Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalho apresentado na Jornada de Cartéis da Seção Minas em 23 de maio de 2014

 

A embaraçosa exclusão do objeto em Kant

Adelmo Marcos Rossi

 

Segundo Miller, na época de Kant, vivia-se sob a égide da certeza matemática, iniciada muito tempo antes com os pitagóricos, que “abandonaram a cidade porque eles não gostavam de todas essas discussões sem conclusão, essas vacilações, essas confusões próprias do debate que se produz nas cidades”1; certeza que conquistou credibilidade na proposição de Galileu “toda a natureza está escrita em caracteres matemáticos”; e consolidada nos argumentos de Descartes e a sua certeza existencial pelo pensamento. Com Kant não foi diferente:

Kant parte desse desejo de certeza matemática, o qual é um sintoma que parece que se enxertou na humanidade a partir de um certo momento histórico determinado; e se enxertou de tal modo que o fez desejar a certeza universal. É uma enfermidade, que não sabemos como começou. E certamente haveria mais felicidade se pudéssemos esquecer isso2.

Esse sintoma da certeza matemática, essa enfermidade, foi “tratada” por Kurt Gödel em 1938, com o teorema da incompletude, e depois disso a universalidade da matemática pôde ser posta em questão. Foi demonstrado que, sendo a não-contradição o princípio básico da matemática, e se ela progride segundo o método lógico-dedutivo, Gödel provou que ela não consegue deduzir a não-contradição, conforme comentário de Miller: “trata-se do fato de que não se pode demonstrar a contradição”3. A conquista de Gödel foi ter conseguido elaborar uma demonstração disso para os próprios matemáticos. Pode-se dizer que é o reconhecimento da castração vigorando também na matemática, resgatando, assim, a sua condição humana. A matemática é uma invenção do homem, carregando nela a marca da castração, deixando de ser a mãe-primeva, não castrada, de todas as ciências, e passando a sofrer do mesmo mal que a linguagem comum, que não recobre todo o real. A não-contradição ocupa o lugar de impasse da formalização.

 

Comentando Gödel, Miller fornece um exemplo4 em que, dado o conjunto dos números naturais, N={0,1,2,3,4,5,... a...}que inclua um elemento a, não se pode eliminar esse a usando o algoritmo de geração dos números naturais. Não se consegue eliminar o objeto estranho por dedução lógica:

Esse teorema dos anos cinquenta colocou que todo conjunto de condições cumpridas pelos números naturais admite igualmente um modelo não padronizado, isto é, um modelo que implica este afantasma. Esta é, pois, a utilização mais brilhante do conceito de inconsistência que colocou Gödel.

 

Pois o objeto a enquanto estranho é justamente a questão que perturba Kant quando ele se propõe a argumentar a favor de uma máxima válida para todos. Antes de alcançar a proposição da máxima, Kant vai tentando depurar o objeto incômodo em três teoremas sucessivos. O primeiro teorema é bem claro: “nenhum objeto da experiência pode dar-nos uma certeza matemática com respeito ao que podemos desejar”5. O interessante é que Kant vai eliminar esse objeto da experiência com vistas a obter a certeza matemática que guia a conduta. Mas é uma eliminação paradoxal, pois faz o objeto retornar sem que Kant se dê conta disso:

[...] isto é o que se necessita para entender o terceiro teorema: excluir o objeto. E a operação de Lacan consiste em dizer que sim, que o objeto está aí sim, ainda que ele não seja visto. Por mais que Kant queira eliminar o objeto, ele está aí6.

 

Miller então diz que Kant nos desloca para um mundo de ficção científica, onde não há nada, a não ser a forma, para então enunciar o terceiro teorema “se é pensável um princípio universal da conduta, este deve estabelecer-se não segundo a matéria, mas segundo a forma”7. Miller diz: é uma fórmula auto-referencial que diz “atua segundo uma fórmula que possa ter uma certeza matemática”, uma fórmula que tenha como certeza a própria fórmula. Como sabemos, Kant é muito anterior a Gödel. É um princípio apenas formal, sem nenhum objeto, no entanto possível de encarnar em alguém. E Miller conclui: “sempre devemos atuar pensando que nos olham8. No francês, “nous devons toujours agir em pensant qu’on nous regarde”, isto é, que nossa ação seja pública. Que há um olhar que acompanha nosso agir. E Miller acrescenta: “Kant, por sua vez diz: ‘mesmo o criminoso tem vergonha de seu ato no que diz respeito a esta lei’”9. Consultando a versão francesa, “même le criminel a honte de son acte au regard de la loi”. A expressão “au regard de la loi” pode ser traduzido por “por respeito à lei”, mas também pode ser lido como “aos olhos da lei”. Uma lei que olha, um olhar que está todo o tempo ativo. Kant pensa a ação subordinada a um olhar público e permanente. É o objeto olhar, excluído, que retorna.

 

Que olhar é esse que retorna no simbólico sob a forma da lei? Talvez uma pista possa ser dada no comentário de Miller “o divertido da Crítica da razão prática é o desprezo que Kant tem pelo amor. É a foraclusão de todo desejo, de toda moralidade que pode partir do amor”10. O motor da moralidade é a foraclusão de todo desejo que se fundamenta no amor. Os objetos são patológicos, provocam o desejo, e contaminam a razão. São foracluídos no real, mas retornam sob a forma simbólica da lei, sob a forma de uma lei que olha incessantemente.

 

Ao publicar a Crítica da razão prática em 1788, será que Kant estava informado do Panoptico de Bentham de 1785? Valeria a pena investigar a predominância do anônimo olhar vigilante da lei às vésperas da grande revolução de 1789 que produziu uma enorme mudança na história da humanidade. Isso concomitante com a filosofia da alcova, de 1795, em que Sade fez questão de expor aos olhos do mundo as conseqüências da moral quando ela ignora o objeto. É o Sade dando aí verdade de Kant.

 

1 MILLER, J.-A. Lakant. Buenos Aires: Tres Haches, 2000, p. 29. Tradução livre.

2 Idem.

3 MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 280. Tradução livre.

4 Idem, p. 279.

5 Ibidem, p. 280.

6MILLER, J.-A. Lakant. Op. cit., p. 32.

7 Idem, p. 33.

8 Ibidem.

9 Ibidem.

10 Ibidem.

11 Ibidem, p. 28.

 

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