Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 16

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Escrita cartelizante

Trabalho apresentado na Jornada de Cartéis da Seção Minas em 23 de maio de 2014

 

Dimensões do gozo Outro nas tramas das redes sociais

Lilany Pacheco

 

Introdução

 

O tema que escolhi abordar neste Cartel refere-se à modalidade das relações estabelecidas pelos usuários, nas redes sociais, através do uso de chats, mensagens internas, dando vida a um funcionamento off line, digamos assim, em relação ao que se pode ver no feed de estórias postadas pelos “amigos” que integram a rede para cada um.

 

Tempo e espaço transformados pelos recursos digitais e, por sua vez, transformando a natureza da intimidade, abrindo espaço a confissões, declarações, posicionamentos, manifestações de diversas ordens e, consequentemente, produção de afetos que se introduzem na economia do gozo de cada um, como uma face do que Lacan chamou de gozo do Outro.

Psicanálise e redes sociais digitais – salvação pelos dejetos

 

Tomei como referência para iniciar essa discussão sobre a psicanálise e a sociedade digital, o texto de Miller “A salvação pelos dejetos”.

 

Miller lembra que a psicanálise foi, como se sabe, a primeira a prestar atenção nos dejetos da vida psíquica, que são o sonho, o lapso, o ato falho, o delírio e mais além, o sintoma. A descoberta freudiana foi que, ao prestar atenção nesses restos, levando a sério esses dejetos, o sujeito teria a chance de se salvar. Sendo assim, a psicanálise não exclui do discurso do mestre, que também é o discurso do inconsciente, a relação do sujeito com aquilo que do gozo resta não socializável e mal dito, ou seja, a fantasia ($ <> a).

 

Portanto, para a psicanálise, não se trata de obter somente uma identificação significante do sujeito, isto é, sua inscrição sob um significante mestre, sua conformidade a um ideal, mas de permitir uma identificação do gozo no lugar do Outro, quer dizer, de permitir que, nesse lugar vazio onde o Outro social coloca o ideal, possa surgir o modo de gozo do sujeito. Não poderíamos sugerir aí uma afinidade entre o discurso analítico e as redes sociais, ou seja, incluírem no discurso os dejetos da vida psíquica? Não estaria aí a função do que Freud e Lacan nomeiam de sublimação?

 

Como esclarece Miller, a sublimação é um meio pelo qual o gozo forçosamente autista do UM, entrelaça-se com o discurso do Outro, inscrevendo-se no laço social. Miller chega a dizer que não vê porque não estender essa ideia a ponto de dizer que é apenas através da sublimação que o gozo faz laço social. Penso que esse texto Miller nos apresenta uma versão mais ordinária, se assim podemos dizer, da sublimação, ou seja, a sublimação entendida como aquilo que promove um intervalo na relação do sujeito com o gozo, a sublimação como o que torna a satisfação do gozo menos direta, mas, no entanto, mais durável.

 

Isso não quer dizer que a sublimação seja uma operação sem resto, ou seja, há algo que permanece sempre fora do discurso e do laço social (algo cai à medida em que algo se eleva). O que do resto de gozo que não se inscreve na linguagem, no Outro do laço social, retornará sob a forma do gozo do Outro, tal como descreverei a seguir.

 

A fantasia entre o desejo do Outro e o gozo do Outro

 

O desejo é desejo do Outro. Máxima lacaniana que inscreve a castração do sujeito falante na entrada na linguagem. Para Lacan, o neurótico se defende do desejo do Outro com a sua fantasia. Lacan formula que tanto o desejo insatisfeito do sujeito histérico, quanto o desejo impossível do obsessivo, são estratégias que por vias distintas ambos têm a finalidade de não querer saber nada do Outro Barrado. Tanto o desejo insatisfeito, quanto o desejo impossível são sustentados por uma posição fantasmática que, ao supor uma interpretação ao desejo do Outro, resolve a angústia. Como explicita Lacan em O seminário, livro 10, a angústia surge quando o fantasma vacila, quando se quebra a resposta estereotipada do neurótico e o sujeito se encontra inerte diante deste desejo enigmático. Portanto, se o neurótico se defende do desejo do Outro com sua fantasia, de outro, dá consistência ao Outro e, muitas vezes, dar consistência ao Outro se converte em pesadelo. Lacan faz menção ao pesadelo no Seminário 10 para distingui-lo do sonho de angústia, afirmando que, no pesadelo, não há encontro com o desejo do Outro e o afeto, que está em jogo, não é a angústia e sim o gozo do Outro. A angústia surge diante do desejo do Outro, enquanto no pesadelo não há enigma com respeito ao desejo do Outro, mas uma certeza a respeito do seu gozo. Assim, pode-se localizar uma oposição entre o enigmático do desejo do Outro que se entrevê quando vacila o fantasma, e a consistência que se dá ao gozo do Outro quando não há vacilação do fantasma e sim sua realização no pesadelo.

 

Considerações finais

 

As redes sociais, por serem estas uma modalidade de laço social contemporâneo, guardam consigo as particularidades de nosso contexto social contemporâneo, a saber – o simbólico que não é mais o que era, as turbulências do real, e as compensações imaginárias face aos efeitos de desinserção advindos destas transformações.

 

No final de “A salvação pelos dejetos”, Miller conclui que o analista não tem que se inserir no laço social prescrito pelo discurso do mestre, uma vez que ele introduz o laço social específico que se tece em torno do analista como dejeto, do analista como representante do que do gozo resta não socializável. Não seria pela vocação de dejeto que encontraríamos as afinidades entre o discurso analítico e as redes sociais?

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Delegação Espírito Santo em 30 de agosto de 2014

 

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