EBP Debates #012

 

Editorial

 Frederico Feu e Paula Borsoi

 

Neste número de EBP-Debates, damos continuidade à reflexão proposta na última edição, perguntando aos nossos debatedores: “Como você avalia hoje a inserção da psicanálise no campo da saúde mental?”


Nossa intenção é mapear, minimamente, o que pensa a comunidade analítica, seja através dos membros da EBP que atuam no campo da saúde mental, seja através de colaboradores próximos à psicanálise que ocupam cargos e funções neste campo.


São evidentes as rápidas transformações, e as inovações que afetam hoje a prática em saúde mental. O psicanalista não poderia ser indiferente a estas transformações. Mas, se os discursos que imperam e comandam as políticas de saúde mental, muitas vezes excluem referências mais claras à psicanálise, o psicanalista sabe que sua inserção neste campo depende, sobretudo, de sua prática e de sua ética, junto àqueles que o demandam.


Agradecemos a Durval Mazzei, Giovanna Quaglia, Iordam Gurgel, Mônica Hage e Veridiana Marucio, por suas valiosas contribuições.

 

Boa leitura!


 

Comentários:

 

Durval Mazzei (SP)

Trabalho em um grande hospital em São Paulo que inclui ambulatório, hospital-dia e enfermaria fechada. Trata-se de um serviço tradicional que conta com todas as áreas relacionadas à prática psiquiátrica: setores de Psicologia, Assistência Social, Terapia Ocupacional e Interconsulta. Além do mais, forma médicos-residentes há pelo menos 40 anos.


Estas características tornam a inserção da Psicanálise muito particular, pois ao psicanalista cabe a demonstração da viabilidade do discurso analítico. Viabilidade como leitura da clínica e viabilidade como prática terapêutica individual e grupal. Assim, os psicanalistas que trabalham no hospital inserem-se por meio de Seminários (um dirigido por mim; outro por Maria Lúcia Baltazar), por meio das apresentações de pacientes, por meio da supervisão da clínica ambulatorial. Em todos estes espaços a preocupação fundamental é a exploração tanto da singularidade de cada sujeito (‘paciente’) quanto da insuficiência do poderoso discurso neurobiológico. E, não obstante o apelo que este discurso causa nos jovens médicos, é bastante interessante observar o nascimento do interesse da clínica sob transferência e o desenrolar do interesse pelo saber do psicanalista.


            Durval Mazzei é Psicanalista, aderente da EBP, Mestre em Psiquiatria e trabalha no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.

 

Giovanna Quaglia (GO/DF)

Ao pensar na saúde pública brasileira, o uso do termo "saúde mental", está no campo do Sistema Único de Saúde. O SUS nos coloca no único, temos a ideia de saúde, pela universalização ao acesso da oferta de saúde para todos. Pensamos em serviços, estruturas de rede, que atenderiam de maneira igualitária às demandas da população. Colocamos a saúde mental na quantidade de equipamentos, nas vagas em leitos de hospitais gerais.O sofrimento psíquico passa a ser avaliado por indicadores.O paradigma "saúde/doença" nos conduz ao empuxo da normalidade, do bem estar, da felicidade. Os prontuários são preenchidos pelas classificações dos manuais de transtornos mentais, com suas listas e listas de sinais sintomas. A saúde mental vira mercadoria simbólica pela ideia de cura, via farmacologia. Do “todos doentes”, vamos ao “todos medicados”.


O que observo, é que não existe lugar para o sofrimento, para o mal estar, para as diferenças. A saúde mental vai se tornando um sistema burocrático, complexo e idealizado. Do discurso da "saúde pra todos", vai surgindo nas equipes, um desespero que diz :“não vamos dar conta”. E é ai, entre o stress da quantidade de demanda, do não saber o que fazer com tanta gente “louca”, do medo do incontrolável, do querer calar pela medicação ou pela contenção, que nós psicanalistas, podemos destoar e não recuar. Com isso vejo que podemos deixar que o barulho, a agitação, a confusão existam. Podemos deixar as portas realmente abertas, para que as várias demandas entrem e se manifestem. Ouvir, olhar, para além dos consultórios, para além dos muros. Fazer pulsar a vida e a diversidade que está diante de nós.
O psicanalista na equipe, na supervisão, no debate político, cria incômodo para as verdades totalizantes, questiona a igualdade, a universalidade, a medicalização, a classificação. Na demanda agitada dos vários casos e prontuários, temos a possibilidade de inserir o que é possível para cada um. Do “todos doentes” do sinal sintoma, coloca-se um corte de sentido, onde o sintoma tem para cada um, história, vida, palavras, delírio. Ao duvidar da ideia de normalidade, de cura para todos, fazemos existir a dor de ser UM.


Avalio que nossa inserção muitas vezes é solitária, isolada e difícil. De minha parte, seja atendendo em um serviço, como supervisora em saúde mental no Distrito Federal, como docente de psicopatologia em um curso de psicologia ou atuando no campo da política pública no Governo Federal, o que tento causar via discurso psicanalítico, é esse revelar de uma vida vivida em sua singularidade.
Por fim finalizo com uma indagação feita por um colega francês em 1999, ocasião em que eu trabalhava na UNODC: "O que um psicanalista faz nas Nações Unidas?"


Respondi: Faço a diferença!


Giovanna Quaglia é psicanalista, participante da Delegação Geral GO/DF, supervisora na área de saúde mental no Distrito Federal, professora adjunta de psicopatologia no Centro Universitário de Educação Superior de Brasília. Atualmente é Conselheira Nacional de Assistência Social. Trabalhou na Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, na Secretária Nacional de Politica de Drogas e nas Nações Unidas para o controle de drogas.

 

Iordan Gurgel (BA)

A política lacaniana é pensar que o inconsciente é a política, noção que implica na relação do sujeito com o Outro, o laço social, os discursos e, portanto, com a saúde mental. Não retroceder frente à psicose, é um mandato político que impele o analista em direção ao trabalho neste campo. A contribuição da psicanálise passa a ser relevante no que se refere ao tratamento das psicoses: introduzir o sujeito, fazê-lo responsável, restaurar sua iniciativa, a espontaneidade comprometida pela doença e anulada pela segregação institucional, e devolver-lhe a possibilidade de escolha diante dos significantes mestres que o condicionam.


Na atualidade, no entanto, nos defrontamos com um agravamento dessa relação, devido aos caminhos que o discurso da ciência e do capitalista tem trilhado. A psiquiatria biológica vem divulgando várias descobertas científicas, novos psicotrópicos (e novos negócios da indústria farmacêutica), informações sobre a função dos neurotransmissores e das sinapses, criando modelos biológicos para explicar as diversas patologias. Em consequência, várias modificações ocorreram na psicopatologia, na semiologia, na  terapêutica psiquiátrica e na ética, dificultando a ação da psicanálise.


Sabemos que é preciso nos lançar no campo institucional, tomando sempre o ‘mental’ como um nome para a falha que cada sujeito experimenta, por ter seu corpo afetado por palavras. Isto encontra pouco ou nenhum eco no discurso psiquiátrico que, malgrado o movimento de reforma e humanização de sua prática, continua tomando o modelo médico como referência. Apesar do indissociável e do inconciliável entre medicina e psicanálise, há um campo próprio de aplicação da psicanálise no que resta daquilo que a saúde mental não conseguiu extrair um saber, naquilo que há de real no impossível de suportar.


Por oferecer um método de abordagem clínica, um tratamento possível e conceitos que encontram aplicação nas neuroses, psicoses e perversões, além de contribuir com um modelo conceitual e de investigação psicopatológica, a psicanálise abre-se a um diálogo com a saúde mental, que não deve e nem pode encerrar-se nas ideologias de seus gestores e praticantes.


A questão não é de oposição ou complementaridade e sim, que a psicanálise possa oferecer uma abordagem que distinga a singularidade do sujeito, acolha o impossível de suportar e intervenha no lugar onde a saúde mental se defronta com a dimensão subjetiva do paciente, e se dá conta de que há um real.Acreditamos ser possível pensar que o analista, nestes casos, seja capaz de criar um espaço, para fazer operar a dimensão subjetiva do indivíduo, acolhendo a demanda de saber, suportando os outros discursos e, quando possível, mantendo a especificidade da psicanálise.


Esta posição tem consequências, e a nossa experiência de praticar a psicanálise no campo da saúde mental, tem dado provas e resultados práticos e específicos, que apontam na direção de uma eficácia terapêutica do discurso analítico. Este diminui o uso da medicação, o número de internações, a frequência das crises, o consumo de drogas, além da melhora sintomática, da capacidade laborativa e de melhor aceitação do tratamento.


Talvez o mito de Sísifo bem ilustre a relação impossível entre a psicanálise e a saúde mental: é uma tarefa interminável, mas devemos manter sempre a esperança.


Iordan Gurgel éAME da AMP/EBP e foi coordenador de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia.

 

Mônica Hage (BA)

“É preciso avançar no campo social, no campo institucional e nos preparar para uma mutação na forma da psicanálise.  Sua verdade eterna, seu real trans-histórico não serão modificados por esta mutação. Ao contrário, eles serão salvos, se nós apreendemos a lógica dos tempos modernos..”(Jacques Alain Miller. Le neveu de Lacan, p. 124).

 

Acho que essa passagem de Miller é bastante atual. Será um pensamento otimista? Não concebo, hoje, uma prática na minha vida que assim não seja. Enquanto praticante da psicanálise no campo da saúde mental, preciso crer que este campo, ainda que trate do impossível, já que a saúde mental “nela não cremos”, não nos reduza à impotência. É preciso assumir uma posição daquele que participa dos debates da sociedade, do mundo, sendo sensível a todas as formas de segregação. Tomar partido de maneira ativa, mas sabendo o justo lugar, distanciado do discurso do mestre, do discurso normativo. A grande sutileza desta posição, está em saber participar com um “dizer silencioso”, que é diferente do silêncio.


Atuando no ambulatório infanto-juvenil de um Hospital Psiquiátrico, enfrento no dia a dia, a situação de manejar de um lado, a demanda de pais, escolas, conselhos tutelares, convencidos a “psiquiatrizar” as emoções de cada momento da infância e da adolescência (a “medicalização da infância”) e de outro lado, o desafio de sustentar o tratamento analítico, considerando a implicação subjetiva da criança e do adolescente, privilegiando o saber próprio que cada um deles produz.


Se o analista souber ajudar a civilização a respeitar a articulação entre normas e particularidades individuais, este já será um bom caminho.


O que a Psicanálise pode ofertar, nos tempos modernos, ao campo da saúde mental? A "Psicanálise", enquanto mais um campo de saber, possivelmente muito pouco. Constato isto também enquanto preceptora de Residência de Psicologia Clínica e Saúde Mental no Hospital onde atuo, cujo referencial teórico é a Psicanálise. Se cada um não for “tocado” por ela, capturado de maneira muito particular, nada conseguirá transmitir, produzir, intervir, como contribuição para o campo da saúde mental.


“Encontrar um analista não consiste em encontrar um funcionário do dispositivo; mas sim, alguém que possa dizer a um sujeito, em um momento crucial de sua vida, algo que permanecerá inesquecível.” Esta frase de Laurent nos leva a pensar que, para isso, é preciso que o praticante tenha levado a sua análise até certo ponto.


Penso então, que a inserção da Psicanálise no campo da saúde mental depende muito mais da posição analisante do que da Psicanálise, e de um desejo decidido de intervir junto aos impasses da época atual.

 

Mônica Hage é membro da AMP/EBP, trabalha como psicóloga no ambulatório infanto/juvenil do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira (Salvador/Ba), onde é também preceptora da Residência em Psicologia Clínica e Saúde Mental.
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Referências:

Laurent, E. Psicoanálisis y Salud Mental, 2000.

Miller, J-A. Extratos do Relatório da Associação do CIEN, publicado no Anuário do CIEN-Brasil 2011-

2012.

 

 

Viridiana Marucio (SP)

O que dizer, brevemente, sobre a saúde mental na atualidade?
No Brasil, hoje, a saúde mental apresenta objetivos claros e ideais muito difundidos, a respeito da proposta antimanicomial, da reabilitação psicossocial  e da não exclusão do cidadão portador de doença mental. Nesse campo temos uma clinica que se constrói a partir dos múltiplos discursos, e uma vasta possibilidade de interlocução social e política. 
A psicanálise, como um dos discursos presentes no campo da saúde mental, não sem estranhamento e contradições, beneficia-se deste debate, e faz avançar sua teorização sobre a clinica contemporânea, a partir do que Lacan propõe no seu ultimo ensino, levando até o final, as consequências do Um sozinho.

 

Viridiana Marucio é membro da AMP/EBP e Mestre em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII.