EBP Debates #003

 

Cláudia Henschel de Lima

Membro da EBP.AMP/ Professora Adjunta. UFF. ICHS. PUVR. Coordenadora do Laboratório de Investigação das Psicopatologias Contemporâneas-LAPSICON/UFF

 

As toxicomanias se enquadram em uma abordagem dos sintomas marcada pela hegemonia do corpo e pelo declínio do recurso à fala, colocando um impasse, em nosso campo, para a direção de tratamento desses casos. No Brasil, a constatação de que as toxicomanias prescindem deste recurso à fala em nome da substância psicoativa vem, nos últimos anos, abrindo espaço para uma teologia do normal, caracterizada por Miller como a triste saúde dos gestores. Essa teologia se traduz em uma formulação política que contraria as conquistas inovadoras da Lei 10.216/01, ao defender uma direção de tratamento pautada no abrigo compulsório e que conjuga medicalização e terapêutica religiosa.

 

É preciso não perder o horizonte político que o abriga desde o ano de 2002, com a publicação da Portaria 2.391/GM que dispõe sobre as quatro modalidades de internação psiquiátrica no quadro da Lei 10.216/011. A Portaria 2.391 é bem clara com relação ao estatuto da Internação Compulsória: ela é determinada por medida judicial, sendo tema do Direto Penal e não do Ministério da Saúde. Tal como vem sendo abordada pela atual Prefeitura do Rio de Janeiro2, a internação compulsória é a versão do Discurso do Mestre da época: manutenção da ordem pública ao preço da criminalização e da fixação na delinquência de tudo que a problematiza e a relativiza. Essa abordagem inverte a lógica significante de nossa época, tomando a desinserção como causa e, portanto, como problema à ser eliminado.


Sabemos, com Freud e Lacan, que a psicanálise não despreza a época, extraindo daí as consequências sobre o funcionamento do sujeito. É assim que a desinserção não é a causa; ao contrário, em nosso país, ela resulta de um longo processo político e econômico que, na ditadura, foi encarnado pelo modelo nacional-desenvolvimentista com concentração de renda e que foi sucedido pelo modelo neoliberal de aprofundamento da outra face da moeda da concentração de renda: a fixação dos sujeitos abaixo da linha de pobreza. E estar abaixo da linha de pobreza pela destituição da cidadania e de um lugar no laço social não é somente uma medida extraída da privação material, mas uma posição subjetiva. Cabe, então, interrogar se a defesa do abrigo compulsório no Discurso do Mestre da época, não fixaria e condenaria a desinserção à delinquência em uma teologia do normal que:

  1. Suprime a condição subjetiva da desinserção com a criminalização: ela é perigosa e ameaça a ordem pública.

  2. Determina a intervenção da força policial como procedimento para a efetuação do recolhimento de crianças e adolescentes.

  3. Segrega socialmente em abrigos de difícil acesso, desrespeitando as soluções subjetivas de territorialização (asseguradas pela Lei 10.216).  

  4. Autoriza a medicalização abusiva do psiquismo com prescrição indiscriminada de Haldol conjugada à uma terapêutica religiosa de reforma moral.

1 internação involuntária, internação voluntária, internação voluntária que se torna involuntária e internação compulsória

2 por meio da Resolução SMAS número 20 de 27 de maio de 2011, que criou e regulamentou o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social prevendo o recolhimento e o abrigo compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua que fazem ou não uso abusivo de drogas