EBP Debates #004

 

Perspectivas da Medicalização

*Luiz Mena

 

Luiz MenaO fenômeno da medicalização é um dos caminhos pelos quais interpreta-se e tenta-se responder ao mal estar e aos sofrimentos da existência. Busca-se, assim, através de marcadores biológicos inequívocos e suplências químicas, dar um contorno ao sofrimento do ser, transformando a dor da existência em uma disfunção do organismo e/ou em um problema individual, recortando o sujeito do contexto social, afetivo, político, histórico, que o dá substância.  


Para a psicanálise não é estranho o fenômeno da medicalização do mal estar, sendo uma das primeiras vozes a se insurgir em oposição a um amordaçamento do sintoma e, consequentemente, do sujeito. Quando Freud dá voz às histéricas para que falem de seus sintomas, ao invés de deixar seus sintomas falarem em seu lugar, ele insiste sobre o fato de que o ser humano é um ser político, que tem sua existência tecida na relação com o Outro, a partir do corte que faz a linguagem no real do corpo. O fenômeno da medicalização destitui o sujeito de sua condição de partícipe de seu próprio processo de subjetivação, fixando-o em uma posição de objeto. Nesse sentido, faz par com o discurso capitalista, encontrando-se na posição oposta à da psicanálise.


Mas esta discussão não está restrita à psicanálise, outras vozes se fazem ouvir desde fora. Ela tem ocupado os holofotes da cidade, e amplificou-se com o lançamento do DSM-V, que aumenta o olhar medicalizante sobre a sociedade, incidindo de maneira especialmente dramática sobre a infância.


Na linha de frente desta polêmica está o TDAH, “um transtorno que não existe”, segundo a médica e professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Maria Aparecida Moysés, sendo culturalmente criado para atender a exigências de mercado. Segundo Moysés, em entrevista ao Portal da Unicamp, “a taxa de prevalência do TDAH no mundo varia de 0,1% a 20%, de acordo com valores culturais, região geográfica, época e conforme o profissional que está avaliando”. Como podemos entender o fato de que não exista TDAH na França, mas o número de crianças diagnosticadas com a “doença” não pare de crescer nos Estados Unidos e no Brasil? Ela tem uma teoria: “Esses países são hoje o primeiro e o segundo maiores consumidores de metilfenidato [o princípio ativo da Ritalina] entre crianças no mundo todo”, explica Moysés.


Maria Aparecida Moysés é uma das fundadoras do “Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade” , com mais de 40 entidades acadêmicas profissionais e mais de 3.000 pessoas físicas no Brasil.

 

Esse Fórum tem uma parceria com o Coletivo “Pas de 0 de Conduite” , grupo de profissionais franceses que trabalham contra abordagens preventivas de teor determinista e preditivo, na saúde e na educação.


Do outro lado da celeuma encontramos o médico psiquiatra Luis Augusto Rohde, diretor do Programa de Déficit de Atenção e Hiperatividade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, convidado pela Associação Americana de Psiquiatria a contribuir para a atualização do DSM-V. Em entrevista à Revista Veja de 31/07/2013, ele assume que exista o risco de medicalização, “embora não no caso do TDAH”, diz ele.


Pergunta Rohde: “É melhor passar a infância sendo chamada de criança mal criada e preguiçosa, julgamentos morais, ou ser vista como portadora de déficit de atenção? Afirmo que para os primeiros predicados não há tratamento. Para o último, sim.”


A questão que atravessa a polêmica medicalizante do DSM-V incide principalmente sobre a infância, e sobre a concepção de infância que queremos: uma infância de “mal criados” ou uma infância de “doentes”?


O Dr. Rohde responde a esta pergunta: ele prefere uma infância medicalizada. Porém, podemos dizer que há um primeiro equívoco em sua análise, pois para o primeiro grupo, o de mal criados, há sim tratamento: ele se chama Educação. Deixa evidentes e angustiantes restos, evidenciando um impossível da tarefa educacional, salientado desde Freud, mas é o que temos até o momento para a tarefa de domesticação – nunca alcançada completamente – da pulsão, tanto para os nossos filhos quanto para os filhos do Dr. Rohde. Mas se escolhermos esse caminho, o da criança mal criada, certamente precisaremos nos responsabilizar, como adultos, pelo que fazemos – e pelo que deixamos de fazer – com as crianças que “colocamos no nosso mundo”, como diz Hannah Arendt. Pois se elas são “mal criadas” elas foram “criadas por alguém”.


Se escolhermos a segunda via, a de uma infância doente, provavelmente iremos nos sentir mais aliviados, assim como deve estar se sentindo o Dr. Rohde, por encontrar enfim um marcador que o inocenta de sua responsabilidade com o mundo, sem dela precisar responder. O problema é que, novamente, temos os restos. E eles, “on doit toujours se debrouiller pour faire avec”...