Dobradiça de Cartéis

Novembro de 2013

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 6

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Editorial

Por um novo Encontro Nacional de Cartéis

Maria Josefina Sota Fuentes

 

Este número do Dobradiça de Cartéis é um registro do que tem sido o intenso trabalho em torno dos Cartéis na EBP, especialmente durante o mês de outubro. A Diretoria da EBP, presente em todas as Jornadas de Cartéis, contagiada pelo frescor da produção cartelizante e pelo efeito de entusiasmo mobilizado nas próprias Jornadas – onde uma elaboração coletiva tem efetivamente ocorrido na contingência do encontro –, aposta na retomada dos Encontros Nacionais de Cartéis. Assim, Marcelo Veras anunciou, ao término das Jornadas da EBP-MG que, em novembro de 2014, dentro do 20o Encontro Nacional da EBP, haverá um lugar e um laço reservado à produção cartelizante, numa jornada de Cartéis que já nos convoca ao trabalho. Tal retomada foi fruto também do que tem sido a conversação contínua com os Diretores de Cartéis das Seções e Delegações da EBP e que nos leva, junto à Comissão Nacional dos Cartéis, ao trabalho de inserção do Cartel no coração de nossa Escola, para que esta esteja à altura de uma Escola de Lacan.


Foi ao final da Jornada de Cartéis do Rio de Janeiro – e movido pelo frescor dessa experiência da Jornada – que Marcelo Veras foi entrevistado por Vicente Machado Gaglianone, lembrando que “O Cartel é a chance que temos de não nos transformarmos na Sociedade de Assistência Mútua Contra o Discurso Analítico”, tal como ironizava Lacan mencionando a IPA. Uma Escola não de psicanalistas (“O” analista não existe), mas para a psicanálise é o que propõe Lacan, quando funda o Cartel como órgão de base da sua Escola. Confira a entrevista no vídeo:

 


A experiência inovadora e criativa do Cartel na Cidade é a surpresa que nos prepararam este mês Fernando Coutinho, Diretor de Bibliotecas da EBP-RJ, e Elza Freitas, Diretora de Cartéis e Intercâmbio da EBP-RJ que, com Mirta Zbrun, levaram o Cartel para a cidade na Maison de France. Numa dobradinha dos Cartéis com a Biblioteca, nesta atividade foi exibido o filme “Adèle H”, de François Truffaut, seguido de um debate com o público, onde um Cartel colocou à céu aberto no centro do Rio de Janeiro, as elaborações de cada um de seus participantes: Fernando Coutinho, Astrea Gama, Isabel Lins, Luís Moreira, Maria Silvia Hanna e Dóris Diogo (mais-um). Veja neste video o que cada um transmite dessa interessante experiência:

 


As Jornadas da EBP-BA, da EBP-SP e da Delegação Espírito Santo foram de intenso trabalho, onde mais de 30 cartelizantes levaram para discussão seus trabalhos na Escola, entre os quais selecionamos aqui apenas 4 para serem publicados, mas bem que poderiam ser todos! Destacarei, na Conferência de Cínthia Busato proferida na Jornada de EBP-SP, a precisão de sua transmissão: “É nesse ponto que o Cartel encontra a especificidade de sua função: ser a dobradiça, ser a articulação entre o psicanalista na solidão de seu ato, e a Escola onde os analistas trabalham para a transmissão da psicanálise”.


Ao trabalho da leitura!

 

A importância do trabalho em cartel para a formação do analista

Conferência de Cínthia Busato na Jornada de Cartéis da EBP-SP

 

Começo agradecendo o gentil convite de Cássia para que eu falasse aqui hoje. Gentil em vários aspectos. O primeiro que vou abordar é o da aposta, eu diria inclusive, da ousadia, de convidar alguém que acabou de entrar como membro da EBP e que não tem um percurso tão longo como tantos colegas dentro dessa Escola. Eu fui convidada como Diretora de Cartéis da Seção Santa Catarina, e me autorizei a aceitar esse convite, acreditem, não sem receio, para falar de um tema que sempre me causou, sempre mobilizou meu percurso dentro da Escola, que é exatamente o Cartel.


Desde que comecei a estudar a psicanálise lacaniana faço Cartéis, muitas vezes dois ao mesmo tempo. E desde o início me apaixonei pela lógica que funda o Cartel. O “por sua conta e risco” sempre me estimulou a valorizar o que tenho de melhor em mim: o que ainda não sei. Era assim que eu chamava o que, com Lacan, aprendi a chamar de não-todo, e achei mais adequado este termo, pois “o que ainda não sei”, pode ser entendido também como “um dia vou saber tudo”, o que de fato nunca acreditei.


Poder estar com pessoas que escolho para conversar, debater, não saber temas que me interessam e, a partir daí, construir algum saber sobre isso, sempre me ajudou a construir tanto um saber teórico que me apoia, quanto a minha relação com a Escola.


Bem no início do meu percurso lacaniano, escrevi um texto chamado “Quem ousa erra”, que começa assim:

Temos, na neurose, duas possibilidades frente a esta afirmação: o obsessivo não ousa para não errar, a histérica finge que ousa para provar que não erra. A psicanálise propõe uma terceira saída, ousar sabendo que o erro é possível. Mais do que isso, aposta no erro como caminho em direção ao fracasso do Ideal, este que dita o que é errado. Para a psicanálise não é errando que se aprende, portanto acerta, mas é ousando errar que se escreve o nome próprio, nome que aponta na direção do impossível.


Ousadia não é o mesmo que ser afoito ou desafiador. Confunde-se, hoje, pressa, afobação, atitude desafiadora, com ousadia. Erro grave. O ousado pode ser muito lento. O ousado não baniu o medo, resolveu seguir com ele. O ousado suporta a falta, coisa que o afoito, ansioso, não tolera. O ousado vislumbra o impossível, coisa que o afoito, ansioso, não tolera. O ousado a-risca, imprime marca singular no seu ato. Ao desafiador importa mais destruir a marca do outro. Por que este elogio à ousadia? Porque frente à padronização, ao horror ao erro, a sair do padrão, a ousadia está cada vez mais rara, e o que aparece em seu lugar é a pressa e a atitude desafiadora por si só. Estas são impedimentos ao laço social, pois promovem um investimento maior em banir a falta, fortalecendo a imagem narcísica, especular, do que em criar possibilidades de lidar com as diferenças, fundamental para o laço social.

 

Vou começar a pensar daí a importância do Cartel para a formação do analista e também o dispositivo Cartel no século XXI. Muito me ajudou o texto de Vilma Coccoz , “O cartel: um novo laço”, publicado no Boletim Uno por Uno, n.10, que está na página da NEL-México.


No texto “Da psicanálise em suas relações com a realidade”, Lacan nos diz que “os psicanalistas são sábios de um saber que não podem cultivar” . “Daí sua associação com aqueles que só partilham com ele esse saber por não poder trocá-lo” . Uma das vias para se relacionar com essa impossibilidade de comunicação é a própria análise, mas o saber construído em uma análise é limitado: podemos saber da determinação inconsciente sobre o ser falante, saber do gozo particular que obtemos com nosso sintoma. Mas o sujeito nada pode saber do sentido do sintoma do outro, da satisfação que esses sintomas produzem. Para poder permitir ao outro o acesso a este saber não basta tê-lo conquistado, há que consentir com o passe, onde algo se pode transmitir, mesmo que não seja tudo. Então, mesmo que sejam eruditos em um saber sobre a estrutura, os psicanalistas não se reúnem como sábios para conversar sobre seu saber e ampliar o campo da erudição, mas se associam justamente pelo contrário: por uma impossibilidade de conversar. As formas que Lacan propõe para a organização dos analistas seguem a referência da distinção entre o laço coletivo, onde a referência é o ideal que satura a falta, e a lógica coletiva, que se situa em relação à falta do Outro, que indica o furo no saber. Tanto o Passe quanto o Cartel se inserem nessa lógica, numa tensão entre o que entra no laço social e o que não é coletivizável de cada um.


É nesse ponto que o Cartel encontra a especificidade de sua função: ser a dobradiça, ser a articulação entre o psicanalista na solidão de seu ato, e a Escola onde os analistas trabalham para a transmissão da psicanálise. Se fosse possível transmitir tudo, o que restaria? Eu imagino que o tédio, pois se fosse possível transmitir tudo a arte não teria função, nem a psicanálise.


Então, acho que a psicanálise traz inoculado dentro de seu discurso esse saber que é o que faz de mim uma otimista em relação a psicanálise no século XXI: saber que não sabe tudo, saber que estamos marcados no corpo pela palavra e que isso nos coloca como sujeitos divididos entre uma verdade que nos habita e imprime nosso estilo, e um saber que vai sendo construído a partir dela.


Essa verdade, o Um que marca alguma coisa do real do gozo, é o que vai orientar o sujeito em sua nomeação sintomática, seu “[...] sintoma como aparelho individual para situar o objeto pequeno a, essa parte elaborável do gozo” . O que seria ousado aqui, que é a proposta da psicanálise, é suportar o vazio de significado, ao invés de tamponá-lo. É colocar o objeto pequeno a como causa de desejo e não como objeto de mercado atrelado a um mais-de-gozar.


Na perspectiva do último ensino de Lacan, trata-se, sobretudo, de captar a maneira pela qual o sujeito está articulado ao Outro pelas operações de batismo essenciais de seu sinthoma, de um gozo que se esquiva a ser inscrito de uma vez por todas no lugar do Outro.

 

Ousar é fazer do vazio angustiante e enigmático uma marca própria.


A psicanálise efetuou uma subversão na lógica numérica. Aqui, a sequência deixa de ser 1, 2, 3 para ser 1, 3, 2, já que, para sair da lógica especular que de 2 faz 1, o sujeito precisa encontrar o 3, o terceiro termo, aquele que traz a possibilidade de exclusão, imprescindível para a elaboração da castração. É o que salva o sujeito do paraíso da simbiose da não diferença. É ele que possibilita o aparecimento do 2, a manutenção de dois sujeitos que suportam a diferença. No 2 , o paraíso sem garantias, o paraíso do desejo, de uma inquietude que ousa em direção ao enigma do Outro e não da inquietude que tenta negá-lo.


O sintoma para a psicanálise tem duas vertentes: a vertente do sofrimento (gozo do sintoma) e a vertente do enigma (sentido do sintoma). Normalmente é pela vertente do sofrimento que um sujeito chega à análise, mas para que esta se constitua como análise é preciso que seja propiciado um querer-saber do seu sintoma, que o desejo de desvendar o enigma próprio seja despertado. A demanda terapêutica pode ser unicamente se livrar de seu sofrimento, e muitas terapias estão aí para mostrar que isso é possível, muitas vezes, simplesmente trocando o ideal, “consertando”, tapando furos no ideal manco, ou trocando por um novinho em folha. O discurso messiânico é um bom exemplo. Nada de marca singular, aqui trata-se de rebanhos. Aposta-se sempre no paraíso futuro, sem faltas, com a garantia de completude e satisfação. Mas como analistas sabemos que o furo é de estrutura, portanto sempre aparece. Esse é nosso horror e nossa salvação.


Voltando ao início: o obsessivo não ousando para não errar mantém-se mais preso a uma perpétua tentativa de controle. A histérica, fingindo ousar para provar que não erra, que um dia será, ela própria, A mulher, não conhece alívio dessa tensão. Em ambos o 2 não se estabelece, a impotência não foi elaborada pelo saber de sua verdade singular, que permite tratar o furo como impossível.


Termino com uma citação de Ana Lúcia Lutterbach-Holck:

 

[...] Lacan, já na época do Seminário 1[...] nos aponta o melhor remédio para enfrentar a ciência da felicidade e suas cifras: a coragem. A coragem, como nos falou Badiou, não é um momento heroico em que se coloca face ao impossível, mas uma virtude construída na prática para se sustentar no impossível. A coragem pode ser algo que nos oriente localmente na desorientação global.


Todo caminho da gente é resvaloso/ Mas também, cair não prejudica – nada demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!…/O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí/Afrouxa, sossega e depois desinquieta/O que ela quer da gente é coragem. Guimarães Rosa

 

Escrita cartelizante

Trabalhos apresentados nas Jornadas de Cartéis EBP


JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-BA

Pablo Sauce
Bate-se numa pedra
Este trabalho é produto de um Cartel inter-núcleos de Toxicomania dos Institutos do Campo Freudiano do Brasil, interrompido pela morte do mais-um, Carlo Viganó, assim como de outro Cartel, constituído no contexto do Núcleo de Pesquisa de Toxicomania e Alcoolismo do IPB.


Neste segundo Cartel, recentemente constituído com os colegas Elia Cardoso, Anderson Viana, Ueliton Pereira, Wilker França e Lêda Guimarães como mais-um, retomo a pesquisa em torno da seguinte questão: discutir as estratégias analíticas no campo das adições, considerando particularmente a dimensão pulsional da transferência.


Afirmamos com Graciela Brodsky que, se como linguagem o Outro antecede o sujeito, na perspectiva do gozo, “o Outro não existe a não ser por esse movimento que o converte em depósito de um objeto que lhe dá vida”.


Na clínica clássica – época da produção do algoritmo da transferência – o objeto não antecede o significante. Primeiro temos o S1 – a través do qual o sujeito se faz representar – que busca o Sq na figura do analista e o objeto a fica como referente, porém latente.


O algoritmo da transferência supõe uma diacronia (→) como o tempo necessário para a repetição. Estamos na dimensão da transferência voltada para a alienação (SsS).


No entanto, já no Seminário 11, Lacan concebe a transferência como a colocação em ato da realidade sexual do inconsciente. Aqui, o objeto a não está latente senão manifesto, na cena.


Nesta perspectiva, a transferência se passa no tempo presente, não é repetição, mas pulsão. Trata-se aqui da dimensão da transferência voltada para a separação (a).


Se a perspectiva do algoritmo parte da suposição da existência da relação sexual, a segunda, do ato, tira as consequências da não existência da relação sexual, da disjunção entre o gozo e o Outro.


Nesta dimensão transferencial, o significante deixa de estar em primeiro plano e dá lugar a um corpo que goza e que não se relaciona com o Outro.


Não é a busca do ser o que está em jogo aqui, senão o uso do (próprio) corpo como instrumento de gozo.
No entanto, sabemos que a pulsão não se satisfaz sem passar pelo campo do Outro, pois é nesse “lugar de depósito” que encontra seus objetos. Encarnar esse objeto que faz existir o Outro, em alguns casos “pode ser o último recurso com o qual um sujeito consegue estabelecer um laço” .


A particularidade é a de que este laço não necessariamente seja motivado pela suposição de um sujeito ao saber – suposição do inconsciente – e que ainda assim possa ser suficiente para que um analista encontre seu lugar desde onde operar.

 

Como fazer laço com uma pedra?


No primeiro Cartel, sob a orientação de Carlo Viganó, parti da seguinte pergunta: “como fazer laço com o objeto?”, fazendo recair o peso da questão no com; ou seja, tomando-o mais como obstáculo do que como solução. E especialmente se esse lugar, condição de possibilidade de toda e qualquer parceria, está ocupado pelo objeto-droga.


Conferimos quotidianamente que, na prática com adictos, a possibilidade do laço transferencial não parte de uma demanda articulada no nível do significante (S1 → Sq/a) – que abriria a porta para a instituição do sujeito suposto saber – senão que parte do objeto (a → $/S1).


Esta modalidade de laço se aproxima da identificação que Freud chama de tipo histérico, onde se produz um contágio ao nível do gozo e que poderá vir a ser um ato, se o terapeuta conseguir ocupar o lugar de parceiro–sinthoma.


Na topologia entre sujeito suposto saber e produção de semblante de objeto há uma sincronia, aquela do ato que modifica o objeto como entorno do sujeito, segundo Viganó, passagem de objeto-nada para objeto a.
Neste ato deve-se chegar a escrever o impossível de se dizer, através do reconhecimento do objeto irrepresentável como objeto do próprio fantasma (identificação histérica). A partir daí, então, será possível produzir um acesso à palavra, isto é, o sujeito poderá tolerar vir a ser representado por um significante. Para isto, temos duas condições: que o gozo solitário do sintoma venha se colar ao analista; que o sujeito seja conectado ao saber.


Estas questões ainda são, para mim, bastante enigmáticas.

 

 

JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-SP

A cilada do signo para o sujeito que retém a sua voz

Matheus Kunst

 

Este paper articula as leituras e os debates realizados no Cartel “O gozo no último ensino de Lacan”, com reflexões na minha trajetória de atendimentos de casos de crianças autistas e seus familiares em um Caps Infantil.


Em O que existe de constante no autismo, Jean-Claude Maleval destaca o rechaço à enunciação uma, entre outra, característica constante nos casos de autismo. Relaciona-se diretamente à retenção do objeto vocal – que não deve ser confundido com o objeto oral –, colocando o sujeito autista em uma difícil relação com o Outro, com o significante.


O fato de o sujeito renunciar a enunciação não quer dizer que ele não fale. É bem conhecido que Jacques Lacan considerava os autistas “bem verbosos”. Essa verborragia se manifesta tanto em quadros de mutismo quanto de ecolalia ou na predominância de uma linguagem sofisticada e intelectualizada. Desse modo, podemos questionar: se não há enunciação, mas há a fala, em que sustenta o campo da linguagem no autismo? Segundo Maleval, é o primado do signo, enquanto distinto do significante, que se subjaz.


O uso do signo é captável pelo fato do sujeito autista, em sua intenção de fala, deter-se em se referir à existência de coisas. Por isso o grande uso das imagens por esses sujeitos como artifício para a comunicação. Diversas abordagens terapêuticas em voga se orientam a partir dessa forma de linguagem, já inaugurada pelo sujeito, reforçando-a e articulando-a ao comportamento eficaz. Em contrapartida, pode-se afirmar que, pela via do signo, dificilmente esse sujeito encontra um lugar para si que se sustente em um mundo que, com Outro, é feito pela via do significante, não apelando por um traço distintivo, como diz Jacques-Alain Miller em Los Signos Del Goce, capaz de contar um sujeito em uma série simbólica. Além disso, Maleval ressalta que no primado do signo “a pulsão não é representada”, havendo uma “ausência de conexão entre a linguagem e a vida emocional”, operação própria ao significante, à significantização do Real.


Lacan em Posição do Inconsciente também observa de forma precisa como o estatuto do significante se distingue de uma linguagem marcada pela proeminência do signo:


Conferir essa prioridade ao significante em relação ao sujeito é, para nós, levar em conta a experiência que Freud nos descortinou, a de que o significante joga e ganha, por assim dizer, antes que o sujeito constate isso, a ponto de, no jogo do Witz, do chiste, por exemplo, ele surpreender o sujeito. Com seu flash, o que ele ilumina é a divisão entre o sujeito e ele mesmo. Mas o fato de se revelar não deve mascarar para nós que essa divisão não provém de outra coisa senão do mesmo jogo, o jogo dos significantes [...] dos significantes, não dos signos. Os signos são plurivalentes: sem dúvida representam alguma coisa para alguém; mas, desse alguém o status é incerto, como o é o da pretensa linguagem de certos animais, linguagem de signos que não admite a metáfora nem gera metonímia. Esse alguém, em última instância, pode ser o universo, uma vez que nele circula, dizem-nos, a informação. Todo centro em que ela se totaliza pode ser tomado por alguém, mas não por um sujeito. (LACAN, 1998, p. 854)

 

Desse modo, contrastando como o estatuto do significante na experiência analítica, fica explicita que pela via do signo, há apenas uma sistematização da informação e de seu universo, um Outro de Síntese que, segundo Maleval, assume os mais variados tratamentos e modalidades de fenômenos de linguagem – ecolalia, mutismo, fala mecanizada e intelectualizada etc. –, que não apresentam articulação com gozo do vivente, sendo fenômenos de uma fala que não se faz pela voz. Como diz o autor, “nada não angustia mais o autista do que ceder sobre seu gozo vocal lhe alienando na língua do Outro”.


Mas o que vem a ser a voz e o seu gozo? E o que tem a ver com o significante que tanto o autista resiste?
Segundo Jacques-Alain Miler em Jacques Lacan e a voz, o objeto vocal, assim como o objeto escópico, foi descoberto por Lacan no encontro de sua experiência psiquiátrica com a perspectiva teórica do inconsciente estruturado como uma linguagem. Consistiu um esforço teórico no ensino de Lacan para inserir a função de objeto nas relações do sujeito com a estrutura da linguagem. Por não serem situáveis em um estágio, como são o objeto oral e o objeto anal, mas assimiláveis na clínica das psicoses e sutilmente presentes em outras clínicas, a voz e o olhar desvelam a função lógica do objeto que, enquanto objeto pequeno a, é para estrutura um resto.


No caso do objeto vocal, em especial, seu estatuto lógico está intimamente atrelado à cadeia significante, por isso sua difícil apreensão. Sua sutileza se dá por ser a voz um resto produzido pelo cruzamento da intenção de significação com o vetor da cadeia significante. Em outras palavras, um sujeito pode, ao falar, levar os significantes a se encontrarem com as leis da significação, o léxico e a sintaxe. Os significantes que “sobram” são a voz, ou como diz Miller, “várias vozes”. Esse excedente o qual a fala intencionada corta se põe como o indizível, o objeto voz, a própria enunciação.


Uma notação se faz especial: a extração da voz, resultante do cruzamento da intenção de significação com o significante, lembra Miller, é concomitante no ser vivente à castração, ou seja, a um esvaziamento de gozo. Portanto, podemos tornar equivalentes a retenção do gozo vocal e a ausência desse cruzamento.
É sabido que para ascender ao Outro é necessário que o sujeito ceda seu gozo, uma perda de gozo deve ser operada. O modo como o autista habitualmente trata a linguagem e usa a fala é ineficaz para realizar a castração e dessa forma extrair a voz e se articular enquanto sujeito com o indizível. Podemos dizer que a psicanálise com esses sujeitos parte do reconhecimento dessa Realität, dessa realidade psíquica, além, claro, de um tipo de acontecimento que não deixa de ser recorrente e ultra valioso na direção do tratamento: as pequenas enunciações, enunciações fugazes das frases espontâneas que nos lembram que em todo e qualquer caso é preciso supor um sujeito.


Há uma boa e vasta literatura psicanalítica atual que orienta um tratamento. Destaca-se o espaço de jogo de Éric Laurent que, ao meu ver, condiz com o jogo dos significantes que se antecipa ao sujeito e o poder do Witz de lhe surpreender, condição e formação já lembrados por Lacan em Posição do Inconsciente.
Buscamos, parafraseando Lacan, uma questão preliminar a todo tratamento possível do autismo.

 

Referências Bibliográficas

MILLER, Jacques-Alain. Lacan e a Voz. In Opção Lacaniana On-line, Ano 4, n.11.
MILLER, Jacques-Alain. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998.
LACAN, Jacques Escritos, Zahar, 1998.
MALEVAL, Jean-Claude. O que existe de constante no autismo? CliniCAPS, vol 4, nº 11, 2010.
MALEVAL, Jean-Claude. “Língua verbosa, iíngua factual e frases espontâneas nos autistas”. In Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.

 

JORNADA DE CARTÉIS DA DELEGAÇÃO ES

Trauma, sinthoma e supereu

Alberto Murta

Cartel: Leitura de “A Terceira” de Jacques Lacan.
Cartelizantes: Alberto Murta (mais-um), Elisa Martins Oliveira Silva, Tania Mara Alves Prates, Judite Pires Torres Pereira e George Avance Pereira Ramos.


Gostaríamos de desenvolver algumas articulações entre o trauma, o sinthoma e o supereu. Para isso vamos, no primeiro momento, abordar a concepção do trauma que emerge na conferência XXXII de Freud intitulada: Angústia e vida pulsional. Logo a seguir, recorreremos à abordagem do sinthoma como acontecimento de corpo desenvolvido por Lacan. Tentaremos sustentar que o acontecimento contingencial, que caracteriza o surgimento do sinthoma, pode ser lido também como um acontecimento traumático. Para finalizar, resgataremos a noção de supereu legada por Freud e Lacan, para em seguida vinculá-la ao trauma.


Segundo Freud “Nur die Größe der Erregungssumme macht einen Eindruck zum traumatischen Moment, lähmt die Leistung des Lustprinzips” . Na tradução brasileira emerge a versão: “É apenas a magnitude da soma de excitação que transforma uma impressão em momento traumático, paralisa a função do princípio de prazer [...]” . Proponho traduzir a palavra Eindruck pela que se segue: marca. “É apenas a magnitude da soma de excitação que transforma uma marca em momento traumático, paralisa a função do princípio de prazer [...]”. A palavra marca implica o corpo que emerge no acontecimento traumático. Necessito ainda sublinhar que o traumatismo é um acontecimento marcado por um momento que não é regulado pelo princípio do prazer. Esse encontro traumático antecipa um falasser.

 

A paixão de lalíngua.


Para Lacan, a língua não é feita para dizer, mas para gozar. Assim, ele nos oferece uma versão nova do aforismo cartesiano. No lugar do penso logo sou, ele substitui por penso, logo Se goza . Esse “Se goza” encontra-se no corpo ainda no momento precoce da vida. O fato mesmo de que sejamos falasseres implica que falamos com um corpo que se goza.


É com esse propósito que Lacan desenvolve a noção de lalíngua. Ele se serve, na intervenção realizada no VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, intitulada “A Terceira”, da relação do homem com o significante para compará-la ao ron-ron do gato. Quando o gato emite esse pequeno som caraterístico, ele mobiliza seu corpo fazendo-o vibrar. Lacan injeta, pois “uma ponta a mais de onomatopeia em lalíngua [...]” . O que mostra que esse som é “sem nenhuma dúvida o gozo do gato” . Ferreira Gullar em seu poema “O Ron-ron do gatinho” descreve, com sutileza, o barulhinho do gatinho como semelhante a “um motor afetivo”.


O que se encontra em jogo na lalíngua é o uso que fazemos dela. Com um novo uso de lalíngua torna-se possível que o gozo do corpo se civilize a partir da emergência dos objetos que fazem “o núcleo elaborável do gozo” . Assim, esse gozo lido como objeto pequeno a é nomeado como fora corpo. Lacan também sinaliza, nessa mesma operação, que lalíngua é um lugar de depósito, de escrita, de ciframento do gozo perdido, negativado.


Assim, dentre as formulações que emergem em Joyce le Symptôme, sublinho “o sintoma no que ele é: um acontecimento de corpo ligado a que a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem” . Ainda no mesmo texto, emerge uma passagem onde Lacan se considera como “mestre de lalíngua, da que é chamada francesa [...]” e, ele chega a essa mestria, “por testemunhar o gozo próprio do sintoma. Gozo opaco por excluir o sentido” .


Nós, que realizamos algumas leituras dos Cursos de Jacques-Alain Miller, percebemos o quanto ele nos esclarece, de maneira rigorosa, o ensino lacaniano. Isolando uma de suas leituras sobre o acontecimento de corpo, constatamos que esse acontecimento é indissociável da incidência de lalíngua. Desdobra-se que a emergência do sintoma como acontecimento provém do corpo vivo que goza. Assim, “o gozo do sintoma testemunha que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo (...)” . Isso nos permite afirmar que o acontecimento de corpo no qual o sintoma se ancora nunca pode se tornar objeto de uma pedagogia. Dessa maneira, não só é impossível “pedagogizar” o gozo do sinthoma, mas também traduzir a totalidade de lalíngua em linguagem. Miller, no que se segue, comenta o sinthoma como um acontecimento de corpo:

 

(...) lalíngua é uma paixão, é sofrimento. Há um encontro entre lalíngua e o corpo e, desse encontro nascem marcas sobre o corpo. Lacan chama sinthoma a consistência dessas marcas, é em que ele pode reduzir o sintoma a ser um acontecimento de corpo, alguma coisa que ocorreu no corpo pela incidência de lalíngua.

 

Trauma e supereu


Gostaria, nessa última parte, de concluir meu trabalho provisoriamente trazendo algumas questões das relações entre o trauma e o supereu. A intenção é localizar na experiência do final de uma análise pontos que estabelecem aproximações entre o trauma, o sinthoma e o supereu. Ilustrarei com o exemplo clínico apresentado por Lacan. É uma paciente que já teria feito uma análise antes mesmo de recorrer a Lacan. Ele tinha sintomas “bem singulares no domínio das atividades da mão [...]” . A análise anterior, conduzida segundo a linha clássica, não obteve nenhum êxito. Ela reduzia a interpretação dos sintomas da mão em torno da masturbação infantil (interdições, repressões).


Ora, um elemento que Lacan isola na história desse sujeito é a filiação dele na religião islâmica. Acresce a isso que o seu paciente tinha uma aversão em relação a lei do Alcorão. Ele nos adverte, ainda, que a lei na área islâmica tem um caráter totalitário. Assim, o sujeito em questão desconhecia a referida lei. Isso chama a atenção de Lacan, porque o sujeito desconhece a sua filiação simbólica ou filiação cultural. Cito Lacan: “Com efeito; a lei do Alcorão traz isso a respeito da pessoa que se tornou culpada de roubo – Cortar-se-á a mão” .
Durante a infância do paciente, ele tinha ouvido dizer “[…] que seu pai era um ladrão e que devia então ter a mão cortada”. Nesse contexto do ensino do Lacan, a ordem simbólica funda as relações enunciadas pela lei. Na leitura realizada por Lacan, seu paciente isola o resto dessa “lei de maneira privilegiada” e foi isso que “passou aos seus sintomas”.


O resto das referências simbólicas do meu paciente, desses arcanos primitivos em torno dos quais se organizam para tal sujeito suas relações mais fundamentais ao universo do símbolo, foi afetado de decadência em razão da prevalência particular que tomou para ele essa prescrição. Ela está, nele, no centro de toda uma série de expressões inconscientes sintomáticas, inadmissíveis, conflituais, ligadas a essa experiência fundamental da sua infância.

 

Na experiência dessa análise, Lacan indica os “elementos traumáticos – fundados numa imagem que nunca foi integrada” . São eles os responsáveis pela produção de buracos, de pontos de fratura na unificação da história de sujeito. Ele sustenta, nesse momento do seu ensino, que a história é unificada “pela lei, pelo seu universo simbólico, que não é o mesmo para todos” .


Na direção do tratamento, Lacan cria as condições para ler esse fora da lei/fora da história, que se encontrava presente, como injunção do supereu. É aqui, nesse contexto, que ele reenvia a incidência superegóica ao acontecimento traumático. Em suas palavras:


Um enunciado discordante, ignorado na lei, um enunciado promovido ao primeiro plano por um evento traumático, que reduz a lei a uma ponta cujo caráter é inadmissível, inintegrável – eis o que é essa instância cega, repetitiva, que definimos habitualmente pelo termo supereu.

 

É curioso observar que Lacan no mesmo Seminário se serve do termo resto das referências simbólicas do seu paciente, para também articulá-lo com o supereu. Chamou minha atenção que desde esse momento de seu ensino, ele alude aos restos como localizadores da insensatez, do fora sentido do supereu. No fundo, o supereu é um resto que testemunha uma emergência dissonante do real. Ele, mediante enunciados discordantes, não se articula com S2. Assim, ele não faz apelo ao Outro. Portanto, podemos inferir que o advento do acontecimento imprevisto traumático é um ponto onde se origina o supereu. Em outros termos, o trauma encontra-se presente no advento do supereu.


Finalmente, aceitando essas articulações entre supereu e trauma, isso traz uma consequência importante que sinaliza por que algo de incurável insiste no final de uma análise. Talvez, devamos afirmar que, dentre os restos sintomáticos que palpitam numa experiência de final análise, o resíduo superegóico testemunha uma das sacudidelas das defesas frente ao real. Quero dizer com isso que o sinthoma reduzido no final de análise produz algo incurável menos dirigido pelo supereu.

 

Articulando a segunda clínica

Elisa Martins Oliveira Silva
Cartel: Leitura de “A Terceira”
Cartelizantes: Alberto Murta (mais-um), Elisa Martins, George Ramos, Judite Torres, Tânia Prates

 

Minha hipótese é de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante. O que enuncio nessa fórmula mínima de que um significante representa um sujeito para outro significante. O significante, em si mesmo, não é nada definível senão como uma diferença para com outro significante. É a introdução da diferença enquanto tal, no campo, que permite extrair da alíngua o que é do significante .

 

Lacan começa falando na “Terceira” do rom-rom onomatopéico que seria o gozo do gato ao fazer o seu corpo todo vibrar, para introduzir a dimensão do “se goza”, do corpo que goza de si mesmo. Para isso, ele subverte a fórmula cartesiana dizendo “penso logo se goza”, rejeitando o “logo” usual que diz: “eu go(z)sou”, que conjuga ser e gozo, duas instâncias distintas, uma vez que o ser está relacionado à ontologia, dimensão do sentido, enquanto o gozo ao que não comporta sentido . Descartes, pautado pela música (dança) do ser não quis dizer, portanto, com o seu go(z)sou que gozava da vida. Contudo, como falante, a lalíngua também está em jogo para ele. A lalíngua é como o óleo que não se mistura na água, um saber impossível de reintegrar pelo sujeito, que só tem um significante para representá-lo diante desse saber .


“O Um encarnado na alíngua é algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento. É o de que se trata no que eu chamo de significante-mestre [...]” . Para dar um exemplo de como se manifesta lalíngua, Lacan diz que foi ela que o permitiu fazer de seu S2 uma questão, e perguntar: “[...] es dos, de veras, se trata de ellos en el lenguaje? (est-ce bien d’eux qu’il s’agit dans le langage)” . A homofonia presente em d’eux que quer dizer tanto de eles quanto dois em francês, possibilita Lacan questionar se será mesmo do “de eles” “dois” que se trata na linguagem. Com isso, ele chama a atenção para o fato de que a linguagem não se resume apenas a articulação significante, ao par ordenado S1 –S2, e, desse modo, não é somente comunicação . Isso porque é lalíngua que sustenta a linguagem, retirando dela toda a consistência e solidez. Assim, o Outro se mostra um vaso de barro , frente ao real de gozo de lalíngua.


Lalíngua não se reduz, nesse sentido, a um sistema organizado, a uma estrutura em que podemos demarcar ou discernir bem os elementos. De sorte que a linguagem, afetada por sua estrutura fluida, configura-se como uma tentativa sempre parcial de traduzi-la. Assim, a linguagem permanece sempre aquém, pois não captura, não absorve pela via do significante o gozo opaco ao sentido inerente à lalíngua:

 

A linguagem sem dúvida é feita de alíngua. É uma elucubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem.

 

O inconsciente é apenas uma hipótese , uma construção singular do sujeito, em relação à impossibilidade de dar sentido à lalíngua. Este real de gozo intraduzível de lalíngua implica, por sua vez, em um gozo auto-erótico que coloca em jogo a dimensão do corpo, que ficava apagada na perspectiva da primeira clínica. Nesta, o sujeito era o espaço vazio, sem corpo, do que restava da operação significante sendo, por conseguinte, pontual e evanescente: “[...] um significante representa um sujeito para outro significante [...]” .

 

Nessa lógica, a clínica se dava pela injeção de sentido, pela oferta do lado do analista, de um significante que operasse retendo, metonimicamente, ou substituindo, pela via da metáfora, o sentido. Isso colocava em foco o significante, em detrimento do gozo, que se apresentava apenas enquanto negativo, ou seja, na medida em que podia ser subtraído ou metaforizado pelo significante. Daí, a significantização da pulsão de que fala Miller no Curso A experiência do real no tratamento psicanalítico. É a pulsão concebida como demanda em direção ao Outro, interpretada, portanto, pela via do sentido, de um querer-dizer em relação ao Outro.


Apenas com a tematização do gozo feminino que Lacan passa a apontar uma face do gozo que espaça à lógica fálica. O gozo do Outro em paralelo ao gozo fálico irá revelar o que há de real no gozo e que não se submete à interpretação. Desse modo, a partir da segunda clínica, evidencia-se, ao contrário de um querer-dizer, um querer-gozar, o qual entra em curto-circuito com o Outro. Nesse sentido, “[...] o inconsciente, não é que o ser pense [...] o inconsciente, é que o ser; falando, goze e, acrescento, não queira saber de mais nada. [...] não há desejo de saber [...]” . O falante, no fundo, não quer saber, mas quer gozar, esse gozo que desmonta e despedaça o Outro – fazendo vacilar o estatuto da transferência enquanto suposição de saber – introduz uma dimensão que não passa pela via da interpretação cuja finalidade é o sentido. Avesso ao sentido, tal gozo não remete ao Outro, pelo contrário resta impossível de ser simbolizado pelo significante.


No entanto, a segunda clínica não destitui a primeira, apenas coloca o acento sobre o gozo ao invés do significante, o que faz uma grande virada no ensino de Lacan. Se a linguagem é sustentada por lalíngua, então, a possibilidade da articulação significante em suas duas formas elementares, metáfora e metonímia, só são possíveis porque a existência de lalíngua comporta o equívoco que impossibilita a construção de um sentido único, fechado. O real impossível de lalíngua sustenta a impossibilidade da relação sexual, daí a distância e o hiato entre S1 e S2.


É o equívoco presente na linguagem proveniente de lalíngua que permitiu Lacan, por exemplo, deslocar o sentido do sonho de uma de suas pacientes fugida da segunda guerra, de Gestapo, entidade nazista responsável pela captura dos judeus, para gest à peau, gesto na pele. O gesto na pele é, por sua vez, seguido de um ato, do toque de Lacan no rosto de sua paciente. Esse deslocamento significante, provocado pela homofonia inerente às palavras tem como suporte lalíngua, possibilitando com que algo do sofrimento do sujeito, embora não diminuísse, fosse transformado em alguma outra coisa. Tal interpretação não tem como desdobramento o sentido, mas o gozo que implica a presença do corpo, não só do sujeito como também do analista. O que se comprova pelo fato de que a paciente não sabe bem explicar o que aconteceu naquele dia, apenas que algo mudou e que a lembrança do gesto-toque ainda está viva em sua memória.

Agenda dos Cartéis na EBP

 

Delegação Espírito Santo

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Tânia Martins

Aconteceu: V Jornada de Cartéis da Delegação ES da EBP
Resenha de Tânia Martins, Hitala Gomes e Lucas Fraga Gomes (Comissão de Cartéis da Delegação Espírito Santo)

 

Nos dias 25 e 26 de outubro de 2013, ocorreu a V Jornada de Cartéis na Escola Brasileira de Psicanálise–Delegação Espírito Santo, que contou com a presença de Maria Josefina Sota Fuentes.
Na sexta-feira, Maria Josefina fez uma conferência com o tema “O Cartel e a Escola de Lacan”. De início, afirmou que uma questão baliza seu trabalho é: “por que o Cartel?” Assim, ela questiona se o fazer Cartel se insere dentro da lógica do automaton ou se deve-se fazer Cartel devido à especificidade do dispositivo que traz em cena o furo do real e os paradoxos da transmissão da experiência da psicanálise. Destacou na sua fala a importância do Cartel como um trabalho de transferência para a Escola e constatou que na EBP o trabalho em Cartel tem acontecido, inclusive com um número considerável de cartéis inscritos.


Na manhã de sábado foram feitas três mesas com apresentações de trabalho oriundos de Cartéis, que contaram com comentários importantes de Maria Josefina.


A primeira foi composta por dois membros do Cartel “Leitura do Seminário XVI de J. Lacan” que está em funcionamento. Hítala Gomes com o tema “Afinal de que Um se trata”, e Lucas Fraga Gomes com o tema “Além da Fantasia”. Ambos os textos foram produzidos a partir de questões que surgiram numa Noite de Cartéis que ocorreu na Delegação do Espírito Santo no mês de Setembro. Foi destacada, assim, a importância de se apresentar o que é produzido durante o trabalho de Cartel, o efeito de abertura no saber produzido pelo cartelizante, a partir das questões que recebe do coletivo da Escola.


A segunda mesa contou a participação de dois membros do Cartel “Leitura de A Terceira de J. Lacan”, Cartel este recentemente dissolvido. Elisa Martins Oliveira Silva com o tema “Articulando a segunda Clínica”, e Alberto Murta com o tema “Trauma, sinthoma e supereu”. Além das questões propostas por nossa convidada e pelos demais, destaca-se uma discussão sobre a crise no Cartel, a dificuldade de dar continuidade ao trabalho, e o fracasso que teve efeito de produção.


A última mesa foi composta por Tânia Martins com o tema “Sublimação”, que foi o trabalho de conclusão do Cartel “Leitura do Seminário A ética da Psicanálise de J. Lacan”, e por Adelmo Rossi com o tema “Uma questão sobre a origem feminina do amor”, trabalho de conclusão do Cartel “Tradução do artigo de 1932 de Freud, Die Wiblichkeit, A feminilidade, do alemão para o português”. Estes trabalhos suscitaram unicamente questões ligadas a cada texto.


Com a realização desta Jornada de Cartéis na Delegação Espírito Santo da EBP recolheram-se produtos de trabalhos de Cartéis em funcionamento, dissolvidos e que já concluíram. O discurso dos cartelizantes mostrou a particularidade do trabalho em Cartel como uma experiência que implica cada um com sua questão, na maneira como trabalha seu tema.


COMISSÃO EDITORIAL

Comissão Nacional dos Cartéis da EBP: Paola Salinas (Coordenadora), Inês Seabra, Cristiana Gallo, Cristiane Barreto e Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Logomarca: Luiz Felipe Monteiro sobre obra de Escher

 

Dobradiça de Cartéis