para, ao seu modo, realizar a tarefa que, ao meu ver, caracteriza a nossa tarefa enquanto seres humanos: inventar-se enquanto sujeito no mundo, e conferir-lhe sentido. Ao perceber que o cerne da história de Bispo era essa, concluí estar diante de uma história universal, que tinha tudo para dar um belo filme.


DR: No filme, a figura do carcereiro acolhe Bispo em seu delírio, possibilitando que ele pudesse falar e operar a partir disso. Em sua pesquisa, você encontrou registros de pessoas que fizeram essa função para ele?
Como já disse, a base de tudo foi o livro da Luciana, "Arthur Bispo do Rosario - O Senhor do Labirinto". Óbvio que recorri a outras fontes, a mais importante delas, sem sombras de dúvidas, o filme e as intermináveis conversas com Hugo Denizart, que foi quem trouxe para a luz do mundo a figura e a obra de Arthur Bispo do Rosario. Quando estava em meio à realização de um trabalho na Colônia Juliano Moreira, ele teve a oportunidade de conhecer o Bispo e sua obra, revelando-os depois para o mundo. Em síntese, ele foi a primeira pessoa a reconhecer o Bispo e sua a obra. Em certa medida, foi ele que fez a ponte do Bispo e de sua obra com o mundo, como o nosso carcereiro, interpretado pelo Irandhir Santos. Mas o que importa salientar aqui é que a ideia do desenvolvimento deste personagem foi da Luciana, que escreveu o roteiro comigo. Ela teve a ideia de criar um personagem que estabelecesse, de forma poética, a aproximação e a identificação dos espectadores com a obra do Bispo. Cabe dizer, portanto, que por mais que tenham existido uma ou outra pessoa que tenha travado uma relação de adimiração e afetividade com o Bispo, que o personagem do Irandhir foi forjado pela Luciana, e depois burilado por nós dois. Mérito dela.


DR: Qual foi seu material de pesquisa? 


Meu material de pesquisa foi basicamente o livro da Luciana e o filme do Hugo, cujo título é: "O Prisioneiro da Passagem", que vale dizer é uma relíquia, com depoimentos e falas do Bispo que foram transpostas quase que na sua totalidade para o nosso filme. Também não posso deixar de citar as visitas feitas à Colônia Juliano Moreira, a conversa com ex-internos, as visitas a manicômios e presídios etc. Mas talvez o material mais importante tenham sido as conversas com Hugo Denizart, por meio das quais eu compreendi a diferença entre a construção de uma singularidade e a construção de uma individualidade. Foi quando eu concluí que tanto eu quanto ele havíamos nos interessado pela obra e trajetória de Bispo pelo fascínio que elas exerciam em nós, por serem a expressão urgente da resistência e da invenção de si, ou seja, de uma singularidade.


DR: Como foi seu processo como diretor de um filme que trata de uma questão tão potente e delicada? Quais foram as questões que puderam se delinear para você como sujeito?


Como diretor, cabe dizer que tive a contribuição da Gisella Bezerra de Mello como co-diretora, e que, orientados pelo roteiro, buscamos enfatizar o discurso de Bispo ao longo do filme. Suas palavras tanto as faladas quanto aquelas escritas na sua obra deveriam ser tratadas por nós como uma trama a serviço do processo de subjetivação daquele sujeito. Considerado nestes termos, seus delírios deveriam ser tratados como expressão de sua mais genuína e profunda verdade. Verdade esta a ser compartilhada com os espectadores para que estes, junto conosco e com o próprio Bispo pudessem desvelar a polissemia de sentidos guardada em sua obra. Tudo isso sem esquecer de enfatizar a luta dolorosa que este homem teve que travar contra uma instituição que, em última instância, tinha como propósito o aniquilamento da alma de todos aqueles que ali habitavam. A obra de Arthur Bispo do Rosario está, para mim, a serviço da resistência a esta máquina de aniquilar almas. Em meio e contra todas as estratégias de uniformização Bispo faz uma obra que o reinscreve no mundo, no seu mundo, um mundo onde ele é quem dita as regras. Uma obra que é o veículo de invenção de si; de subjetivação. Por meio dela ele afirma a sua singularidade e recusa deixar aniquilar sua alma. Para concluir, gostaria de deixar claro que a minha aproximação da vida de Arthur Bispo do Rosario e de sua obra deixou claro para mim que um sintoma não se reduz à chave de um enigma. Ele aponta para uma verdade muito mais complexa, a qual quisemos dar expressão por meio do nosso filme.

 

CIENTIFICISMO + CONSUMO = A (IN)FELICIDADE AO ALCANCE DE TODOS

Liège Uchôa A. de Araújo

Membro da EBP/AMP

 

Duas matérias veiculadas na mídia – uma na Folha de São Paulo, de 27 de fevereiro de 2014 e a outra, em 25 de fevereiro do mesmo ano, no blog O Meu Bem Estar - chamam atenção por trazerem uma dimensão comum  nos dias de hoje: o comando da ciência no cotidiano da vida, onde as estatísticas vêm indicar aquilo que é bom para trazer a felicidade e o bem-estar das pessoas.


O levantamento feito pela consultoria IMS Health, a pedido da Folha, aponta um aumento de 42% no consumo de “calmantes” no Brasil  nos últimos cinco anos. A outra matéria comprova, a partir de um estudo em ratos, que relações sexuais aumentam a inteligência.


São anúncios que sinalizam a presença dos dois discursos prevalentes da modernidade: o discurso da ciência e o discurso do capitalismo. Miller nos diz, quando da apresentação do tema para o IX Congresso da AMP, em 2014 que capitalismo mais ciência se combinaram para fazer desaparecer a natureza e o que resta do desvanecimento da natureza é o que chamamos de real, um resto, por estrutura, desordenado.
No capitalismo, o monopólio da verdade passa a ser conferido à ciência por meio de suas descobertas e produções. A ciência, na atualidade, fica reduzida ao objetivo de encontrar respostas para driblar a insatisfação do sujeito. E, assim, o que não funciona,  o que implica em perdas, precisa ser descartado e colocado cada vez mais à deriva, à margem.Trata-se agora de uma conclamação ao consumo, a um universal que produz uma mesma verdade para todos.


Isso faz com que a singularidade de cada um seja deixada de lado em um processo de homogeneização, tornando-se o sujeito um consumidor pautado apenas por um excesso.


Sendo assim, o excesso de medicação apontado no levantamento da Folha, seria mais uma resposta das pessoas aos apelos de consumo, próprio do discurso capitalista, do que falta de controle das instituições ou falta de médicos para manejar melhor o produto. Boas doses de relações sexuais prescritas para melhorar a inteligência, deixa transparecer uma época onde tudo se “mede” em função do êxito a ser alcançado.
Frente a essa realidade segregativa, a potência da psicanálise está em sua ruptura com os discursos universais, inventando um Outro na medida de cada um. Nos dias de hoje, ela precisa haver-se com o fato de que as descobertas da ciência e as invenções do mercado tornaram-se um modo de fazer calar o sintoma, como o uso excessivo de medicação, ou as promessas de soluções fáceis e rápidas dos problemas. A operação analítica, com indica Goldenberg, tem o desafio de passar da compulsão à invenção singular da maneira de gozar de cada um.


 

As matérias podem ser lidas em:


http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2014/02/1418499-venda-de-calmantes-sobe-42-no-brasil-nos-ultimos-cinco-anos.shtml 


http://omeubemestar.com/2014/02/25/estudo-comprova-que-sexo-aumenta-a-inteligencia-20375

 

SER MALUCO É FÁCIL, DIFÍCIL É SER EU

Francisco Paes Barreto

AME. Membro da EBP/AMP

 

Uma emoção diferente: ver o Brasil ser destacado num grande órgão da imprensa mundial por algo que não esteja ligado à impunidade, à corrupção, à violência, à destruição do meio ambiente. O que o vídeo mostra não deve, porém, ser confundido com procedimento terapêutico, ou socioterápico, ou coisa que o valha. Trata-se de algo distinto e de muito maior alcance: a inclusão do louco no cenário cultural. O louco como parte da cidade. Como protagonista da festa.


É pouco? Talvez. Dura como dura o carnaval. Mas, marca. Marca a diferença. Diferença que é trazida pelo louco, mas que poderia ser trazida por uma mulher, por um negro, por um homossexual, por um judeu... Acredito que seja esta a razão pela qual o vídeo recebeu o merecido destaque. O Brasil (e o mundo) precisam (e muito) de bloco carnavalesco como este. 

 

http://www.nytimes.com/video/world/americas/100000002745523/at-rios-carnival-samba-is-psychiatry.html?emc=edit_tnt_20140303&nlid=67084594&tntemail0=y