EBP Debates #004

 

“Pai, afasta de mim esse cale-se pai”

Por: Vicente Machado Gaglianone


Vicente Machado Gaglianone Na reportagem referida, aparece na charge a fala de um menino diante do médico: "Mamãe! Papai me disse que se uma pessoa estranha me oferecer drogas, eu deveria dizer “Não””. Como poderíamos imaginar a resposta da mãe ao endereçamento do filho? Digamos assim, qual é a posição subjetiva das mães contemporâneas frente ao enigma da filiação, ou: frente ao enigma do encontro com o sexual? Tenho visto em minha clínica uma epidemia moderna de mulheres tomadas pelo delírio de poder prescindir do mal-estar inerente ao encontro com o sexo na procriação, “logo que meu filho nasceu, pedi ao pai que nos deixasse em paz em nosso anonimato”, é uma das enunciações de uma jovem mulher analisante, e, pelo lado do homem, seu delírio é mais do lado do fetiche, tomando as mulheres como objeto metonímico de uma série interminável, onde a dimensão da paternidade passa ao largo. Ambas as posições tem como conseqüência a fixidez da criança na fantasia materna sem o socorro do vetor do Nome-do-pai que viesse fazer contrapartida, barra, ao desejo do Outro materno. Longe de resvalar para um falso hedonismo saudosista, até porque Freud na Viena Vitoriana já se deparava com um resto indelével da relação parental, apontando desde cedo o caráter trôpego do pai na ordenação da opacidade do gozo que concerne ao parlêtre.


Vejamos que na charge, o menino é um sujeito que pôde se servir do pai. Servir-se do pai me parece ser uma boa enunciação que norteie a questão.


É notório que a reportagem é politicamente correta. Há uma mensagem clara que denuncia o uso abusivo da Ritalina e, por extensão, ao controle dos corpos pelo discurso do mestre moderno que é apoiado pelas neuro-ciências e pela indústria farmacológica. Podemos ir ainda mais longe. O “inventor” do TDAH, o neurologista norte-americano Leon Eisenberg, pouco antes de morrer em 2009, declarou “TDAH é um exemplo marcante para uma doença fabricada!” . Triste e tardia confissão, pois o que se verificou desde então (fins dos anos 50) foi uma espetacular epidemia da nova nosografia. Entre 1989 e 2001 verificou-se um aumento de 400%!!!  Só a fármaco Novartis faturou em 2012 mais de meio bilhão de dólares! Há um bom número de fontes importantes que enfatizam, com toda justeza, o caráter falacioso das ditas “premissas cientificas” para a regimentação da prescrição do uso da Ritalina e dos psicotrópicos para algumas patologias. É quase unânime a posição dos agentes desse discurso no sentido de fazer oposição radical a prescrição desses medicamentos, como é o caso da referida reportagem, mas, infelizmente a questão é bem mais complexa e árdua.


A médica entrevistada, Dra Cida Moysés, afirma que as crianças que estão sendo medicadas são aquelas que são questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, que sonham, têm fantasias, utopias e que “viajam”, e que abortar ou calar essa força pulsional seria o prenúncio de um genocídio futuro. Ora isso não é uma in-verdade, mas, diria ser uma meia-verdade. O caráter opressor das pedagogias na modernidade, sem dúvida necessita ser interpretado, entretanto, como Lacan nos ensina na Nota sobre a criança, a criança responde com seu sintoma ao que existe de sintomático na estrutura familiar. O fato é que essas crianças não tiveram a dose adequada do analgésico edipiano e encontra-se no corpo as marcas de um gozo não negativado. E que é preciso que se diga: os impedindo de ter atenção, foco, concentração e desejo decidido, para estudar, ler e se desenvolver, ainda que seja pelo manual dos revolucionários. O que se verifica nas crianças com esses sintomas, ao contrário do que se etiqueta, é que tudo lhes concerne, não podendo ser desejantes a partir da dimensão da falta estrutural, pois se fizeram elas mesmas, com seu sintoma, o bastão na bouche du crocodile da demanda do Outro. É aí nessa mordida que subjaz, paradoxalmente, uma verdade a ser analisada e interpretada e não sintetizada (boa homofonia com os sintéticos da família das anfetaminas). Uma fobia, por exemplo, aquela relativa ao saber, “tal como ela se revela numa cura de orientação analítica, é uma elucubração do saber sobre o medo, ou sob o medo, na medida em que ela é sua armadura significante”.


Laurent, em seu texto “Como engolir a pílula”, vai nos mostrar como Lacan fazia a equivalência entre o Édipo e uma dose de anestésico, e por outro lado, a filiação dos neurolépticos com a anestesia. O Édipo seria então o que significantiza, neutraliza o gozo, silenciando o excesso de barulho nos corpos. Há na sessão de comentários da reportagem, alguém que emite uma tosca, mas ao mesmo tempo interessante opinião, ao dizer que no tempo dele era com uma boa chinelada que se educava esses “pestinhas”. Ora, então o que devemos nos perguntar em primeiro lugar: não seria a pandemia da Ritalina um sintoma que se proliferou no vácuo que se promoveu com a subida ao zênite do objeto a, fazendo o pai-descer ao paraíso? O “cale-se” que vem a reboque das pilulazinhas brancas, não seria um substituto, e, a propósito, muito mais violento, e por isso mesmo, muito menos simbólico que as chineladas de outrora?


Laurent, no artigo referido nos mostra como o medicamento se articula na contemporaneidade de forma borromiana com todas as consistências RSI, tornando-se assim um dos significantes-mestres de nossa civilização e ao psicanalista não caberia opor-se ao seu uso, mas poder dele prescindir com a condição de se servir dele de uma boa maneira.


Para concluir, desmembro a frase de Chico Buarque em dois tempos, que são duas vertentes semânticas possíveis em sua poesia. Em lendo, “Pai, afasta de mim esse cale-se”, evidencia-se o apelo do sujeito ao pai diante da tirania do Outro prescritivo e pedagógico. O pai ao fim da frase abre para o sentido oposto à mensagem inicial. Lê-se então: “cale-se pai”, atestando a tirania do pai ao mancomunar-se ao desejo caprichoso do Outro, não dizendo “sim” à solução sintomática encontrada pelo sujeito.


http://inacreditavel.com.br/wp/ritalina/

idem

Darriba, V. A. “As injunções extracientíficas da divulgação científica”em Opção lacaniana online, n°10. Existem muitas outras referências igualmente importantes. Elegi esta por ser de um colega e por ter sido publicado tão recentemente em nossa revista online.

Lacan, J. “Nota sobre a criança”em Outros Escritos. Ed: Zahar, 2003, Rio de Janeiro.

Laurent, É. “Como engolir a pílula?”em: Clique - Palavras e Pílulas: A psicanálise na era dos medicamentos, pg. 29. Abril de 2002.

Miller, J-A. “A Criança e o saber”, em: CIEN Digital nº 11. Janeiro de 2012.