EBP Debates #005

 

Editorial

Autismo: psicose ou não?

Por Ana Martha Maia

 

O alargamento do espectro dos autismos, evidenciado na recente nova edição do DSM, promove uma “epidemia” contemporânea. Podemos dizer que a “Grande causa nacional” não é apenas francesa, pois toca, de diferentes formas, em todos que lidam cotidianamente com estes sujeitos, desde a família, aos profissionais que os recebem nas instituições.
A relação do sujeito autista com a linguagem faz enigma e convoca os analistas a buscarem o que há de mais irredutível no singular de cada um. O DR Debates convidou colegas do Campo Freudiano para enviarem breves notas sobre a questão Autismo: psicose ou não?, a partir de preciosas contribuições de Rosine e Robert Lefort  e de Yves Claude Stavy, que esteve recentemente no Brasil, aos quais rendemos, assim, homenagem pelo rico trabalho desenvolvido.

 

 

Rosine e Robert Lefort

 

"La question peut se poser d'une 'structure autistique' qui, sans se présenter comme un tableau de l'autisme proprement dit, l'évoque par ses éléments structuraux dominants et très nettement repérables. Cette structure viendrait en quatrième parmi les grandes structures: névrose, psychose, perversion, autisme. L'examen de cas historiques, politiques, littéraires nous y conduira". Rosine e Robert Lefort, La distinction de l'autisme, p.8.

 

Podemos colocar a questão de que há uma ‘estrutura autística’ que, sem se apresentar como um quadro de autismo propriamente dito, o evoca pelos seu elementos estruturais dominantes e muito claramente localizáveis. Esta estrutura viria como uma quarta entre as grandes estruturas: neurose, psicose, perversão e autismo. O exame de casos históricos, políticos, literários nos conduziria à isso.”

 

 

Yves Claude Stavy

“Aqui estamos falando de encontro com ‘o outro que é si mesmo’, fora do sujeito, de um corpo marcado por um pedaço de língua ouvido. Isto é transclínico, faz voar aos pedaços a pertinência que se mantém do ponto de vista da clinica diferencial.”


Yves Claude Stavy - Encontro com a Clínica do Autismo.  EBP-Rio, 14/09/2013
Transcrição e tradução: Rachel Amim

 

 

Comentários:

 

Beatriz Udenio

Silvia Elena Tendlarz

EOL/AMP

Podemos assinalar brevemente algumas diferenças entre autismo e a psicose na infância. O autismo tem um início precoce, até os dois ou três anos, e permanece como uma modalidade de funcionamento singular. Por outro lado, o desencadeamento da psicose varia da infância à vida adulta, com momentos de abertura e fechamento, determinados por desencadeamentos e construção de suplências. Eric Laurent assinala diferenças quanto às formas de retorno de gozo: no Outro (paranoia), no corpo (esquizofrenia) e na borda (autismo). Não há corpo no autismo, em seu lugar se constitui uma neo-borda através do encapsulamento autista que não se confunde com a superfície corporal. Isso se diferencia da fragmentação corporal da esquizofrenia, ou dos fenômenos de vacilação imaginária e tratamentos delirantes da paranoia. No autismo, não há imagem especular, nem delírio, em seu lugar aparece o duplo real e as repetições, as condutas estereotipadas e o uso da linguagem que expressam a “iteração” da letra. Nas psicoses, os transtornos de linguagem dão conta da “cadeia furada”, efeito da foraclusão do Nome do Pai e do buraco na significação fálica: fenômenos elementares, automatismo mental, construção delirante, alucinações auditivas e positivação dos objetos voz e olhar. No autismo, a “foraclusão do buraco” (Laurent) produz um trabalho sobre os buracos e orifícios do corpo e, por outra parte, a alucinação pode aparecer como o “ruído integral de equívocos de lalíngua”. A não cessão do objeto vocal (Maleval) determina o rechaço da enunciação e seu uso particular da linguagem.

 

Rachel Amin

Rachel Amin

EBP/AMP

Entre os psicanalistas temos algumas leituras a respeito do autismo. Alguns analistas acreditam na indiferenciação inicial entre autismo e psicose. Há uma sintomatologia deste que pertencente à clinica da foraclusão do Nome-do-pai. Rosine e Robert Lefort não hesitam em considerá-lo como uma quarta estrutura. Miller escreve sobre a clinica do autismo como estrutura fundamental  e a configura como um ponto de partida quando se trata de compreender  o encontro do falasser com a lingua. Eric Laurent precisa que é necessário levar em conta a leitura de Jacques-Allain Miller sobre o UM do gozo no ensino de Lacan que possibilita uma descrição mais fina no campo dos seus fenômenos clínicos, colocando-nos em presença de algo mais especifico que a abordagem da psicose clássica ou atípica.


Frente às diversas leituras a respeito, podemos pensar com Maleval  que a sintomatologia da vontade de imutabilidade, a ausência ou pobreza dos fenômenos elementares, a ausência de desencadeamento e, sobretudo, a verificação de que o autismo não evolui para uma esquizofrenia, pode levantar a hipótese de uma autêntica estrutura subjetiva.


Maleval,J C, (2012) “Pourquoi l’hypothèse d’une structure autistique?”  in  Conversation clinique: À l’écoute de sautistes. Des concepts et des cas, Volume I, Conversations organisee par Union pour La formation em clinique analytique, Paris juin 2012, pag 46-73.
Lefort R et R “De lalangue a l’Autre ou de La jouissance préalable du UM du S1 au S2 de l”Autre, in  L’Autredubébé , Série de La Dècouverte freudienne – Quinziéme jounée d’étude du CEREDA, Presses Universitaire du mirail Vol XIII, septembre 1992, pag 5-24
Laurent, E. (2012)   “Les sujets autistes, leurs objets et leur corps” in  Conversation clinique: À l’écoute des autistes Des concepts et des cas, Volume I, Conversations organisee par Union pour la formation em clinique analytique, Paris, pag 33-45.
Miller, J-A. (2006-07) Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2010.

 

Cristina Drummond

Cristina Drummond

EBP/AMP

Essas duas referências parecem indicar duas maneiras distintas de ler a clínica do autismo e, apesar de parecerem diferentes, não são antagônicas. Elas indicam que o campo do autismo é um campo de investigação clínica e teórica na psicanálise de orientação lacaniana. Se tomamos como referência a foraclusão do Nome-do-Pai, seguramente pensamos que o autismo está incluído no campo das psicoses. Quando os Lefort propuseram o autismo como uma quarta estrutura, eles buscavam enfatizar sua distinção, ou seja, a maneira própria do autista tratar o gozo, o Outro, a língua. A investigação dos Lefort foi fundamental para romper com a separação entre a clínica da criança e a do adulto, demonstrando que a criança é um sujeito e que o menino do lobo era tão paranóico quanto Schreber. Havia autistas adultos. Nesse sentido, eles começam a interrogar a clínica das psicoses na infância, que era basicamente uma clínica da esquizofrenia, que nos fazia pensar que o autismo era um tipo de esquizofrenia precoce. Maleval segue essa orientação dos Lefort e nos indica que encontramos nesses sujeitos, para os quais a palavra é devastadora, um uso da instância da letra em sua relação com o campo da palavra que é distinto do campo da paranoia ou da esquizofrenia.


Esclarecer a estrutura não impede que o tratamento dos autistas revele soluções e invenções que não são aquelas que encontramos espontaneamente nesses sujeitos que estão constantemente a trabalho para lidar com o gozo da língua que lhes é insuportável. Vale lembrar que em psicanálise a clínica é sob transferência. Eles nos apresentam a impossibilidade de habitar a língua sem buscar reduzi-la a uma cifra e esvaziar a dimensão do equívoco. Nesse sentido, o autismo revela o traumático que é para todo sujeito o encontro com a língua e evidencia a relação fundamental que todo sujeito tem com o gozo enquanto que ele fala sozinho, enquanto que ele não passa pelo Outro. Miller formulou isso de bela maneira, dizendo que o sujeito encontra na experiência analítica seu estatuto de exilado do discurso do Outro. É por isso que Stavy pode dizer que sob esse ponto de vista o autismo é transclínico. Os relatos autobiográficos dos autistas assim como os relatos de tratamento desses sujeitos foram nos ensinando cada vez mais sobre suas maneiras próprias de lidar com a língua, muitas vezes sem o recurso da linguagem. O uso dos objetos, do duplo, dos intervalos, dos espaços, o esvaziamento do gozo da voz, a retirada do olhar, a posição de não enunciação, foram surgindo como modos próprios dos autistas enfrentarem sua foraclusão que Eric Laurent conseguiu precisar ser uma foraclusão do buraco. O recurso desses sujeitos não passa pelo empuxo à mulher, pelo delírio, pela ficção. Há para eles algo que não pode ser tratado pelos equívocos da língua.

 

Luciana Castilho de Souza

Luciana Castilho de Souza

Doutoranda do Departamento de Psicanalise da Paris VIII e intervenante no CPCT-Paris.

Ao nos referirmos à Conversação Clínica “A escuta dos autistas. Conceitos e casos”(1), poderíamos isolar alguns pontos cruciais. Para tal, partirei da intervenção de Eric Laurent intitulada “Os sujeitos autistas, seus objetos e seu corpo” e um dos pontos desenvolvidos por este sobre a especificidade do autismo. Justamente, em sua intervenção (2), Laurent evoca um uso específico da instância da letra em sua relação com o campo da palavra para os sujeitos autistas. Ora, vemos tentativas de reduzir os equívocos da língua ao silêncio, ou seja, a um cálculo da língua completamente separado do corpo. Porém, tais tentativas se dão não sem o isolamento de um objeto, seja pela via de um objeto-em-forma ou objeto-sem-forma. Ao nos determos a tais pontos não podemos deixar de evocar a hipótese emitida por Laurent em 1992, de que no autismo haveria o retorno de gozo sobre a borda. Neste sentido, ao articular língua – objeto – gozo, o autor nos indica algumas direções sobre a especificidade do autismo, porém com suas variedades e particularidades. Assim, a leitura que faz Jacques-Alain Miller sobre o Um do gozo no ensino de Lacan, parece ser essencial e fundamental no que tange aquilo que no autismo não se apaga: o Um do gozo. Porém, se partirmos do estatuto do Um do gozo a fim de tratar a especificidade no campo dos autismos, ou mesmo no campo das psicoses, seria válido também a seguinte proposição: “psicose(s): autismo(s) ou não?”

 

(1) Conversation clinique : A l’écoute des autistes. Des concepts et des cas, volumes preparatórios à Conversação UFORCA pela Universidade Popular Jacques Lacan animada por Jacques-Alain Miller. Paris : Maison de la Mutualité, 30 de junho de 2012, vol I. Inédito.
(2) C.f. O leitor pode também consultar o recente livro de Eric Laurent sobre a especificidade do autismo, a saber: A batalha do autismo: da clínica à política, publicada por Navarin, Le Champ Freudien, em outubro de 2012.

 

Bartyra Ribeiro de Castro

Bartyra Ribeiro de Castro

(EBP/AMP)

Em “A Distinção do Autismo”(1), Rosine e Robert Lefort sustentam uma estrutura específica para o autismo. Distinguem autismo e esquizofrenia constatando que o primeiro aparece desde o nascimento da criança, ao passo que o segundo depende de uma Spaltung. Outro elemento distintivo é quanto ao delírio: o autista não delira, ao contrário do esquizofrênico. Quanto à evolução, o esquizofrênico alterna períodos normais ou quase, contrariamente aos autistas.


Não há forclusão do Nome-do-Pai no autismo, mas, sim, uma falta mais radical – a ausência do Outro e suas conseqüências: um mundo sem castração (2), sem objeto e sem outra pulsão senão a de morte, em pleno funcionamento. “É da destruição que se trata, na falta de qualquer objeto não resta senão a pulsão de morte, pulsão fundamental que, sem imagem narcísica, exclui o amor, mas não o gozo”(3).
Rosine e Robert Lefort . La Distinction de l’Autisme. Ed. Seuil, 2007.
2 Idem, p.52.
3 Idem, p.54.

 

Paula Pimenta

Paula Pimenta

EBP/AMP

O autismo se diferencia da psicose. O modo como se apresentam os autistas e os esquizofrênicos já nos indica esse contraste. O esquizofrênico se apropria do corpo e da linguagem, ainda que de maneira vacilante. O autista, nem isso. Topologicamente, o esquizofrênico teve uma disposição de bordas em torno de um furo, o que lhe fez consistir um corpo. Sua dificuldade é a de conseguir compor, com seus órgãos, uma unidade corporal, contando com a linguagem como uma extimidade que, ao incidir sobre o corpo, possa se fazer órgão para ele. O uso que o esquizofrênico faz da linguagem denuncia que há uma fala, que passa de alguma forma pelo Outro.


As dificuldades do autista são mais radicais. Seu trabalho é o de conseguir engendrar uma superfície, delimitada por um furo; ou seja, um corpo. Os objetos autísticos se prestam a essa função de forjamento. A carência da fala, nos autistas, decorre das ausências do furo e da extração do objeto voz, e marca uma discrepância com a apropriação da linguagem feita pelo esquizofrênico. Mas não se trata aqui de um nível de progressão, e sim de uma forma de instauração do corpo e do Outro de onde decorre um modo muito particular de apreensão do mundo e de como manejá-lo.

 

Anamaria  Vasconcelos

Anamaria  Vasconcelos

Essa questão desperta muita polêmica e consequentemente divide os psicanalistas inclusive muitos deles, pertencentes ao Campo Freudiano. Segundo Rosine e Robert Lefort em o Nascimento do Outro, o autismo seria uma quarta estrutura distinta da psicose. Essa posição parece diferenciar-se da posição de Laurent ( Sociedade do Sintoma, 2007) quando em Notas sobre o autismo, refere que o mesmo está inserido na psicose, apontando a existência de um Outro com a ressalva de não haver barra.
Se considerarmos as diferentes formas de evolução que encontramos na clinica com crianças autistas, sabemos quão inevitável é nos depararmos com essa pergunta. Guiada pela ideia de um sujeito a advir, penso na possibilidade do autismo se encontrar em uma posição de impasse na subjetividade. O autista busca anular o Outro de maneira a recusar radicalmente sua presença, situação onde não cabe ao psicanalista recuar, mas antes, nos orientarmos pelo real em busca do tratamento do gozo, com uma aposta incansável no sujeito.