Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalho apresentado na Jornada de Cartéis da Seção Minas em 23 de maio de 2014

 

O sujeito autônomo e os imperativos de gozo

Gabriel Coimbra Carvalho

 

O sujeito moderno tem sua origem no cogito cartesiano a partir do movimento da dúvida enquanto método de conhecimento do real, um conhecimento que seja “seguro”, como postula Descartes no Discurso do método. Este sujeito é um resto, o resultado de uma operação, que por sua vez, nega a propriedade do pensamento, esgotando assim todo conteúdo possível do mental pela égide da dúvida. O que cai é o sujeito vazio, um sujeito que só pode afirmar que se pensa, existe. Uma conexão entre pensamento e ser, que segundo Miller, é uma conexão vazia. Lacan situa ai, o sujeito do inconsciente, pelo seu mesmo caráter evanescente do sujeito do cogito. No lapso, no sonho, bem como no ato falho, o sujeito é momentâneo, fugidio.

 

Com Kant, fruto do Iluminismo, movimento que visava o “Bem” a partir do uso da razão1, esse sujeito sofre uma nova configuração. Na Crítica da razão prática, Kant elucida que o problema da moral só pode ser pensado em seu nível “prático”, na medida em que a razão pura é prática por si mesma, pois é ela que promove os alicerces da ação moral por excelência. É o uso da razão que fornece a estrutura para a criação de leis que guiam a vontade. Com efeito, o sujeito cartesiano, segundo a versão kantiana, coloca de ponta a ponta o problema da autonomia, de sorte que, este sujeito, encontra-se na razão prática e não na razão pura. Tal sujeito autônomo em Kant pode ser compreendido como barrado, faltoso, impedido. Miller nos dirá que o sujeito kantiano, tal como ele encontra-se na Crítica da razão prática, pode ser lido como um buraco no determinismo científico e na causalidade objetiva.

 

Descartes irá dividir o homem em duas substancias, a saber: res cogitan e res extensa. Assim, o homem seria aquele que tem sua existência alojada ao pensamento podendo ou não servir-se de uma extensão. O corpo é deixado de lado de suas investigações e, sendo assim, seu substrato vivo, material é reduzido à extensão.

 

Em Perspectivas do Seminário 23, Miller conceitua a substancia do homem não mais como res cogitan e res extensa, mas como substancia gozosa. Desta forma, o corpo é aquilo de que se goza.

 

Assim, podemos colocar a questão: Como pensar a autonomia do sujeito frente a “isso de que se goza?” A principio parece-me impossível considerar alguma autonomia sem elucidar sua dependência. Em qual nível o sujeito autônomo, de Kant, fixa sua dependência? Sua dependência se dá ao nível supra sensível, ao nível da lei moral que o sujeito autônomo confere a si mesmo, porém de forma invertida, como se fosse um Outro. O imperativo categórico é escutado como um Outro que ordena e vigia. E o gozo? Podemos observar nos fenômenos psíquicos contemporâneos, certo empuxe à pulsão de morte. Sujeitos submetidos aos imperativos do gozo, sem nenhuma barreira, chegam a pagar o preço de seus excessos das formas mais trágicas possíveis. De qual dependência se trata? A homofonia faz-se ouvir: De qual dependência a Psicanálise trata? A do nível supra sensível? Ou a do corpo, da substancia gozosa?

 

Com efeito, para Kant, há uma vontade para além do princípio do prazer. Aqui, nós não podemos esquecer a distinção maior entre das Gute (ligado a uma determinação a priori do bem) e das Wohl (ligado ao prazer e ao bem-estar do sujeito). Para o filósofo, não há liberdade lá aonde somos controlados pelo sentimento fisiológico de bem-estar. Neste nível o homem não se distingue do animal. O imperativo categórico visa “domar” os instintos ligados à satisfação natural, fisiológica, sendo assim, só a liberdade, e, autonomia no uso pleno da razão. Desta forma, a autonomia consistiria em “ser livre em relação a todas as leis da natureza” e submeter-se unicamente às próprias leis e máximas que o sujeito formula para si a partir do uso da razão, com o intuito de forjar uma legislação de cunho universal. Sendo assim, o imperativo categórico tenta excluir o corpo de ponta a ponta, na medida em que legisla um sujeito transcendental.

 

1 Segundo Bauman, o Iluminismo pode ser entendido como a máxima de pensar por conta própria. A autonomia do sujeito representa que o lugar de Deus é ocupado pela razão, na época das “Luzes”.

 

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