EBP Debates #002

 

Ricardo Moretzsohn

Entrevista: “Da imposição de uma fé aos movimentos sociais1” com Ricardo Moretzsohn2

 

Samyra Assad: Ricardo, quando você foi presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), sabemos que ele participou da criação da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, no ano de 2000. Essa Articulação reúne, hoje, dezessete instituições psicanalíticas brasileiras, dentre elas a EBP, a fim de barrar, de tempos em tempos, projetos de lei para se regulamentar a psicanálise, elaborados por deputados da bancada evangélica. Você poderia nos dizer um pouco da origem da Articulação?

Ricardo Moretzsohn: Em meados de 2000, o CFP passou a receber várias denúncias e/ou reclamações relativas ao fato de que alguns pastores estavam se intitulando psicanalistas e estavam “atendendo” a população assumindo a condição de psicanalistas. Essas denúncias eram formuladas, principalmente, por psicólogos que também queriam informações acerca da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil – SPOB –, a qual lhes estava oferecendo cursos de psicanálise. A própria SPOB tentou acionar o CFP, assim como o Conselho Federal de Medicina – CFM, visando a obter informações a fim de saber se a psicanálise era fiscalizada por esses dois órgãos. Optamos por não responder, pois não sabíamos qual seria o uso disso, mas o CFM respondeu informando que não tinha nada a ver com a psicanálise e que ela não fazia parte do rol das suas fiscalizações. Com tal documento, a SPOB se sentiu à vontade para continuar o aliciamento e oferecendo a sua formação.

Diante desse cenário, e, a despeito da nossa compreensão de que a psicologia e a psicanálise são campos distintos, entendemos que o CFP estava sendo demandado pela sociedade a partir do seu caráter de orientação e fiscalização, e pelo fato de que não haveria outro locus para se dirigirem. Após diversas discussões internas, o CFP entendeu que deveria acionar as entidades psicanalíticas para dividir essa questão e propor a criação de um espaço, ou melhor, de um fórum comum onde pudesse haver alguns consensos entre elas. Tal consenso, independentemente das respectivas orientações teóricas tinha, como norte, a possibilidade de construir aspectos mínimos sobre o que seria a formação de psicanalistas e como responder à sociedade por ela. Ou seja, se trataria de um fórum político.

Então, por circunstâncias diversas, houve um contato inicial com a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro que se dispôs a convocar, conjuntamente, as entidades psicanalíticas para a criação desse fórum, o qual passou a se chamar Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. Durante muito tempo, ela se reunia no Rio de Janeiro (e continua até hoje), passando a realizar inúmeras discussões e encaminhamentos sobre a formação, a prática e as tentativas de regulamentação da psicanálise pelo Estado. Desde o início, o CFP, representado por mim, organizou e participou desse espaço gerando, por vezes, estranhamentos de alguns acerca da nossa presença. Com o passar do tempo, isso foi totalmente diluído e a nossa presença nesta cena foi acolhida como uma parceria importante.

Samyra Assad: Ainda que os projetos de lei criados para se regulamentar a psicanálise (em torno de quatro) até então tivessem sido arquivados através da batalha que sustentamos contra isso, vemos que a bancada evangélica, por outro lado, além de ser bem extensa no Congresso do Brasil, “exige” outras coisas também. Logo, como desdobramento dessa questão inicial, é possível observar, por exemplo, a proposta de tratamento de reorientação sexual  a partir da chamada “cura gay”, elaborada pelo presidente da Câmara de Direitos Humanos (deputado e pastor Marcos Feliciano); outros participam da criação do site intitulado “Conselho Brasileiro de Psicanálise”, e alunos dessa antiga SPOB, presidida pelo pastor Heitor da Silva, abrem instituições por todo o Brasil a fim de difundirem o que aí “aprenderam” em dois anos, depois de obtidos, nesse período, o “diploma” e a “carteira profissional de Psicanalista”. Inclusive, no final do ano passado (em 27/12/2012), tivemos ainda a notícia da homologação do título de Utilidade Pública para a “Associação Beneficente Psicanálise de Deus”, pela Prefeitura de Florianópolis. Como você vê esse fenômeno da contemporaneidade brasileira, a partir do qual política e religião se mesclam para governar e clinicar? Como você entende esse tipo de resposta para a impossibilidade inerente a essas tarefas, demonstrada, podemos dizer, sob a base de uma repetição, de uma insistência? 

Ricardo Moretzsohn: Historicamente, o Estado brasileiro, durante séculos, esteve dominado pela religião oficial que determinou a moral, os costumes e as formas de se relacionar.  Com o advento da República, ele se tornou oficialmente laico e, mais recentemente, tal status foi reafirmado pela Constituição de 1988. Sendo assim, a laicidade do Estado está preconizada como um princípio pétreo. Considero isso como uma conquista fundamental, pois o Estado laico nos garante a liberdade de pensamento, nos protege da perseguição religiosa, assim como tem de demarcar as fronteiras entre o seu funcionamento e as religiões.

Hoje, temos visto fundamentalismos religiosos orquestrando a imposição de seus dogmas às políticas públicas e estatais, por meio da Frente Parlamentar Evangélica, o que é muito preocupante. O caso Feliciano é emblemático, mas, infelizmente, me parece ser apenas a ponta de um iceberg que traz, em sua essência, um conservadorismo muito ameaçador ao estado de direitos. A chamada “cura gay”, através de um projeto de decreto legislativo, tem colocado o CFP no olho do furacão, pois se trata de solapar dele uma resolução de 1999, na qual se estabelecem diretrizes de atuação para os psicólogos em relação à orientação sexual (que proíbe considerar os homossexuais como portadores de desordem psíquica e propor a “cura”).
A norma estabelece que psicólogos e psicólogas tenham total liberdade para o exercício profissional, o que é garantido pelos Conselhos Regionais e Federal. Isso diz respeito à área que escolhem para trabalhar, ao suporte teórico que selecionam e a muitas outras dimensões profissionais, mas ela deve ser regrada pelos princípios éticos da profissão. A Resolução não cerceia o profissional. Sua função precípua é a de acolher o sofrimento. Não há dispositivo editado pelo CFP que impeça o atendimento, tampouco que proíba o profissional de acolher o sujeito que chega ao consultório, ao hospital, ou a qualquer outro espaço onde se disponibilize o trabalho da Psicologia. Faz-se ainda necessário repetir: não se trata de negar a escuta psicológica a alguém que queira mudar a sua orientação sexual, mas sim, de não admitir ações de caráter coercitivo e dirigidas pelo preconceito, como quando alguns psicólogos afirmam que a homossexualidade pode e deve ser “invertida”.

Infelizmente, nesta semana, o deputado e pastor Feliciano conseguiu que o Projeto de Decreto Legislativo 234/11 fosse aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, da qual é o Presidente. Todos sabem que se constitui um acinte ter tal sujeito ocupando esse cargo, mas isso nos demonstra a potência da força desse segmento. É emblemático que, recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 99/11, do deputado João Campos (PSDB-GO), que inclui as entidades religiosas de âmbito nacional entre aquelas que podem propor ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Além disso, outras questões têm sido alvo desse fundamentalismo, tais como a pretensa inferioridade de raças e etnias, as internações forçadas de usuários de drogas e a criminalização do aborto.

Diante desse cenário, a psicanálise se torna um “filão” para os fundamentalistas religiosos que necessitam de algumas legitimações sociais para as suas práticas dogmáticas e moralistas. Ora, ao pretenderem estender os seus tentáculos para diversos setores da sociedade, a clínica psicanalítica lhes aparece como um campo promissor onde poderão exercer a sua “prática clínica para a cura”. Parece-me que tendem a enxergar a psicanálise como “terra de ninguém” onde podem se dar o direito de apropriar e explorar como bem entendem! E não me surpreenderia se, daqui há algum tempo, propuserem algo como “Psicanálise Cristã”!!!

Samyra Assad: Quais as estratégias utilizadas pelo Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia, já que são órgãos regulamentados e propícios, como tal, à representatividade política e social para se enfrentar isso?

Ricardo Moretzsohn: As estratégias são diversas e vão desde manifestações públicas, à realização de inúmeros eventos de discussões e reflexões para a categoria profissional pelo país afora, a ocupação dos espaços representativos nas políticas públicas, assim como a interlocução com as esferas governamentais e os movimentos sociais. A título de informação, foi lançado agora, no dia 20 de junho, o Movimento Estratégico pelo Estado Laico – MEEL, constituído pelo CFP e por diversas organizações sociais, que considero uma ação importante e que pode se tornar eficiente nesse enfrentamento. Aproveito para também informar que a Asociación Latinaomericana para la Formación y la Enseñanza de la Psicologia divulgou, agora, um manifesto público criticando o projeto da “cura gay”.

O Sistema Conselhos de Psicologia tem se pautado, há anos, pelo compromisso social da Psicologia e pela defesa dos direitos humanos. Ele tem se posicionado publicamente e enfrentado todas as tentativas da imposição de uma moral privada, de concepção religiosa, que pretende subjugar a livre expressão dos grupos ditos minoritários e cercear as subjetividades ditando comportamentos. Também estamos alerta para algumas ações que tem buscado inserir concepções religiosas no ensino da Psicologia em algumas instituições de ensino superior. Claro que não há problema que psicólogos professem qualquer credo ou fé, mas não devemos e não podemos aceitar manobras no sentido de se constituir uma “psicologia religiosa”.

Samyra Assad:  O que você considera como irredutível nisso tudo?
Ricardo Moretzsohn: Considero irredutível e fundamental defender a laicidade do Estado que deve ser entendida como princípio pétreo e é sob essa base, segura e inquestionável, que se assenta a igualdade de direitos aos diversos segmentos da população brasileira, cuja extraordinária diversidade cultural e religiosa, uma das maiores do planeta, constitui um formidável potencial para a resolução de inúmeros problemas da sociedade contemporânea.

Creio que sem esse princípio a nos orientar, colocamos em risco o pacto civilizatório conquistado pela humanidade. E aqui recorro ao ensinamento de Rousseau que nos aponta: “Nenhum homem tem autoridade natural sobre o seu semelhante e, uma vez que a força não produz nenhum direito, restam as convenções como base legítima de toda autoridade entre os homens.”

Ao defender a laicidade predisponho-me a fazer um enfrentamento contra o perigo fascista do fundamentalismo religioso que, acredito, carrega em si uma essência nefasta e sinistra para a vida de todos nós. Preocupa-me, principalmente, a possibilidade de um cenário futuro onde os meus netos tenham que sair de casa com uma bíblia debaixo dos braços para não serem apedrejados...

Samyra Assad: Ok, Ricardo! Em nome da Escola Brasileira de Psicanálise e da sua comissão que compõe o “Observatório sobre a Regulamentação da Psicanálise”, agradeço-lhe por esta entrevista. 
 Belo Horizonte, 23 de Junho de 2013.

 

 

1 Entrevista concedida a Samyra Assad (samyra@uai.com.br), membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, por ocasião da atual situação política no Brasil e seus desdobramentos nas esferas clínicas e sociais, bem como por ocasião da preparação do Colóquio a ser realizado pela EBP, intitulado como “Psicanálise, Religião”, com data e local a serem definidos.
2 Ricardo Moretzsohn foi Presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRPMG). ricmoret@gmail.com