EBP Debates #004

 

A PSICANÁLISE E A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA

Claudia Murta

Membro da EBP


Claudia MurtaO professor Christopher Lane, em seu livro Como a psiquiatria e a indústria farmacêutica medicalizaram nossas emoções oferece uma reflexão muito interessante sobre o tema proposto. O autor questiona profundamente a transformação de sentimentos em doença mental. No seu texto, de forma ilustrativa, ele conta uma conversa com um amigo psicanalista que lamentava: “...nós, em outra época, tínhamos uma palavra para designar aqueles que sofrem de transtorno deficitário de atenção e hiperatividade (TDAH). Nós os chamávamos garotos.”


Quando eu li isso, fiquei bastante impressionada, pois o psicanalista praticante se depara com tais afirmações diariamente: “meu filho sofre de déficit de atenção!”; “meu filho sofre de hiperatividade e está fazendo uso de ritalina.” Tal como o colega de Christopher Lane, o psicanalista pode se perguntar se não se trata apenas de garotos se ocupando do que devem se ocupar – brincadeiras. Com esse raciocínio, pode-se concluir que peraltice e mesmo outros tipos de comportamentos foram transformados em transtornos mentais a serem medicalizados.


O termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo. (COLLARES e MOYSÉS, 1994)
Em uma entrevista publicada no portal do Humaniza SUS, em agosto de 2013, a Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Maria Aparecida Affonso Moysés, aponta que o diagnóstico de TDAH está sendo feito de forma indiscriminada. Respondendo à questão do portal da Unicamp sobre quem está sendo medicado, a professora anuncia:


São as crianças questionadoras (que não se submetem facilmente às regras) e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de 1.000 anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Quando impedimos isso quimicamente, segundo a frase de um psiquiatra uruguaio, “a gente corre o risco de estar fazendo um genocídio do futuro”.  Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível (MOYSÉS, 2013).
A professora acrescenta que o Brasil está logo atrás dos Estados Unidos na taxa de consumidores de ritalina. Na França, o diagnóstico de TDAH é praticamente zero e segundo a professora, isso se dá pelos valores da sociedade e pela formação dos médicos franceses que têm um coletivo muito ativo com o nome “pas 0 de conduite”. Na Unicamp, o grupo de pesquisa à qual a professora Moysés se vincula está formando um Fórum permanente sobre medicalização e patologização da vida.


Em seu livro, Christopher Lane comenta que a transmutação da timidez em doença se fez de portas fechadas por comissões cuidadosamente escolhidas. Enfatiza também que a influência do manual DSM se estende bem além das fronteiras da psiquiatria, em uma vasta rede, de tal modo que, em pouco tempo, desde a metade dos anos noventa do século XX até o início do século XXI, metade da população dos EUA é constituída de doentes mentais (LANE, 2007, p. 10).


Publicado em 1952, o primeiro DSM falava de doenças com diferentes traços, a partir da frequência e da intensidade de crises. No DSM-II, os mesmos males começaram a aparecer como afecções permanentes e mesmo inatas; a doença passa a definir o paciente. Já no DSM-III, comportamentos ordinários, como a timidez, considerados em outros tempos como absolutamente estranhos ao domínio de intervenções psiquiátricas, começam a aparecer nos manuais de referência sob a etiqueta de transtorno mental, afetando grande parte da população. O DSM-IV surgiu em 1994 acrescido de 400 páginas e de dezenas de novos transtornos. No que diz respeito à angústia, a partir do DSM-IV, a sua definição passa a ser “transtorno de ansiedade social”.  Os esforços conjuntos da psiquiatria e da farmacologia, segundo Lane, permitiram transformar um transtorno marginal em uma epidemia declarada que atinge milhões de pessoas. Já o DSM V saiu em maio de 2013 e os investimentos continuam...


Christopher Lane expõe que as associações entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica favorecem exclusivamente o capital. Em sua avaliação, o esquema é o seguinte:  primeiro se constrói uma ideia de doença, depois se divulga essa ideia para que os consumidores, decididamente doentes, possam comprar os medicamentos para saná-la. Tais medicamentos provocam inumeráveis efeitos colaterais, que provocam mais doenças e, por conseguinte, maior possibilidade de novas vendas. Um excelente comércio de doenças e medicamentos, no qual o marketing é um elemento fundamental.

 

A tecnociência 

 

O filósofo Jorge Alemán encaminha suas reflexões sobre a tecnociência do seguinte modo: “a imbricação do mercado capitalista com a correspondente expulsão da subjetividade efetuada pela ciência, que finalmente conclui na “Técnica”, realiza um movimento que não respeita nada nem ninguém”. (ALEMAN, p. 70) Jorge Alemán inclui, em suas considerações, a categoria do respeito. A falta de respeito é, para ele, a falta da distância simbólica que implica o conceito psicanalítico de castração. Para ele, os signos do movimento de desaparecimento do respeito são os procedimentos de homogeneização; o desaparecimento da memória; o declínio da imagem paterna; o aumento do racismo; a globalização.  Em suas palavras:


Não há religião nem retorno à tradição alguma, nem nenhum projeto de emancipação construído com os elementos típicos da modernidade que possa voltar a reeditar e recompor a distância que se destruiu [...] Não tem nenhum fundamento a restaurar ou a recuperar, nenhum pai que volte a instaurar e impor as insígnias do respeito. (p. 72) 


Pela falta dos elementos que possam recuperar a distância perdida, as saídas contemporâneas são as generalizações dos princípios de regulação que possam proporcionar algum consolo. Esses princípios de regulação tentam controlar os efeitos da tecnociência mediante paliativos humanitários médico-religiosos.
A contemporaneidade apresenta um discurso frouxo, ou melhor, sem nenhum projeto, a partir do qual as soluções apontadas apresentam-se apenas como paliativos ilusórios e inócuos.  Sendo que a eficácia só se manifesta do lado da técnica a serviço do poderio econômico em favor da Globalização. Alain Badiou, em seu livro sobre a ética, enuncia que, na nossa contemporaneidade, a ética tornou-se nada mais que um discurso piedoso que visa a fazer valer os “direitos do homem”. Em suas palavras:


Que pode então vir a ser esta categoria [discurso piedoso] se pretendemos suprimir, ou mascarar, seu valor religioso, conservando o conjunto abstrato de sua constituição aparente (“reconhecimento do outro”, etc.)? A resposta é clara: escalda gatos. Discurso piedoso sem piedade, suplemento de alma para governos incapazes, sociologia cultural substituída pelas necessidades do sermão, incendiando a luta de classes. [...] Separada da pregação religiosa que poderia lhe conferir ao menos a amplitude de uma identidade “revelada”, a ideologia ética é apenas a última palavra do conquistador civilizado: “seja como eu, e eu respeitarei a sua diferença” (BADIOU, 1993. p. 24 e 25).

 

Angústia em Psicanálise


Distante da abordagem da tecnociência, o psicanalista Jacques Lacan adota outro recurso para a discussão desse tema.  Ele se aproxima da filosofia, evidenciando desde a introdução do seu Seminário de 1962-1963, as razões de  sua abordagem da angústia:


“Eu não tomei aqui a via dogmática de fazer preceder de uma teoria geral dos afetos o que eu tenho a lhes dizer sobre a angústia. Por quê? Porque nós não somos psicólogos, nós somos psicanalistas. Eu não desenvolvo uma psico-logia, um discurso sobre essa realidade irreal que se chama psique, mas sobre uma práxis que merece um nome, erotologia. Trata-se do desejo. E o afeto pelo qual nós somos talvez solicitados a fazer surgir tudo o que esse discurso comporta como consequência, não geral, mas universal, sobre a teoria dos afetos, é a angústia (LACAN, p. 24)”.


Lacan deixa clara a diferença entre a psicanálise e a psicologia quanto à teoria dos afetos. Se a psicologia se mistura ao discurso médico no âmbito do tratamento da angústia, a psicanálise toma outro caminho ao fazer valer a descoberta freudiana tão atacada pelos autores do DSM. Lacan explicita, portanto, que o afeto traduz a presença de um sujeito em suas relações constitutivas com a linguagem. A angústia é um afeto, ela é a expressão de um sujeito afetado sem possibilidade de reparo em sua desadaptação originária, em seu inapelável desamparo enquanto ser de linguagem.


Em 1974, Lacan participou de um programa de televisão, quando foi entrevistado por Jacques-Alain Miller. O resultado do trabalho foi publicado com o nome de Televisão, no qual Lacan discorre sobre assuntos variados no âmbito da doutrina e da prática analítica, dentre tantas questões, os afetos. Segundo ele:

“Dizer que negligencio o afeto para se empertigarem ao valorizá-lo – como sustentar isso sem recordar que durante um ano, o último de minha temporada em Saint-Anne, tratei da angústia?


Alguns conhecem a constelação em que lhe dei lugar. A comoção, o impedimento, o embaraço assim diferenciados, provam suficientemente que do afeto não faço pouco caso. ...


[...] Afetei, nesse ano, tão bem meu pessoal para fundamentar a angústia a partir do objeto concernido por ela – longe de ser desprovida dele (onde ficam os psicólogos que não puderam dar sua contribuição além de distingui-la do medo...), - fundamentá-la, digo, a partir desse objeto, como agora designo de preferência meu objeto (a), que um dos meus teve a vertigem (vertigem reprimida) de me deixar, tal como esse objeto, cair” (LACAN, 1993, p.42).


Aqui Lacan sustenta sua defesa da presença desse afeto em suas teorizações em psicanálise, assim como lembra sua abordagem bastante original com relação à angústia, postulando um objeto inédito, uma criação sua, contra a ausência consensual do objeto na experiência da angústia. A inscrição da angústia como afeto do sujeito se distancia da perspectiva vital de um organismo buscando adaptação segundo uma explicação psicofisiológica. 


O “transtorno de ansiedade social” é a expressão da angústia na contemporaneidade. A psicanálise vem responder a isso no sentido de afirmar o sofrimento intransferível do sujeito. A angústia é o afeto próprio do sujeito, o afeto estruturante da existência. O que propõe a psicanálise não é a cura da angústia através dos recursos de uma racionalidade instrumental.


A angústia é um afeto do sujeito implicado em seu sofrimento, que deve responder na sua singularidade com um saber formulado a partir de sua relação com a linguagem, enquanto sujeito afetado pela palavra e implicado em um dizer. A pertinência da psicanálise nessa questão inscreve-se enquanto fronteira de resistência aos procedimentos “pragmáticos” e “operatórios” da razão instrumental, não aceitando de forma alguma a não-implicação do sujeito em seu próprio sofrimento.

 

REFERÊNCIAS

ALEMAN LAVIGNE, J. & LARRIERA SANCHES, S. El inconsciente : existencia y diferencia sexual. Síntesis : Madrid,  s/d., p. 70.
BADIOU, A. L’éthique: essai sur la conscience du mal. Paris: Hatier, 1993.
COLLARES, C. A. L. & MOYSÉS, M. A. A. (1994). A Transformação do Espaço Pedagógico em Espaço Clínico (A Patologização da Educação). (Série Idéias, 23, pp. 25-31). São Paulo: FDE.
LACAN, J. (1962-63) Le Séminaire : Livre X – L’angoisse. Paris: Seuil. 2004.
_________. O Seminário, livro 10 - A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005.
_________. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
LANE, C. Comment la psychiatrie et l’industrie farmaceutique ont medicalisé nos émotions. Paris : Flammarion, 2009.
MILLER, J.-A. “A Propósito dos Afetos na Experiência Analítica”. In: As Paixões do Ser: Amor, Ódio e Ignorância. Rio de Janeiro: Contra Capa. 1998.
MOYSÉS, M. A.A. http://www.redehumanizasus.net/64611-noticias-da-unicamp-sobre-a-droga-da-obediencia

http://www.pasde0deconduite.org/