Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Seção São Paulo em 4 de outubro de 2014

 

Um amor furado?

Sílvia Sato

 

No contemporâneo onde os laços são afetados pelo capitalismo, que nada quer saber do amor, e pelo consumismo, favorecendo a relação com o objeto de uso, parece-me importante retomar um lugar que Lacan propõe para o objeto de amor, para o amor, que ele vem em suplência à relação sexual que não existe.
O amor serve-se das palavras, com o que o falasser faz existir o que não existe, ao inventar um Outro para si, onde toma corpo, sai da solidão do corpo próprio em direção a outro corpo. O laço implicado no amor faz suplência ao real que não fala, fazendo falar o real mudo através do que Miller chamou de “encantamento dos significantes”. Campo da linguagem que se por um lado encanta, por outro perturba a relação entre os seres falantes.


A inclusão da pulsão sexual no amor faz o ser falante passar do modo passivo como registra o que vem do mundo externo, ao vai e vem entre a atividade e a passividade ou do amar e ser amado, que metaforiza o que resta de indizível da diferença sexual.


No amor conta-se com a ilusão imaginaria, com o que do dois se busca o um, através da via identificatória. No encontro sempre faltoso, encontra-se com algo do qual não se escapa e pode elevar o amor a ordem simbólica, onde se dá o que não se tem. Uma troca de faltas sintomáticas, onde se inclui além do amor, o ódio, cercado de prazer e desprazer, depositando no objeto amoroso a relação com a falta a ser, buscando no Outro as respostas que lhe atribuam seu ser e sua existência.


Como efeito do desencontro no encontro amoroso, que presentifica um fracasso na estrutura do amor, algo a mais se faz existente ou resistente no amor, que demanda coragem.
Segundo Lacan1:
“não é do enfrentamento desse impasse (na relação sexual), dessa impossibilidade de onde se define um real que o amor é posto à prova? Do parceiro, o amor só pode realizar o que chamei por uma espécie de poesia a fim de me fazer entender, a coragem no que concerne a esse destino fatal. Mas se trata de coragem ou dos caminhos de um reconhecimento?”


Nessa via que passa pelo Outro e inclui algo do real do gozo, o ser falante coloca de si e recebe de volta o que do objeto retorna de si ao passar pelo parceiro amoroso. Sabemos com Lacan que o gozo não convém a relação sexual2, pois segundo Miller ele fecha cada um dos sexos em si mesmo3.


Contudo, a relação sexual para de não se escrever pela contingência, numa parceria sintomática que marca o exílio da relação sexual. Segundo Lacan, “Da contingência a necessidade está o ponto de suspensão que se agarra todo amor.”4


Nessa hiância se conjuga o amor ao desejo e ao real do gozo, segundo Naveau5, que permite incluir a solidão de si e do parceiro. Num avanço, Miller6 cita que no ultimíssimo ensino se Lacan disse algo sobre a transferência, seria articulado ao efeito de furo. Com isso articula a significação ao furo precisamente para especificar o furo no real que é a relação sexual. Desta forma parece aproximar o amor ao real, na medida em que distingue o desejo com seu efeito de sentido e o amor com seu efeito de furo.


Segundo Miller7, no amor, o que ressoa como efeito de furo que é a ausência da relação sexual, se estende como uma significação vazia. Nessa medida seria arriscado dizer que o amor enquanto significação vazia, não como efeito da falta, mas do furo, sustenta uma nova causa do desejo?


Proponho que o efeito de furo, que implica numa abertura para o infinito pode permitir ao objeto sustentar o lugar de causa, onde o desejo como busca de gozo, produz um amor furado, que inclui o que fica fora do sentido no amor.


Indo além da invenção de um Outro só para si, que permite ao amor seguir os rastros da linguagem, com a significação vazia, como disse Laurent a respeito do avesso do trauma, a linguagem operaria como “parasita fora de sentido do vivente”8, por onde o simbólico se inclui no real, através do que a palavra produz um furo no real do gozo.


Já sem o Outro ideal, e acompanhado pelo que se amarra como singular do real do gozo, o ser falante pode incluir no amor algo da hiância e do vazio que causam seu desejo e permite sustentar na parceria amorosa um furo e uma ausência que sustenta uma solidão a dois, onde se mantém o um de cada um.

 

1 MILLER J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.

1 LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

2 Idem.

3 MILLER, J.-A. Op. cit.

4 LACAN, J. Op. cit.

5 NAVEAU, L. “O amor e o real”. In Papers n.1 Congresso da AMP, Um real no século XXI, 2014.

6 MILLER, J.-A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

7 Idem.

8 LAURENT, E. “O avesso do trauma”. In: www.virtualia.eol.org.ar, n. 6.

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