EBP Debates #002

 

“Psicanálise, Religião, Política – alguns desafios que o Brasil enfrenta”

Samyra Assad*

 

Samyra AssadSerá que haveria uma tentativa de triunfo da religião também na política? Dentro das notícias que nos chegam, li algo como “é preciso manter a laicidade do Estado”, quando evangélicos, a partir do poder político que lhes é destinado no Brasil, tentam interferir no tratamento dos homossexuais, propondo uma “reorientação sexual”, através de psicólogos cristãos. É a chamada “cura gay”, tema já trazido em jornais de alta circulação, vetado pelo Conselho Federal de Psicologia, e agora em votação na Câmara de Direitos Humanos, a se realizar hoje, dia 18/06/2013.

 

Depois das tentativas de regulamentação da psicanálise propostas por alguns deputados pastores, parece ter faltado isso ainda. Parte da luta contra os projetos de lei que visavam a regulamentar a psicanálise se pautava na importância de se manter a laicidade de uma experiência analítica. Agora estamos diante de uma luta que requer manter a laicidade do Estado. Se o termo “liberdade de expressão ou escolha” é utilizado para a defesa contra o arquivamento de projetos provenientes das ideias cristãs (tanto na proposta da cura gay como na manutenção do site de um denominado “Conselho Brasileiro de Psicanálise”), não resta dúvida de que se trata de um determinado uso, atraente por sinal, para o que possa vir a ser o caos.

 

O que se repete nessa trajetória e para onde isso aponta? Na política do Estado ou na prática analítica requerida pelos religiosos, o que se repete parece ser a tentativa de domínio da religião sobre os meios através dos quais uma multiplicidade indesejável e incontrolável acontece: usa-se a política do Estado para disseminar uma crença, usa-se uma terapêutica para difundir certa moral dentro de um “tratamento”, ou mesmo uma formação intitulada como sendo de “psicanálise” para se criar discípulos em cada Estado do Brasil, com suas respectivas filiais. A religião está como que “de olho absoluto” na psicanálise. A questão mercadológica passível de ser observada nesse intento, a meu ver, não parece ser a tônica dessa realidade, pelo menos, em seu grau de gravidade. Logo, não seria difícil perceber, nisso, uma das roupagens da “ordem de ferro”, índice de uma degeneração catastrófica segundo Lacan. O lobo no cordeiro.

 

Éric Laurent, quando aborda a questão das formas religiosas centradas no múltiplo, diz: “isso é, sem dúvida, uma forma do supereu no século XXI que faz com que cada um vá em direção ao seu mais de gozar sem poder se apoiar nos discursos já existentes”. (O Supereu sob medida – Uma entrevista de Éric Laurent sobre a nova ordem simbólica do séc. XXI – Papers n. 8, p.5).

 

Se tomarmos isso como uma das leituras possíveis diante da ascensão privilegiada do gozo, restam-nos as formas de inventar e incrementar o lugar da voz do cidadão mais além daquela que prega um domínio, uma crença, um partido, ou um modo de vida. Seja através dos meios que contribuem para uma opinião esclarecida, seja por manejos que implicam a colocação de cada campo em seu lugar, iremos discutir, na Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, a possibilidade ainda de um debate televisivo com psicanalistas e os pastores responsáveis pelo projeto “cura gay”.  Aqui, também, não temos nada que alimente um otimismo, mas há uma aposta de podermos demonstrar que o furo ex-siste. Que o real insista nas invenções, inclusive dos religiosos.

 

*Coord. da comissão “Observatório sobre a Regulamentação da Psicanálise” na EBP.