Extimid@des 09

 

Editorial

CINQUENTA ANOS DO GOLPE DO DIA DA MENTIRA

Marcia Szajnbok

 

Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e  tradições. (Editorial do jornal O Globo, 02 de março de 1964)

 

Se fosse possível ter previsto, naquele 2 de março de cinquenta anos atrás, tudo o que se seguiria no país por duas décadas, a declaração poderia bem ilustrar o quanto a ironia, o chiste, tem valor de expressão social do sujeito.  O golpe militar se deu em 1º. de abril, e é provável que alguém tenha se dado conta de que haveria aí motivo de riso, pelo que a data oficial foi antecipada para 31 de março. A ameaça comunista, o risco iminente de se transformar o Brasil em Cuba, não passou de uma farsa. Mentiras no dia da mentira.


Depois de cinquenta anos, nada a comemorar, muito a testemunhar.  Por isso, neste mês de abril, Extimid@des dá voz a analistas e analisandos que, por diferentes razões, tiveram seus caminhos cruzados pela ditadura militar brasileira. Maria Ester Cristelli Drumond, em entrevista exclusivamente concedida a D.R., traz um resumo de seu percurso, da militância de resistência no Brasil à prática da psicanálise na França. Jorge Pimenta faz uma reflexão sobre os efeitos dos discursos e das práticas da ditadura sobre a clínica – sobre a vida – no Brasil. Iordan Gurgel comenta o filme “A memória que me contam”, de Lucia Murat, cujo depoimento à Comissão da Verdade está disponível no YouTube, e que gentilmente respondeu a algumas questões formulada por Bianca Dias para a D.R. E, finalmente, Maria Bernardette Pitteri faz pontuações preciosas sobre o texto “Oscuro goce del Estado terrorista” de Oswaldo Delgado, que faz conversar Lacan e Marx.
Sabendo que a verdade não se pode dizer toda, apostamos que a singularidade de cada uma dessas falas contribua para barrar o gozo, sempre mortífero, que a mentira engendra.


O editorial do jornal O Globo pode ser lido na íntegra em: http://acertodecontas.blog.br/politica/editorial-do-jornal-o-globo-de-2-de-abril-de-1964-celebrando-o-golpe-militar/

 

Entrevista com Maria Ester Cristelli Drumond Maillard

 

Maria Ester Cristelli Drumond é psicanalista, brasileira radicada na França. Foi militante da Ação Popular (AP) desde 1964. Seu marido, João Batista Franco Drumond, foi morto pela ditadura militar em 1976.

 

D.R. Vc poderia contar um pouco sua vida ? De onde veio, como era sua vida no Brasil ?
Sou mineira de nascimento e nordestina de coração. Contar a vida não se faz, sem inventar histórias. Posso lhe dizer que na minha história familiar chego muito perto dos mitos indigenistas. Um deles é o casamento dos meus pais, no qual encontramos a bela mulher nativa, amada pelo homem estrangeiro.


Posso mencionar também a religiosidade inculcada na minha mãe, preparando-a para esse casamento.  Ela tornou-se « filha de Maria » e deu a todas as suas seis filhas, o nome de Maria …


Apesar  da miséria da mãe pobre, de classe desfavorecida, minha mãe desejou um marido e filhos. Apesar da situação financeira catastrófica, minha mãe  teve dez filhos em quinze anos. Num consentimento à fé, ela encontrou os meios para suportar, voluntariamente e numa submissão quase mística, as dificuldades enormes na realização deste desejo. É o que se chama milagre.


Na época não existia, em nosso meio, mulheres que escolhiam o celibato : havia sim,  as solteironas, as titias, as « mulheres de trinta ». Era um contrasenso querer evocar o celibato como uma escolha, como o que desejei. Optei pelos estudos, mesmo perdendo o amor do namorado, não sem sofrer.


Moça pobre, não tive acesso aos estudos de filosofia, precisava trabalhar. Fiz serviço social – uma prática visando emancipar as classes populares, diziam as assistentes sociais - muitas delas acabaram na prisão ou perseguidas politicamente.


Professora nomeada em Minas Gerais,  comecei uma atividade no campo  social, participando  da alfabetização de adultos, atividade de fim de semana em favelas, e também de educaçao sanitária e social no Hospital das Clínicas em Belo Horizonte.  Ao mesmo tempo, encontro no movimento estudantil, o Centro Popular de Cultura - CPC. O importante é que as obras artísticas promovidas pelo CPC passaram a iluminar minhas escolhas.


O resultado foi uma subversão. Subversão que surge principalmente na leitura da precariedade, da miséria e também da feminilidade. Subversão que veio constituir, sem retorno, a seiva da minha vida. Subversão ? Glauber Rocha diz : « nossa originalidade é nossa fome ». Foi no fim da minha adolescência, que este encontro com a arte e com os movimentos litérarios e artisticos brasileiros, transformou minha vida. O Golpe de Estado se deu em plena efervecência destas atividades e conquistas no plano pessoal.


A escolha forçada de resistência contra a ditadura constituiu então, para mim, a ùnica via do meu desejo. A la fin des études, traquée (em francês, no original) pela repressão, o que mais aparece são as dúvidas, os medos, e a livre de chair (em francês, no original) paga em consequência dessas escolhas - a ponto de ocultá-las. Mas podemos ver que, quando o espaço de liberdade é muito restrito, escolher é um exercicio surpreendente de liberdade. O encontro com João foi único ; ele chegou até a me convencer a casar-me com ele.


Falar da infância é entrar nas profundezas do gosto; do inconsciente, é boa parte de uma análise.

 

D.R.  Vc poderia nos contar um pouco de sua trajetória no Brasil e como você veio parar na França ?


Vim para a França três meses após a morte do João. Tentei soluções para ficar no Brasil com as minhas filhas. O exílio não foi, propriamente falando, um período de exílio político; tornou-se a única saída para eu poder recriar um espaço de vida própria, perdida com a morte do João. Para não viver dependente dos outros, vim pra cá, onde não pude parar de trabalhar, nem um minuto. A força da juventude ajuda. Gosto de dançar também. Apesar de tudo, o trabalho para sustentar a familia foi esmagador, durante anos que passaram rapidamente.


E trago comigo uma dor assim pungente; esta dor que os poetas cantam, mas que não sai no jornal.  E vivo tudo ao mesmo tempo, ao contrário dos que pregam um tempo para cada coisa.


Quando decidi vir para a França, sentia-me como aquela que tudo perdeu, restando-me com as filhas, a luta pela subsistência. Acreditava que não tínhamos mais nada a perder ? Fico no país de exílio, onde esta minha escolha parece mais dificil de desvendar do que as outras da minha vida. Brinco que sou uma expatriada que esqueceu o português e não aprendeu o francês. Para quem gosta de escrever é uma nova precariedade.


D.R.  Como conheceu a psicanálise ? Quando você decidiu ser psicanalista ? 


Como responder numa entrevista estas duas perguntas ?


Conheci a psicanálise como terapêutica e trabalhando num Centro Médico-Psicológico, encontrei ao mesmo tempo o Projeto de Lacan, feito para a fundaçao da Seção Clínica de Paris VIII, o Lacan da Dissolution de EFP e Jacques-Alain Miller. Em seguida, uma longa  análise e vida. orientada para o estudo e prática analítica. Seminários de Lacan,  leituras, cartéis, cours de Jacques-Alain Miller, etc. Fiz a passe duas vezes.


Falando como mineira, creio que minha análise durou até acabar.


Responder à segunda pergunta não seria muito diferente de um testemunho como o exigido no passe.  No meu caso, falar da minha análise é impossivel, sem passar pelo escrito. Escrever tornou-se um ato. Escrevo minha  vida, minha análise, outras histórias.  e assim, esboço o desejo do analista. Meu relato exige que eu passe pela forma litéraria, pela ficçao e também pela letra.


D.R. Como você vê tudo o que se passou durante a sua vida após ter feito sua própria análise, mudou o modo de pensar os efeitos da ditadura ?


Transformo esta pergunta :


Tudo que posso dizer do que vivi e do que passei sob a ditadura é um produto da minha análise. A análise me deu condiçoes  (entre todas as outras que uma análise traz para aquele que se torna psicanalista)  de escrever minha história e responder  à perguntas como : porque eu entrei numa luta aberta contra a ditadura com o risco da minha própria vida ?


O que nos importaria aqui, penso, seria tocar o que pode interessar diretamente à psicanálise no singular, da minha vida sob a ditadura. Temos os porquês da luta política, a forma que eu vivi a opressão e a resistência. O encontro com a psicanálise e a minha análise pessoal, ocorreram em função de minhas buscas.

 

 

 

D.R.  Você poderia nos contar o que fez trauma para você ?


Vou pegar a pergunta em relaçao com a ditadura, senão retornamos às perguntas 3 e 4.


Podemos falar de trauma naquilo que de uma vida persiste, fica como impossível de contar, dizer, escrever. E não falamos de trauma da vida de outra maneira, nao é ?


Posso dizer, no entanto, como foi traumatizante  a época da ditadura. A tortura - que é um crime de lesa majestade - faz parte desta época. É um crime imprescritível,  porque nega os princípios fundamentais do ser humano. À tortura e ao assassinato como práticas do Regime Militar, acrescenta-se que foram praticas que,  ao mesmo tempo, eram  institucionalizadas  e clandestinas. Para combatê-las era preciso provas. Quem não tinha provas não podia falar, nem admitir…  que havia tortura. A falta de provas era argumento de inexistência de tortura e de morte. Os mortos se transformam em desaparecidos, os caixões vem lacrados com a proibiçao de abrir : era a condiçao para ter o direito de enterrar o morto. Um pai fez desenterrar o filho.


Para mim, a morte do meu marido João.  sob tortura, constituiu um dos traumas da minha vida. Eu era foragida. A noção de trauma se torna aqui mais abrangente. 

 


 

Mas penso que minha resistência contra a ditadura não constituiu, nela mesma, um trauma para mim. Para minhas filhas sim, e foi o que mais me atingiu.


A clandestinidade foi uma escolha forçada. João foi condenado a mais de doze anos de prisão, com processos em consequência de participação ativa, no Movimento Estudantil e militância na Açao Popular. Não queríamos sair do Brasil.

 

Estes processos começaram em 1966, data do nosso casamento. Partimos para o Nordeste no dia do nosso casamento.


Ele foi condenado à revelia em 1969, data de nascimento da nossa segunda filha, e posteriormente em 1970.
A vida clandestina constitui, paradoxalmente, uma última tentativa de manter um laço social na situação de foragida.  A vida na clandestinidade  é traumatisante, não só pela perseguição política e suas duras consequências, mas também na medida em que traz  uma modificação brusca, accompanhada de desordem no simbólico, no imaginário e no real da vida do sujeito. Se acrescentarmos aí um exílio sem retorno, podemos ver como é complexo para o sujeito se situar. Do ponto de vista psicanalítico muitos conceitos lacanianos me ajudam explorar tal situação.


As identidades falsas, a « perda » dos meus papéis de identidade, dos meus diplomas, etc.,  atingem todos os setores do laço social chegando até aos mais intimos, os laços com a minha história, com meu marido,com minhas filhas,com meu corpo, com meus livros.


Isto provoca na vida uma decalage da cena e do discurso que carreguei até o exílio.


E assim, no interior  da vida clandestina mesma, aparece uma exigência de luta para criar uma  verdade própria, a outra cena.


Quando o João morreu na prisão (dezembro 1976) nossas filhas não sabiam o nome dele e nem o sobrenome delas: Rosa com 8  anos e meio, Silvia com 7 anos.


A lei de anistia de 1979 anistiou os torturadores, considerando a tortura como « crime conexo » à outros deste período. Tornou-se assim difícil tratar juridicamente este crime de lesa majestade, tratado ainda hoje, no âmbito civil. Inicialmente por Grupos como « Tortura nunca mais »  e atualmente pelas importantes Comissões de Anistia  e da Verdade, ligadas ao Ministério da Justiça.


Antes de sair do Brasil, em princípios de 1977, contatei um advogado a fim de apurar as condições da morte do João. Eram pouquíssimos os advogados nesta época que  aceitavam uma causa destas, talvez o único. Ele faleceu jovem e, em 1981, outro advogado aceitou levar o processo adiante. Em 1996 obteve uma vitória na justiça, comprovando que a morte do João ocorrera nas dependências do DOI-CODI em SP, sob tortura.  Mas este processo segue arrastado em apelos e sobrestamentos, e apesar dos julgamentos nos quais o Juiz ordena explicitamente que seja cumprida a sentença, (último em 20 de agosto 2013) ainda não foi legitimado.
A versão oficial da morte do João por atropelamento constava até agora em seu atestado de óbito.


Vejam vocês  que este documento legal continha mentira sobre sua morte. Trinta e oito anos foram necessários para que, em fevereiro passado, 2014, com um novo advogado, obtivéssemos que um autêntico atestado de óbito fosse lavrado, onde a verdade foi restabelecida. Foi o primeiro caso em que uma família (eu e minhas filhas) pleiteou tal causa perante o Poder Judiciário. Levou dois anos mais porque o Ministério Público fez apelo da decisão.


Essa vitória traz consequências.  Eu podia contar a minha história, mas a minha palavra não tinha respaldo legal. No exílio, minha « verdade »  fica ainda mais vaga, pois minha história é desconhecida.


Agora poderei registrar, no atestado do meu casamento com o João, o seu atestado de óbito,  em seguida regularizar meu nome na França e no Brasil, segundo as exigências de cada país. As implicações, as complicações, os procedimentos necessários, são muito longos para que eu os descreva aqui. Mas é indispensavel para um retorno completo à vida legal mais simples.

 

Psicanálise, ditadura militar, as lições aprendidas e os sintomas que ficaram

Jorge Pimenta

 

Cidadãos “... mais um esforço se quereis ser republicanos!” – escrevia e bradava o marquês de Sade em seu manifesto que denunciava a velha ordem monárquica conclamando a liberdade, mesmo se para tal se servisse de uma plataforma libertina.


Ainda que o gozo sádico não fizesse parte de sua vida, pois como nos ensinou Lacan, o tal libertino não passava de um masoquista. Já no Brasil o gozo sádico do pós 64 passou a ser política de Estado com uso da tortura, as perseguições políticas, a morte e o desaparecimento de pessoas que ousavam ampliar o espaço de convívio social e democrático plural. Republicano era o programa reformista do governo Goulart, presidente eleito pelo voto universal do povo brasileiro que foi deposto por um golpe civil-militar.


No dia primeiro de abril de 1964 o país não acordou do pesadelo que se iniciava e uma negra noite de vinte anos de duração cobriu a nação deixando um cheiro cinzento sobre muitos. Hoje 50 anos depois e a apenas 30 anos de incipiente e frágil democracia representativa, reconstruímos a res publica...


Para aqueles que viveram em sua própria carne experiências pessoais que implicaram exílios, mortes, dores há uma pergunta que se impõe: “Como sobrevivemos?” e não necessariamente aquela outra, “porque sobrevivemos?”. Na apresentação de um de seus filmes – Que bom te ver viva – a cineasta Lúcia Murat, uma das sobreviventes da ditadura colocou uma frase de um outro sobrevivente, o psicanalista Bruno Bettelheim, que buscou exílio nos EUA fugindo da perseguição nazista “A psicanálise explica porque se enlouquece, não porque se sobrevive”. Sobrevivência que também foi a da psicanálise, pois essa nossa disciplina não viceja nas trevas, precisa de luz e de ser adubada com a liberdade da democracia, do Estado de Direito. Sigmund Freud em seu final de vida foi resgatado da fúria nazista, que atingiu sua família e seguiu exilado para a Inglaterra onde pôde dar continuidade à sua prática, clinicando e formando analistas.


No período da Ditadura Civil-Militar no Brasil, a psicanálise era considerada maldita e não desfrutava de espaço, Hélio Pellegrino e uns tantos abnegados adotavam no período cuidados especiais para trabalhar. Sabemos que um tal Amilcar Lobo - talvez existissem outros – conspurcou  a prática de Freud, quando serviu aos ditadores e seus algozes sádicos torturadores, quando nos espaços dos porões dos quartéis e casas da morte, atestava que determinados sujeitos presos ainda aguentavam o tranco e podiam continuar sendo torturados. Ele foi denunciado publicamente em 1981 pela ex-presa política Inês Etienne Romeu e usava o codinome “chistoso” de "Dr. Cordeiro", quando atuava como médico-assistente nas torturas realizadas em presos políticos durante sua passagem pela notória Casa da Morte, um centro de tortura e assassinatos criado pelo Centro de Informações do Exército (CIEx) na cidade de Petrópolisestado do Rio de Janeiro.


Seguimos hoje no Brasil com a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos do Araguaia, com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, com a Comissão Nacional da Verdade e ainda com muitos grupos organizados que, a exemplo do Movimento Tortura Nunca Mais, convocam as consciências críticas a lutarem contra as torturas de ontem e de hoje, pois essas torturas ainda atingem principalmente as populações pobres, como os adolescentes negros das periferias de nossas cidades.

 


Recentemente a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça atenta aos clamores da sociedade civil, criou a Clínica dos Testemunhos que se destina a atender e cuidar dos que foram atormentados e ainda traumatizados tentam pensar suas feridas, retomando suas vidas. Nessas Clínicas são atendidos ex-perseguidos políticos, anistiados, mas também seus familiares, num vasto programa de reparação mantido pelo Estado Brasileiro. Reparações que num primeiro momento foram econômicas e hoje é ofertada a atenção psicológica. A psicanálise é convocada a participar desses dispositivos clínicos. Há clínicas funcionando em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Em São Paulo um dos projetos contemplados é a Clínica dos Testemunhos mantida pelo Instituto Sedes Sapientie.


Tratar os sintomas que ficaram, tratar o traumático que resta para muitos. Nessas clínicas o inenarrável do real traumático e seus restos nos corpos e nos espíritos são objeto de atenção, tocar no sentido do que não deve ser mantido no esquecimento. Também a questão da herança transgeracional do trauma. Tentar elaborar, sintomatizar, trabalhar o indizível do trauma, os furos, os silêncios.


Essa é aposta que se faz e que não vai sem a psicanálise, pois foi a partir do trauma que a psicanálise fez sua entrada no campo do Outro, foi daí que a psicanálise se impôs tratando o traumático que toca o corpo do falasser.


Na avaliação da psicanalista Maria Rita Kehl, que participa da Comissão Nacional da verdade “é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva. Para que se (re)conheça, para que nunca mais aconteça”. Pois – prossegue, Maria Rita, “O modo como a ditadura negociou sua dissolução com a sociedade brasileira - uma negociação entre quem tinha as armas na mão e quem até então estivera sob a mira delas - funcionou como um verdadeiro convite ao esquecimento”.


Inventar algo novo que funcione como um enlaçamento possível que permita aos sujeitos com força e dignidade continuar se movendo, vivendo, amando e trabalhando, em paz. Tortura – atos indignos contra a existência humana, crime de lesa humanidade, inafiançável, imprescritível. Tortura Nunca Mais, Ditadura Nunca Mais!


Jorge Pimenta é psicanalista, membro da EBP e AMP, participante do Cartel “Clínica do Testemunho”, cuja questão é a articulação teórica entre os conceitos de acontecimento, trauma, memória e reparação e a possibilidade de oferta de atendimento psicanalítico a vítimas e familiares das perseguições e torturas perpretadas pelo aparelho repressivo da ditadura militar no Brasil.

 

Lucia Murat: a sobrevivência como privilégio

 

 

D.R.  Como foi seu processo de prisão? 


Eu tive duas prisões, que refletiram bem as épocas em que foram feitas.


A primeira foi  no Congresso de Ibiuna em 1968, onde eu estava como representante de uma organização legal - o diretório acadêmico da minha faculdade, da qual eu era vice-presidnete,  junto a uma entidade considerada ilegal pela ditadura - a UNE (Uniao Nacional dos Estudantes). Fiquei presa uma semana e foi um momento de resistência onde sabíamos que tempos piores viriam. Menos de dois meses depois veio o AI-5, quando a tortura e o assassinato político se institucionalizaram. Foi nesse quadro que se deu a minha segunda prisão, em março de 1971, quando eu me encontrava clandestina já havia dois anos, militando na resistência armada. Nesse momento, fui levada para o Doi-Codi, onde fui torturada. Passei 3 anos e meio na prisão.

 

D.R.  No final de seu depoimento, vc diz que o pior foi ter tido que encenar para os torturadores seu próprio sofrimento. Como situa sua arte em relação a essa declaração? É um modo de tratar o impossível de esquecer? Um acerto de contas? Denúncia?


Acho que foi a maneira que tive - e isso foi um privilégio - de sobreviver. É um privilegio poder criar e fazer disso a sua vida.

 

D.R.  Você possui alguma relação com a psicanálise? Caso sim, como foi esse encontro?


O meu primeiro filme "Que bom te ver viva" foi feito a partir de um longo processo na psicanálise. Ele inclusive abre com uma frase do Bettelheim. Fiz analise durante 25 anos.

 

D.R. Ter falado `a Comissão da Verdade mudou sua relação com o passado?


Não, já tinha trabalhado muito essas questões na análise e, num outro aspecto, em meus filmes. O depoimento era algo que eu devia à sociedade.

 

D.R. Num dado momento do filme, você diz que os que se suicidaram tiveram uma lucidez enorme. Como foi sobreviver ao pior e se reinventar a partir disso? Criar um alter-ego é uma estratégia de sobrevivência? 


Quando escrevo meus filmes, mesmo que eles sejam inspirados muitas vezes em fatos reais, me sinto mais livre em criar personagens que não sejam exatamente as pessoas reais  (aí incluo a mim mesma). É muito difícil trabalhar com fatos recentes usando nomes e personagens reais. Acabamos tendo muitos impedimentos.. Acho que posso ser mais critica, e nesse sentido, mais verdadeira, criando  personagens fictícios.  Abs, Lucia Murat

 

"A memória que me contam"

Iordan Gurgel
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Podemos parodiar Platão ao dizer que este filme é uma espécie de remédio para curar a memória, quando ela falha ou algo não é evocado. O inconsciente é habitado pela memória que guarda lembranças que o consciente pode ter esquecido. Freud vem em nosso socorro quando diz que o Outro é o lugar da memória, que se articula à indestrutibilidade do desejo e dá espaço para a fantasia. Ela é tributária da criatividade, está sempre presente e não se manifesta de uma só vez mas, pelo contrário, reaparece em tempos diferentes de acordo com as circunstâncias. Por outro lado, a memória é o que possibilita ao sujeito se assumir como eu e se fazer reconhecer aí onde já fomos. Este nos parece ser o exercício de cada um dos personagens envolvidos na trama ao redor dos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil.

 

O filme de Lucia Murat parece estar atento a estas considerações psicanalíticas. O recurso à memória é a forma de tratar o que não pode ser esquecido, o que é, portanto, da ordem de tratar o incurável da experiência traumática. É preciso criar para não esquecer o trauma social que o golpe militar impingiu ao Brasil e a cada cidadão – o que deve sempre ser lembrado e contado para que não se repita. Impõe-se evocar o acontecido para fazer surgir o novo.


No filme é a memória criativa dos amigos que contam sobre a  líder guerrilheira que se ultima no hospital. Assim, mais que um filme que trata das  angústias e conflitos de uma geração que sobreviveu às torturas da ditadura, aborda também a mudança da cultura, o comportamento sexual, a construção dos afetos, a relação idílica com os anos sessenta e a culpa que sobreveio àqueles que sobreviveram às torturas.


É emblemática a tensão permanente entre pulsão de vida e de morte que se manifesta na história de cada personagem. Ao júbilo pela sobrevivência é contraposta a realidade iminente e inevitável da morte, não apenas física, mas também a dos ideais. É interessante que o filme se desenvolve justamente a partir da ameaça da pulsão de morte. A história de Ana, que sobreviveu às torturas do regime militar, se atualiza quando ela agoniza em um leito de hospital e, paradoxalmente, consegue reunir  um grupo de amigos, velhos companheiros de luta no período obscuro da ditadura. É aí, quando a morte ameaça e na ocorrência da inesperada prisão do exilado Paolo - evocar Cesare Battisti não é um disparate histórico - que o passado e o presente se fundem para expressar simbolicamente não apenas a injustiça e a falta de liberdade das decisões autoritárias, mas também para mostrar que as utopias de ontem não se aplicam à realidade de hoje.


O  filme se engrandece  ao revelar, bem  ao estilo da autora, um diálogo  que serve de pano de fundo para as histórias que se entrelaçam,  tendo como referência o conflito de gerações: pais revolucionários, que levaram seus desejos às últimas consequências e filhos  carentes de grandes ideais, alheios à realidade senão ao que diretamente lhes interessa. Em contrapartida, o destino dos antigos revolucionários têm caminhos singulares que desaguam na constatação manifestada pela condição de cidadãos de classe média sem outras ilusões.
Fisgado pelo título, outra questão se impõe: para a memória que (...não) me contam corresponde o sinthoma como efeito do trauma de cada um.


Iordan Gurgel é membro EBP/AMP

 

Gozo Obscuro

M. Bernadette S. de S. Pitteri

 

Osvaldo L. Delgado, professor da UBA, faz uma análise nada trivial do golpe militar na Argentina em http://www.pagina12.com.ar/diario/psicologia/9-242179-2014-03-21.html,  e ajuda a pensar o golpe de 1º de abril de 64 no Brasil - infelizmente não foi mentira o que é história para 90% dos brasileiros hoje -, um horror que durou vinte e um anos e continua a durar nos traumas atestados pelos depoimentos daqueles que passaram pelos porões da ditadura.


O autor observa que, no agente do estado terrorista, assim como no capitalista, que ri quando prevê a mais-valia (ver Marx, O Capital-Seção III, Cap. V, "A Produção da mais-valia absoluta), há uma "satisfação particular" para além das razões econômicas, políticas, militares, ou seja, razões concernentes a um gozo obscuro. O riso do capitalista, no momento em que se revelou para este a essência da mais-valia impressionou Lacan, por ser a expressão de uma satisfação que no Seminário 16 "De um Outro ao outro", ele designou como “mais-de-gozar”. O riso atesta a satisfação alcançada pela posse de algo do outro, não apenas a satisfação pelo a-mais que virá a sustentar o capital, mas pela apropriação mesma de algo que não lhe pertence e que, no caso do capitalista, é o próprio corpo do trabalhador.


Os golpes de estado são fundamentados pelos golpistas com razões patrióticas, econômicas, políticas e militares, mas não se pode esquecer as pulsionais, que emergem de um gozo obscuro.


Em "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico", Freud fala dos que cometem crimes por consciência de culpa e Lacan chama “perversões transitórias” aos atos perversos praticados pelo neurótico, que pode fazê-lo na certeza de não precisar pagar, de não se responsabilizar por seus atos, o que revela uma covardia essencial e o faz "... desplegar todos sus fantasmas sádicos y, por identificación con la víctima, sus fantasmas masoquistas" (cito o autor)*. Ao que parece, é às "perversões transitórias" que se refere Hannah Arendt  (Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal, 1906/1975), quando observa espantada que Eichmann, que mandou milhares para as câmaras de morte, era um homenzinho comum, e não um monstro sádico.


Nas "perversôes transitórias", atos perversos de neuróticos repressores, nota-se a posição do sujeito: colocar-se como instrumento do Outro para buscar completá-lo, tornar-se instrumento para realizar a divisão angustiante do sujeito.


O riso do torturador sempre aparece nos relatos dos torturados, riso que atesta o gozo obscuro da covardia do neurótico irresponsável com a posse do corpo do outro, absolutamente impotente diante da força.

*"... implementar  todos os seus fantasmas sádicos e, por identificação com a vítima, seus fantasmas masoquistas".


M. Bernadette S. de S. Pitteri é Membro EBP/AMP