Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Seção São Paulo em 4 de outubro de 2014

 

Sublimação

Elisangela Miras

 

A sublimação, no Seminário 7, de Jacques Lacan, é apontada como um conceito problemático da doutrina freudiana e da responsabilidade do analista. Ela é articulada a outra face das raízes do sentimento ético, no caso, à consciência moral. Lacan a relaciona à Coisa Kantiana, que é o próprio lugar da lei moral. Aproxima o conceito de Trieb ao de Das Ding, estando a primeira próxima ao equívoco. Como postulou Jacques-Alain Miller em Patologia da ética, o mito da libido, para Lacan, é como uma ameba, o gozo é um organismo que não quer e não pode saber nada. Introduz o conceito de Das Ding ao constatar que existe um conflito no homem ligado à busca de satisfação, afirma que é necessário haver um contorno em Das Ding. O objeto é inseparável das elaborações da cultura, e é nesta que a coletividade encontra o seu engodo a respeito de Das Ding. “A sociedade encontra uma certa felicidade nas miragens que lhes fornecem moralistas, artistas, artesãos, fabricantes de vestidos ou de chapéus, os criadores de formas imaginárias”1. Estes são os elementos que recobrem a Das Ding.


Retoma a questão da ética e postula que a ética da psicanálise e a hegeliana não se confundem, pois o indivíduo que Freud aborda depende das dimensões de vida e morte, das forças do conhecimento que provém do bem e do mal, e não das desordens do Estado. Trata-se, aqui, da Das Ding com a qual temos de nos virar.
Lacan ainda afirma que Melanie Klein coloca no lugar de Das Ding o corpo mítico da mãe, localizando a sublimação como o esforço de restauração do corpo materno lesado e, nessa articulação, refere-se até mesmo a outros pós-freudianos, para os quais a dificuldade estaria em situar o objeto de sublimação dentro da própria psicanálise. E, se para Melanie Klein a atividade sublimatória serve para preencher o furo do significante, para Lacan a sublimação teria a ver com a criação, e não com a reparação. A Coisa, portanto, estaria na raiz da sublimação e o objeto acederia à condição de Coisa, uma vez que esta segunda padece de significante.
A sublimação é o que dá à pulsão uma satisfação diferente do alvo. A natureza da pulsão tem relação com Das Ding, e a Coisa é distinta do objeto. A Coisa eleva um objeto. Já a sublimação tem a ver com a Coisa para além do objeto. A Coisa, pois, é o que do real primordial padece de significante, enquanto o objeto seria algo reencontrado; e só o sabemos perdido ao reencontrá-lo:

Ora, essa busca é, de alguma forma, uma busca antipsíquica que, por seu lugar e função, está para além do princípio do prazer. Pois, segundo as leis do princípio do prazer, o significante projeta nesse para além a equalização, a homeostase, a tendência ao investimento uniforme do sistema do eu como tal – fazendo-o faltar”2.

Lacan também vai afirmar que o homem é o artesão de seus suportes. Porém, o que este faz quando modela um significante? O psicanalista propõe a questão da criação como tema central no que tange à sublimação e à ética, pois é no mito da criação que se encontra a Coisa que define o humano. E, se o homem modela o significante, ele o faz à imagem da Coisa.


Pelo princípio do prazer vai-se de Vorstellung em Vorstellung, em um percurso que objetiva regular o aparelho psíquico para que o nível de tensão se mantenha o mais baixo possível. No entanto, isso aponta para além do princípio do prazer. Como pode ocorrer que um objeto se eleve à dignidade da Coisa é quando um significante se introduz no mundo, modelado, criado.


Para haver uma avaliação correta e possível da sublimação, tem-se de pensar que toda produção de arte é historicamente datada. “O que é que a sociedade pode encontrar aí de satisfatório?”3. Porque a sublimação não visa apenas a criar objetos que possam ser valorizados socialmente ou lidar com uma parte da libido dessexualizada.


A sublimação tem o vazio como determinante, estando a ciência do lado da paranoia, a religião, do lado da obsessão, e a arte, do lado da histeria. A arte se organiza em torno do vazio, a religião, em evitar esse vazio ou respeitar esse vazio, e a ciência vai no sentido da descrença. Desta maneira, a Coisa é rejeitada, foracluída, pois o discurso da ciência delineia o ideal do saber absoluto. O esforço da sublimação tende a realizar a Coisa, mas há uma ilusão, o que separa o homem da Coisa, portanto, ela não pode ser dada, nem salva. A Coisa pode ser representada por um vazio, o que se relaciona com o real ou há outra coisa que a representa, como faz a arte.

Isso nos permite abordar um pouco mais de perto a questão não resolvida referente aos fins da arte – a finalidade da arte é de imitar ou não imitar? A arte imita o que ela representa? Quando entramos nessa maneira de colocar a questão, já estamos enredados e não há nenhum meio de não permanecer no impasse em que estamos entre a arte figurativa e a arte abstrata.4

Lacan propõe que é na contracorrente que a arte tenta operar o seu milagre. E volta a Freud, lembrando que, quando o artista sublima, tem o reconhecimento disto por meio de glórias, honras, dinheiro, satisfazendo suas fantasias. No entanto, Lacan postula que não são simplesmente tais benefícios secundários que são extraídos das produções de um artista, mas o consenso social estruturado.


Lacan exemplifica a sublimação com o amor cortês, que tinha na dama desejada um valor de representação da Coisa. Para ele, o amor cortês é o modelo, protótipo, um paradigma ao conceito de sublimação.


Ao contextualizar o papel social da mulher na Baixa Idade Média, quando o amor cortês se torna a tônica da poética cavaleiresca e trovadoresca, Lacan escreve:

Ela [a mulher amada na proposta do amor cortês] é, propriamente falando, o que as estruturas elementares de parentesco indicam – nada mais do que um correlato das funções de troca social, o suporte de um certo número de bens e de sinais de potência. Ela é essencialmente identificada com uma função social que não deixa lugar algum para sua pessoa e para sua liberdade própria – salvo com respeito ao direito religioso5.

O amor cortês é um exercício poético cujo ideal não pode ter nenhum correspondente concreto e, no centro deste ideal, está a dama que, em posição poética, só pode ser cantada com uma barreira que a isole e a cerque. É um objeto feminino inacessível, uma tendência na sublimação de que aquilo que o homem demanda é a privação de alguma coisa de real. O objeto não é só inacessível, como que separado de quem quer atingi-lo. A dama bordeia a Coisa, no entanto, aquela que não tem lugar ou liberdade própria é a Coisa que a veste, a dama vestida de Coisa, sendo este vazio insuportável, ou é rechaçado ou elevado como objeto.

 

1 LACAN, J. O Seminário 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, pág. 126.

2Idem, pág.150.

3 Ibidem, pág. 135.

4 Ibidem, pág. 175.

5 Ibidem, pág.183.

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