Extimid@des 02

 

O radar da seção Extimidades não teve descanso nesse último mês. O alcance das "pertinências analíticas" tocou em diversas notícias que marcaram o mês de Junho mundo afora e no Brasil. "Escutas telefônicas", "manifestações", "cura gay", "ato médico", "holocausto" são os significantes-mestre dos temas abordados nesta edição onde a dimensão política foi o que insistiu em inscrever-se. A relevância e as consequências desses significantes no cenário atual são tamanhas, que veremos resvalá-los em várias partes do DR como você já percebeu. Sendo assim, conferimos um destaque ao editorial do New York Times acerca das escutas telefônicas nos EUA. O tema inusitado é comentado por José Carlos Lapenda Figueroa. As manifestações nas ruas do Brasil discutidas na seção "Espaço do Conselho" é foco do comentário de Luiz Felipe Monteiro. O lançamento livro "Holocausto Brasileiro" que trata sobre os hospícios e manincômios no Brasil não passou em branco em meio à tanta agitação, os comentários ficam a cargo de Miguel Antunes. Por fim, elencamos os links para os principais temas mencionados no DR este mês.

 

Link matéria sobre ato médico:

http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2013/06/1297456-senado-aprova-projeto-de-lei-do-ato-medico.shtml

 

Link matéria sobre a cura gay:

http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,sob-presidencia-de-feliciano-comissao-aprova-projeto-da-cura-gay,1043950,0.htm

 

Link matéria sobre o livro "Holocausto Brasileiro":

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/06/os-loucos-os-normais-e-o-estado.html

 

 

Vigilância: uma ameaça à democracia

EDITORIAL DO JORNAL NEW YORK TIMES

 

Pelo Conselho Editorial

Publicado em 11 de junho de 2013 (435 comentários)

 

Nova pesquisa  realizada pelo Centro de Pesquisa Washington Post-Pew constatou que a maioria dos americanos não está incomodada com as revelações referentes à coleta arrastão, feita pela  Agência de Segurança Nacional, dos registros telefônicos de milhões de cidadãos, sem qualquer suspeita individual e independente de qualquer conexão com a investigação de combate ao terrorismo.


Quando o presidente Obama, a senadora Dianne Feinstein, democrata e presidente do Comitê de Inteligência e oficiais do Comitê de Inteligência insistem que tal vigilância é crucial para os esforços de combate ao terrorismo no país, talvez a falta de um sentido mais amplo de alarme não seja absolutamente surpreendente.
Mas os americanos não devem ser enganados por líderes políticos que apresentam uma opção falsa. Se o governo deve perseguir os terroristas com determinação, não é a questão.  A questão é se os objetivos de segurança podem  ser alcançados por meios menos intrusivos ou arrebatadores, sem pisotear as liberdades democráticas e os direitos básicos. Com relação a essa questão, tanto a Casa Branca como o Congresso disseram muito pouco em defesa do arrastão da Agência Nacional de Segurança.


A coleção ílicita  de "metadados" - cada pedacinho de informação sobre todas as chamadas telefônicas, exceto o conteúdo das conversas palavra por palavra - altera fundamentalmente o relacionamento entre os indivíduos e seu governo.


Rastrear a quem os americanos estão chamando, por quanto tempo eles falam e de onde, pode revelar informações profundamente pessoais sobre um indivíduo. Usando esses dados, o governo pode descobrir detalhes íntimos sobre o estilo de vida e as crenças de uma pessoa - tendências políticas e associações, questões médicas, orientação sexual, hábitos religiosos e até  mesmo infidelidades conjugais. Daniel Solove, professor da Faculdade de Direito na Universidade George Washington e especialista em privacidade, compara este programa a uma pintura de Seurat (Georges-Pierre Seurat, francês, 1859–1891). Um único ponto pode parecer que não é grande coisa, porém muitos pontos juntos criam um retrato cheio de nuances.
O efeito é debilitar os princípios constitucionais de privacidade pessoal e liberdade pelo constante monitoramento do governo. A  União Americana de Liberdades Civis entrou com uma ação, nesta terça-feira, desafiando a constitucionalidade do programa, e estava correta ao fazê-lo.

 

A capacidade do governo para construir extensos e secretos dossiês digitais, numa escala coletiva como esta, está totalmente em desacordo com a visão e intenção dos construtores do país que habilidosamente produziram a Quarta Emenda, precisamente para proibir pesquisas indiscriminadas, que lançam ampla rede para ver o que pode ser capturado. Ela também ataca os valores de liberdade de expressão e associação da Primeira Emenda.


Numa democracia, as pessoas têm o direito de saber que técnicas estão sendo usadas pelo governo para espioná-los, como os registros estão sendo mantidos e por quanto tempo, quem terá acesso a eles e as salvaguardas apropriadas para evitar abusos. Só então eles podem avaliar as afirmações oficiais de que o equilíbrio correto entre a luta contra o terrorismo e a preservação da liberdade individual foi atingido, e decidir se estão dispostos a aceitar a diminuição da privacidade e liberdade. Se os americanos foram lentos em reconhecer o  perigoso excesso da vigilância dos telefones pela Agência de Segurança Nacional, isso se deve, em grande parte, à escassa informação que eles têm para julgar a conduta do governo.


Mesmo que a maioria dos americanos acredite que o Presidente Obama não abusa de seus dados pessoais, ninguém sabe quem vai ocupar a Casa Branca ou conduzir as operações de inteligência no futuro. A capacidade do governo de reunir, manter e compartilhar informações sobre seus cidadãos tem crescido exponencialmente desde os dias em que J. Edgar Hoover, como diretor do FBI, coletava arquivos sobre os líderes políticos e ativistas para aumentar seu próprio poder e esfriar a discordância. Proteções contra diversos abusos na era digital de ameaças terroristas genuínas necessitam atualização.


Tradução: Cláudia Aldigueri Rodrigues

 

Comentário de José Carlos Lapenda Figueroa

 

Junho de 2013. Dois destaques no noticiário político do mês: a crise que afetou o governo dos EUA, com a divulgação do programa de coleta de informações da Agência de Segurança Nacional e as manifestações que explodiram no Brasil e ocupam as ruas de todo o pais.


Arrisco-me a unir “em versos soltos” esses dois assuntos.


O Editorial do Times nos chama a atenção para uma notícia que se perderia entre tantas outras e nos convoca à reflexão. Destaco a amplitude e a radical opacidade do programa ao conjunto da sociedade. A coleta de dados de milhões de cidadãos, livres de qualquer suspeita ou conexão com o terrorismo dá ao governo a possibilidade de descobrir e manter sob controle os mais íntimos detalhes da vida pessoal de cada um. E sob o mais completo sigilo.


Esse aspecto fundamental evoca a “dissimetria brutal da visibilidade” que Jacques-Alain Miller aponta no projeto do Panóptico. Em “A máquina panóptica de Jeremy Bentham” ressaltam-se os princípios e critérios de vigilância e controle que as câmaras e os últimos recursos tecnológicos libertaram da arquitetura em pedra e cal. Destaque para a afirmação de que “O Panóptico é uma máquina de produzir uma imitação de Deus”, na qual o olho vê sem ser visto. Poderia essa referência sugerir alguma coisa para o que nos toca nas questões que a religião vem trazendo à prática da psicanálise?1


As manifestações, por sua vez, fogem a todo esforço de compreensão, por parte  da imprensa, dos políticos, da academia. Mobilizam-se pelas redes sociais, não parecem ter direção, as bandeiras se multiplicam, agregam-se todas as tribos, há o ato cego da vandalização e o caráter de epidemia na propagação por todas as praças. Assim, interrogam sobre o real em jogo. Convocam os que Lacan desafiou a unir a seu horizonte a subjetividade de sua época.


Porém, o que mais pode chamar a atenção nesse movimento senão a presença e a crescente predominância de ideais? O que há em jogo no real que permite – nesses tempos em que a incidência do discurso capitalista leva às mais duras formas de quebra do laço social – ascender ao desejo?


Temos, portanto, dois fatos que se articulam em oposição, entre a submissão dos cidadãos americanos e a sublevação dos que, no Brasil, vão às ruas.


Recorra-se a Antoni Vicens, discorrendo sobre o real no capitalismo. Ele fala do utilitarismo e da pretensão de sustentar a paz do mundo com o imperativo do bem-estar e de como isso leva a uma alienação generalizada. E, em oposição, lembra que se pode distinguir a utilidade do desejo, “derivada do véu e da representação”, mas também sua inutilidade, a do objeto a descoberto pela psicanálise. E que esse núcleo inútil de gozo, que Lacan encontrou ao abordar o desejo, é, por sua vez libertador e propicia a escritura graças à qual a vida pode se escrever como um poema.2


Pronto, fico por aqui. E, se não deu em bom sentido, que provoque a quem mais, por bem refletir, possa desenvolver essas questões com melhor providência.

 

1O texto de Miller pode ser lido em O panóptico/ Jeremy Bentham [etal}. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
2 Ver conferência no Instituto del Campo Freudiano de Granada, publicada no YouTube no ultimo dia 16 de junho de 2013.

 

 

Manifestações

 

O coletivo no século XXI não é mais o mesmo... 

 

"Não temos líderes, nem representantes". Foi assim que uma jovem participante das recentes mobilizações públicas respondeu a um jornalista que argumentava sobre a necessidade de um líder ou representante para o diálogo com os governantes. Uma massa que prescinde do líder representativo aponta para os novos modos de pensar o que é um grupo no século XXI. Não mais a identificação ao líder carismático que formava, via o imaginário, a identificação massificante onde todos são iguais perante aquele um, diferente. Hoje a aglomeração é horizontal. Em vez do grupo com uma só voz, o coletivo com as múltiplas vozes. Nem mesmo uma mesma ideologia ou uma mesma queixa congrega este novo agrupamento Ali, cada um fala mais em nome próprio, do que em nome de uma causa. O que no início do movimento parece ser um gatilho para a aglutinação, ganha contornos diferentes à medida que mais pessoas se agregam. É o que se tem visto em Istambul ou em São Paulo. A lógica deste coletivo contemporâneo é da metonímia, não da metáfora. E se por esta razão, não há a imagem do representante, há em seu lugar a imagem em si mesma. O poder identificatório deste novo modo de agrupamento esta na imagem do rosto do 'um a um' nos jornais e redes sociais. É o pai que vê na jovem que responde o jornalista e pensa: "Poderia ser minha filha". É o jovem prostrado na tela do facebook que pensa: "estes caras parecem até se divertir com isso". A proliferação das imagens dos rostos dos manifestantes ainda que desconectadas de um discurso que os unifique, transmite aos olhos de quem vê a sensação de que algo está acontecendo, ainda que não se sabe bem do que se trata. Esse modo de enigma parece mobilizar à muitos nos tempos de hoje. Parece ser um enigma que não apela ao discurso do Outro, mas à uma inquietação derivada da inconsistência do Outro em traduzir o que se passa. Um modo de fazer enigma do qual também um analista certamente pode tirar proveito em uma clínica orientada ao Real no século XXI.

 

Luiz Felipe Monteiro
Associado EBP/BA

 

 

Não nos descuidemos com o hoje

 

O artigo "Os loucos, os normais e o Estado", de Eliane Brum, datado de 03/06/2013 na Revista Época, trata do lançamento do livro "Holocausto Brasileiro" que narra a terrível história dos manicômios judiciários de nosso Brasil. Neste livro, a autora Daniela Arbex, nos força a um retorno por todo o século XX onde aproximadamente 60 mil pessoas morreram, foram deixadas à morte e até usadas como cobaias de eletrochoque.

 

O que testemunha o livro "Holocausto Brasileiro" é uma história onde deveríamos nos envergonhar, porém, o que nos atesta o contemporâneo é um modo de operar que nos remete à esta época, onde o moralismo e a política sanitarista querem limpar as cidades de todos aqueles que fogem das ditas normas da sociedade. Basta analisarmos o crescimento exponencial das comunidades terapêuticas - locais que repetem a segregaçao - cujo Conselho Federal de Psicologia testemunhou inúmeras irregularidades, torturas e descasos com aqueles que deveriam estar em tratamento.

 

Em "Territórios Lacanianos" deste mês, o programa PAI-PJ", coordenado por Fernanda Otoni de Barros-Brisset (EBP/AMP), marca uma diferença nesta história. Orientado pela psicanálise lacaniana, ocupa o lugar de secretariar o alienado, esses que tinham como destino único, a morte nos manicômios. Colocando-se disponível em escutar e acolher o inédito de cada caso e, a partir das brechas jurídicas e clínicas, acompanhar a cada um, em seu modo particular de se arranjar frente aos embaraços jurídicos e seu sofrimento, possibilitando novas saídas para a vida.

 

Ou seja, é preciso que os analistas de nossa época estejam atentos e decididos em não recuar disso que nos toca muito de perto, a saber, a segregação daqueles que são julgados como "doentes mentais" e mais atualmente, os "drogados e crackeiros". É preciso apostar que há um sujeito para além dos rótulos atuais que os empurram em direção ao pior, a exclusão.

 

Link: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/06/os-loucos-os-normais-e-o-estado.html

 

Miguel Antunes

Participante EBP Minas Gerais