Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Seção São Paulo em 4 de outubro de 2014

 

A elaboração de uma questão sobre o amor

Georgia Soares De Sordi

 

O amor aqui é objeto, objeto de investigação. Entre o impossível da relação sexual e a demanda, demanda de amor, o amor circula por entre a boca dos amantes, dos filósofos, dos artistas, mostrando sua pertinência na cultura, de cada tempo, em cada sujeito. Se o amor está completamente atrelado à cultura, só existe em relação ao Outro, em sua demanda.


Lacan, no Seminário 5, diz que a demanda de amor vai além de buscar quaisquer satisfações, visando ao ser do Outro: “[...] que o outro dê o que está além de qualquer satisfação possível, seu próprio ser, que é justamente o que é visado no amor”1. Entre buscar a satisfação e ir além dela, situa-se o desejo, o desejo lacaniano. É partindo desse objeto de demanda, o desejo de ser amado, de ser amado pelo Outro, que o sujeito pode articular seu desejo em termos simbólicos, suas formulações. E é aí, no apelo ao Outro, que ele se depara com o desejo do Outro. Paradoxalmente, é através do desejo do Outro que ele pode se haver com seu próprio desejo, com seu resto.


Nessa operação dialética do desejo, partindo de Freud, Lacan nomeia o falo como um significante que marca o que o Outro deseja. É “[...] na medida em que o Outro é marcado pelo significante que o sujeito pode [...] reconhecer que ele é também marcado pelo significante, ou seja, que há sempre algo que resta para além do que pode satisfazer-se por intermédio do significante, isto é, pela demanda”2. Dessa forma, a função do significante falo é a de “marcar o que o Outro deseja como marcado pelo significante, isto é, barrado”3. É através dessa operação que o sujeito reconhece então seu próprio desejo como barrado, como insatisfeito.

 

O sujeito tropeça, diz Lacan, em sua relação com o Outro para acessar o seu desejo. Desejo entendido como causa, como causa do desejo do Outro e que, por sua vez, demanda, apesar de paradoxalmente saber que a satisfação está para além da própria demanda. Ter que se haver com o desejo é estar diante da castração. São nesses tropeços com o Outro que o sujeito tenta ludibriar a castração, mantendo no inconsciente o desejo como insatisfeito. A garantia incondicional do amor do Outro, bem como estar às voltas com esse Outro são elementos que fazem parte do tratamento do sujeito em análise.


Uma jovem mulher, cujo sintoma era o corpo em desordem, sem controle, visto que era tomada por um medo intenso de morrer, sentindo alterações em seus sinais vitais, consegue relatar uma cena que se passou com sua mãe: ao fazer uma declaração de amor para ela, esta responde com o silêncio. Frente à demanda, o silêncio. Essa mulher não consegue por na palavra seu enigma diante do desejo de sua mãe, mas o atualiza em suas relações com seus vários “ficantes”: ao mesmo tempo em que construía certas regularidade e intimidade nas relações, ao se deparar diante da possibilidade de estabelecer uma relação com alguém que de fato a interessasse, se via “perdida” frente ao seu desejo. A demanda então se diluía em vários homens e a satisfação insatisfeita conseguia ser mantida.


Nesse mesmo Seminário, Lacan repete a fórmula “amar é sempre dar o que não se tem, e não dar o que se tem”4, dizendo que essa é uma fórmula chave: amar é dar a alguém que, por sua vez, tem ou não tem o que está em causa, mas é certamente dar o que não se tem. Essa fórmula é chave para quê? Para orientar a dialética do desejo na vertente do amor do pai pela mãe, e da criança dentro dessa triangulação. Nessas relações, a dialética do desejo está presente em relação ao falo.


Lacan reforça no Seminário 8: o amor somente se concebe na perspectiva da demanda, no incondicional da demanda. Assim, ele se volta para alguém que pode falar em sua demanda de ser escutado; de ser escutado para nada, como nomeia Lacan, situando-se aí o desejo. Portanto, é na dialética do desejo que se situa o incondicional da demanda. Demanda-se o quê? O desejante no outro. Mas, para tal, o sujeito tem que se colocar como desejável – é somente como desejável que o sujeito pode tornar-se desejante. Amar é... dar o que não se tem, mesmo se se tem. O amor, diz Lacan, “como resposta implica no domínio do não saber”5.


O amor é então uma resposta. Resposta a quê? Ao impossível da relação sexual, a ausência de uma fórmula sobre a relação entre o homem e a mulher. Em “Peço-te que me recuses o que te ofereço”, capítulo do Seminário 19, Lacan coloca o EU e o TE em relação à Demanda, à Recusa e à Oferta, e mais além... coloca o Ça (isso), uma perda. Em eu te peço que recuses e que recuses o que te ofereço, Lacan marca a distância que existe entre os dois pólos distintos – o da demanda e o da oferta. Situa aqui o não é isso do enunciado: não é isso que te ofereço, não é isso que podes recusar e não é isso que te peço. Em seu esquema, ele representa o “espaço que pode haver entre o que tenho a te pedir e o que posso te oferecer”6, dizendo ser impossível sustentar a relação entre o pedido e a recusa e entre a recusa e a oferta.


Lacan surpreende ao dizer que o não é isso não está no o que te ofereço, mas que ao se retirar a oferta, o pedido e a recusa perdem todo o sentido. Isso acontece também com os outros dois verbos. A questão então que se coloca “não é saber o que vem a ser o não é isso que estaria em jogo em cada um desses níveis verbais, mas nos darmos conta de que é ao desatar cada um desses verbos de seu nó com os outros dois que podemos descobrir o que vem a ser o efeito de sentido como o que chamo de objeto a”7. O pedido, a recusa e a oferta só adquirem sentido a partir uns dos outros e, essa é a raiz, como diz Lacan, do que vem a ser o objeto a.
Opto por introduzir o amor como objeto de investigação a partir de uma primeira articulação entre necessidade, demanda e desejo e uma segunda articulação entre demanda, desejo e objeto. Como diz Lacan claramente neste capítulo do Seminário 19, “a propriedade da demanda é não poder situar o que vem a ser o objeto de desejo”8, elucidando que a demanda fundamental do analisando é “peço-te que me recuses o que te ofereço, porque não é isso”9.


A questão que orienta minha busca na vertente do amor é se ele seria um sintoma ou sinthoma, partindo do Seminário 20. Amor, significante e, portanto, atrelado a um gozo, não existe sem a fala e a demanda; aliás, não cessa de demandar, implica em uma reciprocidade, mas opera na falta da relação sexual. É esse o meu percurso.

 

1 LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, pág. 418.

2 Idem, .pág. 379.

3 Ibidem.

4 Ibidem, pág. 218.

5 LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, pág. 345.

6 LACAN, J. O  seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, pág. 87.

7 Idem, pág. 88.

8 Ibidem, pág. 89.

9 Ibidem, pág. 90.

 

Dobradiça de Cartéis