Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalho apresentado na Jornada de Cartéis da Seção Minas em 23 de maio de 2014

 

A pulsação do supereu no surgimento do sinthoma

Alberto Murta

Há um certo desenvolvimento no seminário Lakant1, onde Jorge Alemán constata que, em Kant, há uma ideia definitiva de que um pensamento nascente é sempre engendrado por uma prescrição. Ele chega a afirmar que não existe pensamento sem prescrição: o fundamental em Kant é de ter explorado a estrutura formal dessas prescrições fora das leis da natureza.


Cabe a Freud, por sua vez, promover uma desestabilização das formulações kantianas introduzindo o conceito de pulsão. Surge assim, a nova descoberta da existência de um processo na vida psíquica que se efetua independentemente do princípio de prazer. Somos conduzidos a acentuar o caráter privilegiado do além do principio do prazer na pulsão de morte. Acontece, contudo, que o movimento da experiência analítica consiste em mostrar que a pulsão de morte encontra-se em jogo em nome de uma determinada procura por um outro lugar, um mais além de um prazer.


Finalmente, Freud desvela na sua investigação sobre a moral civilizada, que um dos destinos da pulsão de morte é o superego. Ele, o superego, passa a ser um destino civilizado. Dessa maneira, ele se encontra imiscuído num movimento paradoxal que encarna a pulsão de morte. Parece-me que Miller, na interpretação do texto Mal-estar na civilização, extrai a lógica paradoxal da pulsão de morte quando afirma que ela mesma “é a pulsão do superego”. 2


Sabemos que no século XX, Lacan3 desenvolveu seu seminário A ética da psicanálise. Nele, ele faz valer que o discurso analítico porta uma ética distinta de todo rigor moral. Na sua leitura, indica que o segredo de Freud rompeu com quaisquer modalidades de pensar a ética à luz do bem supremo. Para isso, um dos princípios que rege o avanço freudiano no campo da ética se inscreve a partir do conceito da pulsão e, especificamente, da renúncia pulsional. Vejamos como Freud desdobra esse paradoxo que concerne à consciência moral:

Toda renúncia à pulsão torna-se agora uma fonte dinâmica de ‘consciência moral’, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a intolerância desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem da consciência, ficaríamos tentados a avançar esse paradoxo: a consciência moral é consequência da renúncia pulsional; ou bem: a renúncia pulsional (imposta do exterior) cria a consciência moral, a qual, então, exige um acréscimo da renúncia pulsional.4

 

Em outros termos, essa posição do ser humano, diante da renúncia de suas pulsões, nutre nele uma força sem limites infiltrada de mais uma renúncia pulsional. Eis aí um dos desvelamentos desse segredo que se encontra de maneira obscura no texto freudiano. Encontra-se também amalgamado no exercício dessa renúncia o comando do superego que o próprio Freud o nomeia como “severidade da consciência moral”5.


No texto de 1930, Freud se surpreende ao perceber que, não importa qual neurose, esconde uma dose de sentimento inconsciente de culpabilidade. Esse sentimento consolida os sintomas pelo fato de que eles são utilizados como punição. Logo, qual é a fonte dessa punição? Na afirmação freudiana sobre a formação do sintoma, há uma tendência pulsional submetida ao recalque que, portanto, pode ser decifrada. E há também outra tendência em que o sentimento de culpabilidade é agenciado pelos componentes agressivos. Esse último ponto faz correspondência com o superego, na medida em que ele instaura exigências severas como ideal e que não podem jamais serem satisfeitas. Freud, por sua vez, explora em termos clínicos as consequências avassaladoras da consciência moral tanto na obsessão quanto na melancolia. Ele chega mesmo a transformar o superego em imperativo categórico.


Do meu lado, continuo investigando que podemos ler essas prescrições aludidas por Jorge Alemán funcionando como significantes-mestres. Assim, posso hoje sustentar que somos engendrados pelos significantes-mestres que deram o pontapé inicial da nossa existência. A fincada desses significantes no corpo abre a perspectiva da existência no humano. Lacan se serve da fincada desses significantes no corpo para dar um tratamento da natureza moral do homem em termos de discurso.


Estamos aqui aludindo ao momento do acontecimento do corpo enquanto sinthoma. Esse acontecimento se opera de maneira traumática. Logo, não importa qual acontecimento de corpo, ele será sempre traumático. É impressionante como Freud, no momento em que se ocupa com o Além do princípio do prazer, já desenvolve a compulsão de repetição como efetivamente existindo e decidindo o destino dos homens. Foi com ele que passamos a saber que essa compulsão é reenviada as experiências do passado que não comportam nenhuma possibilidade de prazer. Surge aí um além em que a pulsão de morte se consolida. A compulsão de repetição é atrelada a uma fixação psíquica ao trauma. Todas essas considerações freudianas podem ser testemunhadas na compulsão de repetição que emerge nos sonhos da neurose traumática. Na citação que se encontra logo abaixo, emerge o exame de um material clínico em que a regulação dos processos psíquicos pelo princípio do prazer é eminentemente criticada. Passemos a ela:


Versão brasileira:

O estudo dos sonhos pode ser considerado o método mais digno de confiança na investigação dos processos mentais profundos. Ora, os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu acidente, numa situação da qual acorda em outro susto. Isso espanta bem pouco as pessoas. Pensam que o fato de a experiência traumática estar-se continuamente impondo ao paciente, mesmo no sono, se encontra, conforme se poderia dizer, fixado em seu trauma. As fixações na experiência que iniciou a doença [...]. 6

 

Versão francesa:

Nous pouvons considérer l’étude du rêve comme la voie la plus fiable pour explorer les processus animiques des profondeurs. Or la vie de rêve de la nérvrose traumatique se caractérise en ceci qu’elle ramène sans cesse le malade à la situation de con accident, situation dont il se réveille avec un nouvel effroi. De cela, on s’étonne beaucoup trop peu. On estime qu’il y a justement une preuve de la force de l’impression preduite par l’expérience vécue traumatique dans la fait que celle-ci s’impose sans cesse au malade, même pendant le sommeil. Le malade serait, pour ainsi dire, psychiquement fixé au trauma. De telles fixations à l’expérience vécue que a déclenché l’entrée en maladie [...].

 

Versão alemã:

Das Studium des Traumes dürfen wir als den zuverlässigsten Weg zur Erforschung der seelischen Tiefenvorgänge betrachten. Nun zeigt das Traumleben der traumatischen Neurose den Charakter, daß es den Kranken immer wieder in die Situation seines Unfalles zurückführt, aus der er mit neuem Schrecken erwacht. Darüber verwundert man sich viel zuwenig. Man meint, es sei eben ein Beweis für die Stärke des Eindruckes, den das traumatische Erlebnis gemacht hat, daß es sich dem Kranken sogar im Schlaf immer wieder aufdrängt. Der Kranke sei an das Trauma sozusagen psychisch fixiert. Solche Fixierungen an das Erlebnis, welches die Erkrankung ausgelöst hat [...].7

 

Chamou-me a atenção que na versão brasileira a frase sublinhada é ilegível. Ela passa despercebida na edição brasileira e, por conseguinte, não é utilizada no nosso campo. Constato, por meio da versão alemã, a emergência dos termos: die Stärke des Eindruckes. Os termos do alemão preciso do qual se serve Freud, em Além do princípio do prazer, para explicar o que é produzido pela experiência traumática vivida são die Stärke des Eindruckes. Uma das traduções é: a força das marcas, a força das impressões. Observo que na versão francesa emerge a seguinte tradução: la force de l’impression. Entrando um pouco no jogo homofônico presente na língua alemã, esse der Eindruck pode ser lido como uma marca. No entanto, há o Um em der Eindruck. Há nesse termo uma marca. Ora, será que podemos ler essa uma marca como inerente ao próprio corpo? Quero sustentar que sim, na medida em que o acontecimento traumático torna-se o responsável por produzi-la e repeti-la sem cessar. É impossível pensar o acontecimento traumático sem as marcas no corpo.


Parece-me que a solução singular encontrada pelo falasser para responder ao encontro traumático se impõe, nos termos de Freud, “sem cessar” 8. Ainda com ele, é a força de uma marca que se repete. No entanto, nessa indicação freudiana há uma repetição, repetição do trauma, que orienta a emergência desta modalidade lógica: o necessário. Na perspectiva aberta por Lacan, o necessário coabita com o próprio funcionamento do sinthoma. O sinthoma “não cessa” de se inscrever.


No decorrer do que se convencionou chamar de Ultimíssimo Ensino de Lacan, Jacques-Alain Miller propõe que o acontecimento de corpo também implica uma marca. As fincadas de lalangue no corpo deixam vestígios. Esse acontecimento que é o sinthoma traz as marcas de um corpo que testemunha o real de gozo inerente ao corpo.
Logo no início do texto vimos que no seminário trabalhado pelo Cartel, Lakant, o ato de nascimento de um pensamento é precedido por premissas e que, por sua vez, essas premissas, segundo Jorge Alemám, são lidas como significantes-mestres. Assim, depois desse pequeno percurso, será que podemos afirmar que as marcas, enquanto S1, são premissas que se assentam na posição de existência de quaisquer que sejam os falasseres? Sendo sim, o salto para o pensamento, o socorro para o pensamento, forçosamente, é comandado por essas premissas. Utilizo aqui o termo comando para produzir o questionamento que se segue: é possível isolar numa dessas premissas, S1, uma que seja equivalente ao supereu?


Ora, o supereu, que é desenvolvido por Freud no Mal-estar na civilização, porta alguns aspectos de ilegalidade que o distancia da sua versão simbólica como interditora. Nesse texto, ele passa de uma interdição para um imperativo: o supereu como imperativo de gozo. O encontro do falasser com uma emergência de gozo nos conduz ao sinthoma como um acontecimento de corpo.


Recentemente, Jacques-Alain Miller, na sua conferência pronunciada em 17 de abril de 2014, apresentando-nos o tema do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que será realizado no Rio de Janeiro, sinaliza a necessidade da prática analítica na era do falasser. Dentre as suas proposições, emerge a seguinte: “Tudo o que a análise pode fazer é afinar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma”9. O caminho que se abre sinaliza um além que é, “para o falasser, fazer-se tolo [dupe] de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crer sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é” 10. Encontro-me forçado a isolar esses semblantes que beliscam um real como a série repetitiva S1, S1, S1, (...).


Nessa posição existencial, o brotamento de S1 começa a se precipitar como resultado do encontro que será para sempre traumático. Há um gozo nessa cifragem. Em outros termos, podemos dizer que, no próprio processo de ciframento, emerge o gozo. A escrita a vir de S1, S1, S1, (...), etc., como letra, testemunha que o ciframento é uma escrita de cifras. Introduz-se aqui um outro efeito da linguagem, o da escrita, que marca uma diferença em relação ao efeito da significação. A série repetitiva esboçada logo acima evidencia a não relação entre as letras que se ajuntam na escrita. Verifica-se aí que o sinthoma se realiza nessa operação, sinthomatizando o Real.


O que chamo “sinthomatizando o Real” é de fato o processo de brotamento de S1, fazendo a série inerente à função do sinthoma. Quero sustentar que o sinthomatizando responde ao Real na medida em que ele, se consentindo ao Real, encarna o necessário na série repetitiva de S1. Esta operação de redução do sinthoma traz à tona a repetição traumática onde se desenha um novo uso de S1. “Ré-achando” o seu gozo, consolida-se a permanência do sinthoma e, por parte do falasser, ele evidencia a sua identificação ao “se sabendo fazer”. Logo, a singularidade do acontecimento repercute, no fluir da série, uma só vez, a solidão do Um.

 

1 MILLER, J.-A. Lakant. Buenos Aires: Tres Haches, 2000.

2 MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”. In: Opção lacaniana, n. 41, 2004, pág. 22.

3 LACAN, J. Livre VII: L´éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986.

4 FREUD, S. Malaise dans la civilisation. Paris: Seuil, 2010, pág. 147.

5 Idem, pág. 159.

6 FREUD, S. “Além do princípio do prazer”. In:  Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975, pág. 24.

7 FREUD, S. Au-delà du principe de plaisir. Paris: PUF, 2013, pág. 11.

8 FREUD, S. Jenseits des Lustprinzips. Germany: S. Fischer Verlag, 1994, pág. 223.

9 Idem, Paris: PUF, pág. 11.

10 MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante: apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016, 2014.

 

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