EBP Debates #002

 

Romildo do Rêgo BarrosBrasil: dois momentos de desencontro entre psicanálise e religião

Romildo do Rêgo Barros

 

O Conselho da Escola propôs a realização, em breve, de um colóquio sobre as relações entre psicanálise e religião.

É uma boa ideia que cruza com a nossa história recente em pelo menos dois momentos. 
Um primeiro, no final dos anos noventa, quando alguns pastores evangélicos fundaram uma sociedade de psicanálise fora do que entendemos como formação do psicanalista, e isso motivou a criação, no ano 2000, de um movimento, chamado Articulação, que envolve, até hoje, dezenas de instituições psicanalíticas de diferentes inspirações, na luta contra as tentativas de regulamentação da psicanálise. Até agora, com sucesso.

Um segundo momento, que é o atual e me parece bem mais ambicioso, não se refere, de forma direta, à psicanálise, diversamente das tentativas de regulamentação que sempre visaram ao controle estatal da profissão de psicanalista. Trata-se de algo mais amplo, que compromete os destinos da cultura, e tem, por enquanto, o formato de uma defesa da moralidade. Um exemplo importante foi a aprovação, nesta semana, na Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, presidida pelo pastor-deputado Marcos Feliciano, de um projeto de lei que tem por escopo a anulação de uma decisão do Conselho Federal de Psicologia que proíbe, aos psicólogos, a oferta de terapias que visem à cura da homossexualidade, o que o humor nacional, sempre pontual, chamou de “cura gay”.

Pouco importa se essa Comissão tem ou não o poder de anular uma decisão tomada por um conselho profissional. Não é essa a questão. O que está em questão é a tendência crescente a um controle da moral privada por parte de uma concepção religiosa, organizada como um movimento populista que aspira ao poder. Isso não é um apanágio do Brasil, naturalmente, o que agrava ainda mais o problema. Tampouco visa a atingir diretamente, pelo menos até agora, a psicanálise, mas isso nos inclui em um universo que vai bem além da nossa prática clínica e institucional; universo que eu chamaria, para facilitar, de libertário: ou seja, o conjunto dos movimentos e práticas que têm, como objetivo, certo esclarecimento da função do desejo: na educação, nas novas configurações familiares, nos comportamentos sociais, nas instituições, na prática política, nas formas de tolerância sexual, nas intervenções psicoterapêuticas etc., etc., etc...

Vê-se que esses movimentos e práticas não perfazem um conjunto inteiro. São contraditórios entre si, alguns talvez até se detestem, mas aderem ao compromisso comum com certa concepção de vida coletiva que leva em conta o desejo. Talvez sejam apenas alianças táticas, fundamentais, no entanto, na atual correlação de forças.

O tratamento populista da moral privada exclui a psicanálise, mesmo quando não faz dela – ainda - um inimigo direto, porque exclui o sujeito tal como o entendemos. Em lugar dele, serão sem dúvida consagradas certas formas de comportamento emanadas da moral religiosa, o que determinará, necessariamente, a orientação das terapias. A “cura gay”, por exemplo, não poderá ser algo diferente de uma correção de comportamentos, por não se poderem corrigir o desejo e a pulsão.

É preciso que saibamos distinguir os dois momentos, sob pena de não entendermos o que é exigido de nós.