Autismo medicalizado:

a batalha continua

Fátima Sarmento

 

 

A recente indicação da Risperidona, pelo Ministério da Saúde, para o tratamento do sintoma autista, reacende nosso temor de que a batalha do autismo esteja mais a serviço dos interesses das multinacionais farmacêuticas do que da preservação e promoção da subjetividade de cada autista, tratado um a um. Agnès Aflalo, no seu livro Autismo: novos espectros, novos mercados (1 ) admite que, na atualidade, a infância tornou-se refém permanente da indústria do medicamento. Segundo a autora, as doenças que estarão na moda no futuro são decididas hoje nos escritórios de marketing dos grandes laboratórios, e é a eles que devemos a emergência de dois novos alvos: as crianças e os idosos A criança é uma presa fácil para estimular as vendas. Ainda faz parte do jogo ampliar os critérios de uma doença, como no caso do autismo. Depois da moda da hiperatividade (TDAH), lançou-se a moda do transtorno bipolar juvenil (ETB), fazendo explodir a venda de antidepressivos. Surge a pílula da obediência para as crianças catalogadas como "hiperativas"; na sequência, a pílula da felicidade para as catalogadas como "deprimidas" e, agora, no Brasil, o autismo consegue a façanha de se fazer identificar pelo público com um medicamento em particular: a Risperidona.


O pacote da medicalização para tratamento do sintoma autista sugere tomar o autismo como uma enfermidade, e não como um "funcionamento subjetivo singular". Sabemos que as perturbações apresentadas pelos sujeitos autistas fazem sofrer o Outro– tanto familiar quanto escolar -, daí o autismo ser considerado como um dos nomes do mal-estar contemporâneo. Todos querem nomear uma causa, decifrar o enigma que envolve esses sujeitos. Trata-se, na verdade, de uma perturbação que não chega a fazer para o próprio sujeito um sintoma, uma vez que não se corporiza, e isso se deve ao fato de, no autismo, a representação do corpo como unidade imaginária não estar sequer adquirida.


Tem sido comum na clínica receber pais de crianças diagnosticadas como autistas, que viajam duas vezes no ano para os Estados Unidos e retornam com os filhos medicados e convictos de que o autismo se deve a um déficit genético ou à vacinação na primeira infância, ou ainda, ao tipo de alimentação ingerida pela criança. De maneira geral, os pais se sentem mais aliviados quando encontram uma causa para a perturbação do filho.
Para a psicanálise de orientação lacaniana, o que funda a estrutura é a insondável decisão do ser. Não dá para sondar o que leva uma criança muito nova a tomar a decisão de se fazer sem o Outro como é o caso do autismo. O nascimento de uma criança, conforme Caroz, (2) não responde a nenhum programa preconcebido, nenhuma garantia de que as coisas vão dar certo. Caroz insiste que, salvo no sonho de clonagem da ciência, ninguém pode saber antecipadamente as coordenadas subjetivas de uma criança ao nascer. O trauma para a psicanálise tem a ver com a contingência. Ele provém do modo como cada um goza da língua materna criando seu dialeto singular, chamado por Lacan de alíngua. Muitas vezes, ali onde deveria haver um encontro com o olhar do Outro, ocorreu um desencontro que impossibilita a criança de dar significação à presença do Outro. A ideia do trauma como contingência libera a psicanálise da pergunta sobre a causa e de atribuir aos pais a culpa pela causalidade do autismo.


Sabemos que, em alguns casos, a medicação pode fazer-se necessária, mas o que se observa na atualidade é um abuso, um uso indiscriminado de medicamentos em crianças pequenas, diagnosticadas por professores, pedagogos, diretores de escola, os quais se arvoram a etiquetar as crianças. A psicanálise no seu rigor ético evita diagnosticar crianças pequenas, considerando que estão em momento de efetuação de estrutura. Muitas crianças autistas são diagnosticadas como deficientes ou como psicóticas, e muitas psicóticas são diagnosticadas como autistas. Na Argentina, realizou-se a primeira investigação do Departamento de Autismo e Psicose na Infância sobre Diagnóstico e Tratamento, durante os anos 2010-2012.(3) De 197 casos recolhidos, faziam uso de algum tipo de medicação 172 casos. De 70 casos medicados, correspondiam ao diagnóstico de autismo 25 casos medicados com Risperidona. Essa investigação mostra que apesar da Risperidona estar sendo agora apresentada como uma novidade associada ao tratamento do autismo, essa medicação já está no mercado há um bom tempo. No Brasil, os psiquiatras utilizam a Risperidona para pacientes portadores de transtornos diversos e não especificamente para o autismo. Ainda que não existisse uma medicação específica para o autismo, as crianças autistas estavam sendo medicadas da mesma maneira que as psicóticas. Na psicanálise, há uma distinção entre autismo e psicose. Não há passagem do autismo para a psicose nem para a neurose. As perturbações na linguagem apresentadas por crianças pequenas não devem ser confundidas com o autismo. É preciso escutar essas crianças, sabendo que não se trata de normatizá-las. Supor um sujeito significa também antecipá-lo. Cabe ao analista supor que nos signos do gozo trazidos pela criança, na sessão, o sujeito comparece e é daí que pode surgir a dimensão do Outro.


A criação do Observatório Infância Medicalizada
A Federação Americana de Psicanálise de Orientação Lacaniana (FAPOL), com o apoio do presidente da Associação Mundial de Psicanálise, estabeleceu neste ano de 2014 a criação de quatro observatórios permanentes, sobre temas concernentes à psicanálise em sua relação com os diversos contextos sociopolíticos nos quais se desenvolve nossa prática nas três Escolas da América: a EOL, a EBP e a NEL. Um dos observatórios será dedicado à Infância Medicalizada. Os coordenadores desse observatório são: pela EOL, Gustavo Stiglit; pela EBP, Fátima Sarmento e pela NEL, Aliana Santana. Para compor a equipe da EBP, temos Tânia Abreu (BA), Paula Borsói (RJ) e Mônica Bueno (SP).


Neste primeiro momento, os coordenadores das três escolas estão definindo a modalidade de trabalho para, em breve, apresentar um relatório sobre esse tema. Se algum colega desejar aproximar-se do tema sobre a Infância Medicalizada, poderá entrar em contato com a coordenação do observatório.

(1 )Aflalo, Agnès. Autismo: novos espectros, novos mercados. Tradução de André Antunes da Costa. Petrópolis, RJ: KBR, 2014. (Coleção Psicanálise e Ciência).

(2 )Caroz, Gil. O que é perseguido. Lacan Cotidiano, n. 402. Versão em Português. EBP-Veredas. Disponível em:<WWW.lacanquotidien.fr>.

(3 )Tendlarz, Silvia Elena; Alvarez Bayon, Patricio. ¿Que és el autismo? infancia y psicoanálisis. Buenos Aires: Colección Diva, 2013.p. 114-115.

 

Atuação da Comissão Autismo da Escola Brasileira de Psicanálise em 2014

Por Paula Pimenta

 

A Comissão Autismo da EBP mantém consistente sua participação no Movimento “Psicanálise, Autismo e Saúde Pública” (MPASP). Nos meses de março e agosto se fez presente nas jornadas do Movimento, inclusive com apresentação de trabalhos de seus membros.


Com o propósito maior de sustentar politicamente a atuação da psicanálise na clínica do autismo, o MPASP já firmou seu reconhecimento em âmbito nacional, tendo participação efetiva no Comitê de Assessoramento do Ministério da Saúde para Implementação da Política Pública de Atenção ao Autismo.


Também no Campo Freudiano a Comissão Autismo, em parceria com a Diretoria de Biblioteca da EBP, tem demarcado sua política recorrendo à modalidade escópica da exibição de filmes. “À Ciel Ouvert”, de Mariana Otero, e “Otras Voces”, de Ivan Ruiz, são lançamentos cujas exibições estarão circulando entre nós, neste segundo semestre. “Otras Voces" será apresentado em uma das Plenárias do Momento Atual que a Comissão Autismo presidirá no XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que terá lugar em novembro, em Belo Horizonte. “À Ciel Ouvert” está sendo exibido no início deste mês de outubro, no Festival do Rio 2014. Um terceiro filme, “Elle s’appelle Sabine”, de 2007, recebeu legenda colocada pela Diretoria de Biblioteca da EBP e foi exibido em setembro, em uma atividade da EBP-RJ que teve Silvia Tendlarz como convidada internacional.

 

Estão previstas novas exibições dos filmes nas seções e delegações da EBP.


O trabalho da Comissão Autismo prossegue, com muito entusiasmo, tendo sido amplificado politicamente em nossa Escola Una pela recente criação do Observatório Internacional sobre o Autismo, que está a cargo de Vilma Cocoz, incluindo Elisa Alvarenga, pela EBP, com vistas ao Congresso da AMP de 2016. Uma nova parceria para seguirmos em frente!

 

Muito além da Risperidona

Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública

 

O Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), com seus profissionais e instituições associados em todo o território nacional, vem se manifestar a respeito da nota do Ministério da Saúde publicada no dia 12 de setembro sobre a incorporação de "primeiro medicamento para sintoma do autismo".


Em primeiro lugar, a manchete (que se replicou em diversos artigos sobre essa nota oficial) induz a erro, pois parece se tratar de um novo medicamento (o primeiro) e específico para autismo. A Risperidona é uma medicação utilizada já há algum tempo pela psiquiatria para problemas como agitação, irritabilidade e agressividade graves que não respondem bem a outros medicamentos. É usada para pacientes portadores de transtornos mentais como psicoses, esquizofrenias e transtornos depressivos graves, entre outros, e não especificamente para pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo.


O Ministério da Saúde elaborou o documento "Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde das Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo e suas Famílias na Rede de Atenção Psicossocial do SUS" que estabelece, para os casos de suspeita de autismo, um diagnóstico interdisciplinar e um projeto terapêutico singular. Em alguns casos, o uso de medicação pode ser benéfico, como ação complementar a outros tratamentos e, neste sentido, o MPASP apoia que as famílias tenham acesso à medicação no SUS quando esta é necessária. Porém, é preciso extrema cautela ao divulgar medicamentos com a promessa de melhorar a qualidade de vida desses pacientes, uma vez que pode incentivar pais, professores e até mesmo médicos a buscarem um suposto alívio rápido dos sintomas desagradáveis (como agitação psicomotora e agressividade) sem considerar que a medicação, quando utilizada, deve fazer parte de um tratamento abrangente conduzido por uma equipe interdisciplinar.


Essa situação é ainda mais preocupante ao se considerar o autismo, que se manifesta na primeira infância, quando tal medicamento não é ainda indicado. Ainda, ao longo da infância, seu uso precisa ser rigorosamente avaliado já que a Risperidona, mesmo sendo uma medicação moderna e que pode responder bem em alguns casos, interfere no metabolismo de glicose, podendo ocasionar diabetes e obesidade; interfere na motricidade e pode ter efeitos de impregnação neuroléptica; pode interferir nas vias respiratórias, causar incontinência urinária, hiperprolactinemia, sialorréia, constipação, vertigem, acatisia e outros efeitos colaterais ainda não devidamente testados e comprovados em crianças. Portanto, o uso de Risperidona deve ser criterioso e bem consciente, disponibilizado somente dentro de um plano terapêutico que envolva o paciente, a família, a escola e os diversos profissionais clínicos. O uso de medicação é complexo e deve ser feito, se necessário, a partir de avaliação interdisciplinar em que se considere o tratamento e acompanhamento longitudinal do paciente.

 

Infelizmente, colegas de várias regiões do Brasil relatam casos de crianças cujo diagnóstico de autismo ainda não foi fechado, mas que já tomam o medicamento. E até casos de escolas que pedem a pais que mediquem seus filhos. Existem ainda crianças cujo tratamento se resume à medicação, e isto é muito grave, pois sabemos que o autismo precisa de um tratamento que leve em conta a complexidade do quadro e não somente um tratamento sintomático!


Em segundo lugar na nota referida, a coordenadora-geral de Saúde da Pessoa com Deficiência do Ministério da Saúde afirma que a medicação é fundamental para o desempenho da criança e informa que o atendimento no SUS é feito na atenção básica e na área de reabilitação, excluindo a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) cujo ponto estratégico é o Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) no qual há anos também ocorrem diversos tratamentos de pessoas com autismo e seus familiares com importantes resultados.


Nesse sentido o MPASP alerta para uma eventual e equivocada redução do tratamento do autismo à área da pessoa com deficiência e à medicalização, já que em tal tratamento, por sua complexidade, é imprescindível cuidar das inabilidades e do sofrimento psíquico de modo articulado. Por isso afirmamos nossa posição de que o autismo torna necessário, acima de tudo, um tratamento interdisciplinar, intersetorial e com a participação da família.


A experiência de inúmeros profissionais que atuam em clínicas públicas e privadas, equipes interdisciplinares, ONGs, consultórios particulares, CAPSis e hospitais mostra que pode haver mudanças significativas nos quadros de autismo, principalmente quando há detecção e intervenção precoces.


A "política de incorporação tecnológica" do Ministério da Saúde pode ser um investimento público que acabe revertendo mais em ganhos para a indústria farmacêutica que para os verdadeiros interessados: as crianças e adolescentes com autismo e suas famílias. Disponibilizar no SUS medicamentos para quem precisa é importante, porém precisamos discutir e incorporar tecnologias de cuidado, por isso, recomendamos que, além das medicamentosas, estas sejam ampliadas para ações terapêuticas multiprofissionais e intersetoriais nos diversos contextos sociais, como bem aponta o documento do Ministério da Saúde "Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde das Pessoas com TEA e suas Famílias na Rede de Atenção Psicossocial".

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