EBP Debates #005

 

Editorial

Autismo: psicose ou não? (continuação)

Por Ana Martha Maia

 

Na edição de outubro, o DR Debates lançou a pergunta “Autismo: psicose ou não?” e, a partir das citações de Rosine e Robert Lefort e de Yves Claude Stavy, promoveu uma conversa entre colegas da EBP e da AMP. Tendo em vista a complexidade do tema, novas contribuições chegaram e serão aqui publicadas, com o intuito de manter em aberto o debate!

 

 

 

 

 

Comentários:

 

Gustavo Stiglitz

O autismo testemunha a epopeia que leva a cabo cada ser falante, no início da vida: articular seu ser de vivente com alguns significantes da catarata de lalíngua, de maneira tal que tenha um corpo e uma elocubração de saber própria sobre lalíngua. O sujeito autista mostra o fracasso da operação, bem como a sua complexidade.


No final da análise, também nos encontramos com o testemunho de como cada um fez para sair do autismo do gozo. Neste sentido, o autismo seria o grau zero, antes que cada um “invente a lalíngua que fala” (Lacan, Seminário 24) e, de alguma maneira, todos somos autistas, cada um com sua solução sintomática.


Por outro lado, seguindo as indicações de R. e R. Lefort, mais as precisões atuais de J-C. Maleval e É. Laurent, o autismo se apresenta como uma estrutura fora da psicose. O que faz com que alguns permaneçam na recusa da voz como veículo da enunciação e que, por esta recusa o corpo que se produz careça de buracos que localizem o gozo, retornando este sobre suas bordas? Insondável decisão do ser, diremos. Nome dado inicialmente por Lacan, ao real contingente.


A psicanálise se ocupa do sintoma – aqui se espera cernir o real, não no cérebro – e, por essa via, é a oportunidade de tocar o necessário que se produz no real contingente. Mas cuidado! Se o furor sarandi já tinha sido visto por Freud como um problema para o trabalho analítico, isto é especialmente observável no autismo. Dona Williams o explica melhor que ninguém: é preciso ser um guia, mas aquele que vai atrás do sujeito.

 

Original em espanhol

El autismo testimonia de la epopeya que lleva a cabo cada ser hablante al inicio de la vida: articular su ser de viviente con algunos significantes de la catarata de lalengua, de manera tal que tenga un cuerpo y una elucubración de saber propia sobre lalengua.


El sujeto autista muestra del fracaso de la operación, a la vez que su complejidad.


A la salida del análisis, también nos encontramos con el testimonio de cómo hizo cada uno para salir del autismo del goce.


En este sentido, el autismo sería el grado cero antes de cada uno “invente la lengua que habla” (Lacan, Seminario 24) y, de alguna manera, todos autistas, cada uno con su solución sinthomatica a cuestas.
Por otro lado, siguiendo las indicaciones de R. y R. Lefort, más las precisiones actuales de J. C. Maleval y E. Laurent, el autismo se presenta como una estructura por fuera de la psicosis. ¿Qué hace que algunos permanezcan en el rechazo de la voz como vehículo de la enunciación, y que, por ese rechazo el cuerpo que se produce carezca de agujeros que localicen el goce, retornando éste sobre sus bordes?
Insondable decisión del ser, diremos. Nombre temprano en Lacan del real contingente.


El psicoanálisis se ocupa del síntoma -  ahí se espera cernir un real, no en el cerebro – y, por esa vía, es la oportunidad de tocar lo necesario que se produce a partir del real contingente.

 

Pero cuidado! Si el furor sanandi ya estaba en la mira de Freud como un problema para el trabajo analítico, esto es especialmente notable en el autismo. Dona Williams lo explica mejor que nadie: hay que ser un guía, pero uno que vaya por detrás del sujeto.

 

Heloisa Prado R. da Silva Telles

Penso que podemos avançar neste debate tomando o espectro do autismo como um profícuo campo de investigação, como enfatizou Cristina Drummond (DR outubro 2013), e tal como pudemos realizar a propósito do tema das psicoses ordinárias. Nesta perspectiva, os efeitos de formação, tal como pude recolher do trabalho em cartel onde tinha por questão a distinção entre autismo e psicose, podem ser o de elucidar alguns conceitos da própria psicanálise lacaniana. Assim, as especificidades no autismo, tão claramente expostos pelos colegas na edição anterior do DR que abriu este debate, nos ensinam acerca dos modos possíveis de tratamento do gozo e da língua, o particular uso da linguagem e dos objetos, o quanto a enunciação articula-se à extração do objeto voz (o que justamente não se cumpre no autismo). Por exemplo, retomando as operações de alienação e separação (uma das referências para Rosine e Robert Lefort) podemos esclarecer, via autismo, os dois campos propostos por Lacan: o do ser e do sentido. Uma vez produzida a operação de alienação, nos diz Lacan, o sujeito surge no lugar onde antes estava o ser - o ser, portanto, como prévio ao sujeito (Lacan, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. Rio de Janeiro: Zorge Zahar, 1985. p. 200 e p. 225-226): no autismo, o não consentir com a alienação aos significantes do campo do Outro (S1-S2), ou seja, a não escolha pelo campo do sentido implica a petrificação no S1, o ser vazio do sujeito. Vazio de sentido, mas localizado no que poderíamos entender como campo do gozo. Ainda, com a perspectiva do Um do gozo, tal como J.-A. Miller elucida a partir do ensino de Lacan, abrimos o campo de investigação até o ponto destacado por Yves Claude Stavy, em sua conferência em setembro de 2013 na EBP - São Paulo): desta junção entre um pedaço de língua e o vivo de um corpo, temos uma marca instransponível de uma pessoa a outra; o encontro deste autismo do lado do corpo do qual se goza é o “que me deixa absolutamente diferente em relação ao outro, me deixa absolutamente diferente de mim mesmo”.

 

Nohemí Brown

Esta questão surge frequentemente no trabalho clínico com autistas, justo quando uma criança considerada autista, começa a encontrar saídas ao seu autismo. Penso que esta pergunta se abre porque nas saídas que o sujeito autista encontra, algo da dimensão do Outro se faz presente. Sabemos que mesmo na esquizofrenia e, ainda mais, na paranoia existe esta referência ao Outro. Mas, como indicaram R. e R. Lefort, no autismo não há a dimensão do Outro, nem do objeto; portanto, o sujeito fica reduzido a sua dimensão de sofrimento extremo a causa do gozo ao qual não tem acesso (1).
Desde o ponto de vista estrutural, pode-se pensar em uma distinção entre autismo e psicose, mas desde o ponto de vista clínico, como nossa orientação é o gozo, esta distinção não se torna fundamental. Assim podemos acompanhar a indicação de Stavy.


Neste sentido, me parece que justamente é a dimensão clínica que nos ensina que a aposta é feita nos signos do gozo que essa criança manifesta, seja na sua incessante metonímia de palavras sem sentido, ecos, sonorização ou na sua relação com determinados objetos que ela escolhe. Nossa aposta, desde a psicanálise, parte da suposição de que nas invenções, a partir desses signos de gozo de lalangue, há um sujeito. Assim, ao nos fazermos parceiros da criança autista, buscamos que nessas invenções se situe um sujeito e constitue, de alguma maneira, a dimensão do Outro.

 

1Lefort, R. e R. 2000. “A propósito del autismo”. In: Carretel, n. 3. Madri: NR-Cereda, p. 72.

 

Eneida Medeiros Santos

A experiência da clínica com crianças autistas introduz uma questão importante e controversa relativa ao diagnóstico diferencial em psicanálise, a de saber se o autismo está situado na estrutura psicótica ou se deveria ser distinguido dela. Sem decidir por um ou por outro polo desse binômio, podemos estabelecer relações entre eles a partir da forma como se constitui em ambos a imagem do corpo próprio.


No autismo, as bordas das zonas erógenas do corpo e consequentemente, a conformação de uma imagem unificadora e a atribuição de um corpo próprio não se efetivaram, daí a ideia de um corpo maquinizado ou simplesmente transformado em um prolongamento do corpo do Outro. Não obstante, a problemática do corpo no autismo não se restringe a pura imagem especular. A inscrição do significante fálico também não foi possível e as funções do corpo não foram tocadas pelos significantes provindos do Outro, não encontrando então uma representação na linguagem.

 

Isso explica a correlação existente entre a distorção do espaço e os fenômenos de ecolalia e ecofrasia.


Para E. Laurent (1), quando a imagem produzida pelo estádio do espelho passa à categoria de real, no momento em que Lacan introduz o modelo ótico, cria-se a oposição entre uma imagem do corpo real e uma simbólica. Na esquizofrenia, devido à foraclusão do NP, existe uma dificuldade na articulação da imagem real do corpo com sua captura no imaginário, o que demonstra ser mais uma questão de domínio do órgão do que de circunscrição do buraco. É essa caída da imagem virtual sob a real que é determinante no surgimento dos efeitos de despersonalização na psicose, diferentemente da não atribuição do corpo próprio, como ocorre no autismo.

 

1Laurent, E. Hay un fin de analisis para los niños. Colección Diva. Buenos Aires, 2003

 

Maria do Rosário do Rêgo Barros

Situar as coordenadas de uma "estrutura autista" como fizeram Rosine et Robert Lefort, é apostar nas diversas modalidades de construção sintomática dos sujeitos ditos autistas e acolher as invenções que lhes permitem suportar o laço social, sair do isolamento. A questão que se coloca é de como ser parceiro da forma que cada um encontra para "introduzir um buraco em um mundo real no qual não falta nada", como indica Éric  Laurent em seu livro " A batalha do autismo "  e "aliviar essas crianças produzindo ausência, o que lhes dá uma chance de escrever ou de falar " . Uma batalha a ser sustentada pelos analistas, juntamente com os autistas e suas famílias, e os profissionais que  os acolhem .  

 

Por Tânia Abreu

A partir da minha experiência clínica, vejo que o autismo não é uma psicose. Um ponto de partida que pode dar sustentação a esta afirmação são os usos do corpo na psicose e no autismo.


No primeiro caso, o corpo é usado para sustentar um vazio. No texto de Augustin Menard "Quando o hábito faz o eu: o corpo na psicose”,ele relembra que o “habito vazio faz suplência imaginária, não de forma especular". Faz ego como sinthoma lembrando Joyce e sua falta de sensação corporal, quando sofreu sua famosa surra.


JAM nos diz que o corpo no psicótico sustenta a imagem especular e o a sem nada embaixo. Segundo Menard, trata-se de um imaginário tornado real/realizado, e não do corpo no espelho. O corpo aqui não se reduz à imagem especular. Verificamos, de todo modo, a presença do Outro.

 

No segundo caso, o do autismo, apesar de estar na linguagem, dizemos que não há Outro para o autista, o que impede o circuito pulsional e consequente a constituição de um corpo. Não há mutação do real em significante. Dizemos que não há corpo no autismo no sentido imaginário, pois ele é todo invasão de gozo. Todo o trabalho na clínica com o autista é a tentativa de construir uma borda que localize o gozo, afastando-o do corpo. Em termos clínicos, verificamos que o autista não tem noções de dentro e fora, decorrendo daí que se fale de "foraclusão do buraco", em oposição à psicose na qual se fala de "foraclusão do Nome do Pai".

 

Para concluir, pensemos na "sensação estranha” de Donna Williams e na "falta de sensação corporal” de Joyce: o que diferencia uma da outra? Parece que no primeiro caso o que se dá é uma prova da falta de incidência do significante no corpo, como nos salienta Maleval. Demonstração de um simbólico tornado real/realizado?


No segundo caso, parece mais tratar-se de um imaginário tornado real/realizado? 


Há em ambos os casos, entretanto, a destituição da ideia de que o corpo se reduz à imagem especular. É preciso pensá-lo na dimensão do furo e posteriormente do toro.