Sérgio Laia

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Sérgio Laia

 

O desabonamento do DSM-5 pelo National Institut of Mental Health (NIMH) - considerações lacanianas

 

Em torno de umas três semanas antes da publicação oficial do DSM-5,  quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o National Institut of Mental Health, conhecido mundialmente pela sigla NIMH, o desabona devido à falta de validade científica do que nele se propõe1. Se Borges ainda estivesse vivo, talvez encontrasse nesse gesto de recusa a ocasião de escrever um conto em que o caminho pelo qual esse importante Instituto se distancia da American Psychiatric Association (APA), promotora do DSM, se bifurcaria nesse outro caminho, que vimos se abrir meses atrás, pelo qual um Papa se afasta, em vida, de seu próprio Pontificado. Afinal, se a renúncia de Bento XVI se articula à sua impotência frente às querelas e contradições que estilhaçam a Igreja, a desautorização do NIMH com relação ao DSM-5 não é menos provocada pelos conflitos que a APA não conseguiu gerir ao longo da formulação dessa nova versão.


Como venho investigando, há uns 5 anos, pautado na psicanálise de orientação lacaniana, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura), a produção do DSM-5, localizaria, a princípio, três antecedentes que me parecem justificar o desabonamento do DSM-5 pelo NIHM:

  • essa nova versão se propunha, desde o início, a introduzir, no diagnóstico dos transtornos mentais uma perspectiva dimensional, isto é, concebê-los em suas diferenças não apenas em termos de presença ou de ausência de determinados “sintomas”, mas também como diferenças de intensidade de um determinado “sintoma” em diferentes categorias. Assim, a compulsividade, por exemplo, pode variar de intensidade no Transtorno Obsessivo Compulsivo (T.O.C.) e em um Transtorno Alimentar como a Bulimia ou como a Anorexia. Ao mesmo tempo que essa perspectiva dimensional aproxima o diagnóstico dos transtornos mentais do que, em diagnósticos médicos não-psiquiátricos, podemos encontrar nas variações do colesterol ou da pressão sanguínea em diferentes doenças orgânicas, a ausência de marcadores biológicos específicos dos transtornos mentais aproximará o DSM-5 mais da psicologia do que da psiquiatria porque é na psicologia, especialmente no campo dos testes de personalidade, que o uso de dimensões na produção de escalas de comportamento e na aferição de diagnósticos tem um uso considerado, por defensores do DSM-5, mais comprovadamente científico. O desabonamento do DSM-5 pelo NIHM me parece pretender realizar o velho sonho da psiquiatria de se efetivar teórica e praticamente como especialidade médica e, portanto, distante do campo instável, demasiado humano e pouco orgânico da psicologia, mas, como Jacques Lacan já nos ensina desde 1946, a realização desse sonho, quando destitui a dimensão da linguagem e a “insondável decisão do ser”2 que marca o que é humano, acaba por diluir a psiquiatria no âmbito da neurologia.

  • No final do ano passado, a APA publicou em seu site dedicado ao DSM-5 (www.dsm5.org) uma espécie de “rascunho” da versão que será publicada oficialmente no final deste mês. Entretanto, esse rascunho logo foi removido desse site, pela própria APA, para, nos termos dessa Associação, “evitar confusão ou uso de categorias ou de definições obsoletas”, o que já me parecia apontar para os conflitos que ela não estava conseguindo gerir. Não menos digno de nota é o fato de que, até o momento em que termino de redigir estas considerações, não há nesse site o mínimo pronunciamento da APA com relação ao desabonamento sustentado pelo NIMH quanto ao DSM-5.

  • No início deste ano, Joel Paris, Professor de Psiquiatria da McGill University do Canadá publica, influenciado e chancelado por Allen J. Frances (um dos principais responsáveis pelo DSM-IV e crítico da quinta versão dessa Manual), o livro The intelligent clinician’s guide to DSM-5, editado pela prestigiosa Oxford University Press3. A leitura desse livro ressoa, em muitas passagens, as razões apresentadas por Thomas Insel, Diretor do NIMH, para desabonar o DSM-5 por sua falta de validade científica. Ainda assim, parece-me haver uma discordância entre eles: enquanto Joel Paris sustenta que o DSM-5 apresenta proposições que terão mais ressonância entre os pesquisadores do que entre os clínicos, o ponto de vista de Thomas Insel é de que essa nova versão terá até bastante aplicabilidade entre os clínicos, mas é de pouca ou nenhuma valia para os pesquisadores. Esse tipo de discordância evidencia a Babel na qual a psiquiatria se encerrou. Como o que teria, segundo Thomas Insel, alguma validade clínica pode ser invalidado pela pesquisa ou mesmo não ter qualquer valor para ela? Como o que teria, segundo Joel Paris, algum alcance no âmbito da pesquisa poderia ter pouca aplicabilidade no âmbito da clínica?

O desabonamento do DSM-5 pelo NIMH não deixa de ser surpreendente, mas, no que concerne à psicanálise de orientação lacaniana, ele só vem reiterar o desabonamento que o DSM, desde a versão III, sustenta quanto ao inconsciente e à própria psicanálise. Trata-se de um desabonamento bem diferente daquele que Jacques Lacan nos ensina ler em James Joyce4. Afinal, o desabonamento do inconsciente nesse escritor irlandês não se faz sem todo um jogo (e mesmo um gozo) com a linguagem enquanto que, para Thomas Insel, o NIMH recusa o DSM-5 para fazer com que a pesquisa em psiquiatria possa lograr marcadores biológicos para os transtornos mentais e, nesse viés, seguir os mesmos passos daqueles que pesquisam, diagnosticam e tratam o câncer. Assim, se a perspectiva dimensional visada pelo DSM-5 tem as taxas de colesterol e os níveis de pressão sanguínea como uma referência a ser conquistada e praticada no âmbito dos transtornos mentais, o que tem acontecido como o câncer passa a ser, se posso dizer assim, a grande inspiração para o NIHM. Do ponto de vista da gravidade dessas referências escolhidas pelos defensores e pelos críticos do DSM-5 ou mesmo da disjunção que Thomas Insel e Joel Paris fazem entre clínica e pesquisa, permito-me dizer que se vai de mal a pior.
Para o enfrentamento dessa escalada rumo ao pior, contamos, na psicanálise de orientação lacaniana, com este esforço que Jacques-Alain Miller ressaltou em “Angústia constituída e angústia constituinte”: reduzir o hiato entre teoria e prática, dedicando-nos aos relatos de casos clínicos5. Afinal, se “a única teoria que nos interessa é a teoria da prática”6, tomando distância do que sustentam (não sem alguma oposição) Thomas Insel e Joel Paris, me parece possível igualmente afirmar que, para nós, a pesquisa é a pesquisa da prática. É com essa rigorosa e viva pesquisa da prática que a psicanálise de orientação lacaniana poderá abordar o pior que tanto o DSM-5 proposto pela APA quanto seu desabonamento pelo NIHM vão disseminar nos caminhos (e descaminhos!) que eles passam a fazer bifurcar em nosso mundo.


1 Ver o texto “Transforming diagnosis”, redigido por Thomas Insel e postado em seu Blog como Diretor do NIHM (acesso em 11 de maio de 2013): http://www.nimh.nih.gov/about/director/index.shtml

2 LACAN, J. (1946/1998). Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 152-194

3 PARIS, Joel (2013). The intelligent clinician’s guide to DSM-5. New York: Oxford University Press.

4 LACAN, J. (1975-1976/2007) O seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

5 Disponível no seguinte site (acesso em 11 de maio de 2013):
http://www.lacan.com/jamsem2.htm

6 Cf. passagem do texto de Miller citado na nota 5.