Editorial

Nos dias 22 e 23 de agosto a Diretoria da EBP esteve presente em Florianópolis para acompanhar os trabalhos da IX Jornada da Seção Santa Catarina e o Primeiro Colóquio do Observatório Lacaniano da EBP. Foi possível ver o grande entusiasmo dos presentes em torno dos temas atuais e igualmente do grande trabalho que a EBP vem desenvolvendo nos últimos anos. Na Seção Destaque do DR de setembro vocês poderão ler um texto escrito pelos integrantes do Observatório Lacaniano bem como três dos excelentes trabalhos que foram apresentados.

 

I Colóquio do Observatório Lacaniano da EBP.


Em 23 de agosto de 2014, por ocasião da IX Jornada da Seção Santa Catarina, "Psicanálise, crenças, leis", realizou-se, em Florianópolis, o I Colóquio do Observatório Lacaniano da EBP, "Desafios Contemporâneos à Psicanálise", dando início, assim, à primeira de uma série de atividades para transmitir o trabalho necessário a ser feito, diante dos desafios que os representantes nacionais do Amo contemporâneo colocam à psicanálise no nosso país. O evento contou com a participação do Presidente do Conselho da EBP, Luiz Fernando Carrijo; dos membros da Diretoria da Escola, Marcelo Veras, Maria Josefina J. Fuentes, Glacy Gorski e Tânia Abreu; dos membros do Observatório, Samyra Assad (Coordenadora), Romildo do Rego Barros, Iordan Gurgel, José Carlos Lapenda e Oscar Reymundo. Também vieram colegas de outras Seções e Delegações da Escola que prestigiaram a realização deste I Colóquio com sua presença e participação nos debates.


As elaborações apresentadas no I Colóquio se distribuíram na abertura feita por Samyra Assad, com o texto "Desafios contemporâneos à Psicanálise: sustentar o real para que ela sobreviva", e em duas mesas redondas: "As leis e o fundamentalismo religioso" e "Quais leis e crenças para a psicanálise?". Na primeira das mesas foram apresentados os trabalhos dos três convidados: a Dra. Jeanine Philippi (Professora do Curso de Direito da UFSC); a jornalista Clara Becker e o psicanalista Mauricio Lessa (representante da Escola Letra Freudiana do RJ, na Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras). Estes trabalhos constituíram verdadeiras contribuições ao tema dos desafios com os quais a psicanálise se depara nesses tempos: a relação cúmplice do Direito com o imperativo de gozo contemporâneo; a formação de psicanalistas numa sociedade presidida por um pastor evangélico; as tentativas por parte de grupos religiosos de regulamentar a psicanálise.


Na segunda mesa, uma prática que não implica o confessionismo (Sérgio Campos), bem como a distinção entre o real da transferência no campo da religião e da psicanálise (Romildo do Rego Barros), até a leitura do quadro da sexuação (Marcelo Veras), compôs um momento inesquecível e caloroso de discussão.


O intenso ambiente de trabalho e desafio se confirmou pelo interesse e ampla participação dos que ali estavam como ouvintes, bem como pelas demandas que se dirigiram ao Observatório a fim de que nele participassem em sua composição. Aprofundamos no vasto estudo que implica as relações e divergências entre a Psicanálise e Religião, bem como a interferência do Estado não laico nas tentativas de regulamentação da psicanálise. A propósito, um exemplo disso foi trazido na abertura do Colóquio: trata-se de um dos milhares cursos de formação oferecidos por internet, e que se proliferam assustadoramente. Nestes, é possível demonstrar o equívoco e o perigo da utilização do termo "psicanálise", acoplado ao termo "paz interior", cursos estes amparados pelo Ministério do Trabalho e Emprego através do Código Brasileiro de Ocupação 2515-50 e aviso 257/57 do Ministério da Saúde...


As premissas de um projeto de lei que visa a regulamentação da psicanálise (até então arquivados em suas dez tentativas desde o ano de 1975) são claramente visíveis nesses cursos, porém não amarram nossos braços e pernas para que continuemos a formar opiniões quanto à impropriedade de se tomar a psicanálise sob a égide de uma ética moral e a serviço do Estado. Enfim, baixamos linha!

 

Para concluir, não podemos deixar de citar o acolhimento exemplar que a Seção Santa Catarina proporcionou ao I Colóquio do Observatório Lacaniano da EBP. Dos brownies em nossos quartos à recepção de cada um dos convidados sugeridos pelo Observatório, bem como a atenção e carinho trazidos em ato pela organização da Jornada nos temas de mesa propostos, na discussão provocada, no livro dos textos apresentados, no local escolhido, nos jantares oferecidos, na gravação em áudio e vídeo – tudo isso consagrou o início da série de participação do Observatório nos eventos da EBP, em meio à beleza alucinante da cidade de Florianópolis.


Samyra Assad (coord.)
Oscar Reymundo (EBP-SC)
Romildo do Rego Barros (EBP-RJ)
Iordan Gurgel (EBP-BA)
José Carlos Lapenda (EBP- PE)
Jorge Pimenta (EBP-MG)
Cássia Rumenos Guardado (EBP-SP)

 

 

A crença no sujeito suposto saber e o "pas de D(i)eux"

Sérgio de Campos1

 

Deus dos Filósofos

Desde a antiguidade, o homem percebeu uma lei organizadora do mundo que engendra a forma e retém um poder formador. Deus é "o princípio de todas as coisas", segundo São Tomas de Aquino, de maneira que Ele poderia ser considerado como a causa formal em Aristóteles, o logos, segundo os gregos, o hokmá para os hebreus, o maat para os egípcios, o tao para os chineses, para os japoneses, o shin e para os indianos, o dharma.


De acordo com as escrituras, Deus não é um nome, tampouco um conceito abstrato como a beleza, o amor ou a harmonia. Conforme o pensador cristão Justino: Pai, Deus, Criador ou Senhor não são nomes, mas atributos2.


Assim, Deus existe apenas como passagem do absoluto ao relativo. Antes, haveria um absoluto enquanto Uno impronunciável e, depois, uma passagem do Uno incomunicável ao Deus relativo aos homens. Portanto, Deus é o princípio que exprime uma relação e vive da comunhão.3 Se por um lado, Deus é um termo relativo, escreve Isaac Newton4, e se constitui como reunião; por outro, a psicanálise se constitui a partir do Uno, sob o paradigma de que não há relação sexual.


Durante séculos, os filósofos se ocuparam em provar a existência de Deus. O primeiro argumento da existência de Deus, proposto por Santo Anselmo, é o Ontológico. O pensamento puro encontra dentro de si o conceito de Deus: "aquilo que do qual não se pode pensar nada maior". O segundo argumento, proposto em 1675 por Nicolas Malebranche em "Da procura da verdade", é ontologista e deriva do primeiro, pois o Ser divino é concebido como condição do conhecimento geral do infinito5.


São Tomaz estabelece uma relação causal entre a existência de Deus e um princípio ordenador, que denominou de "Do governo das coisas". Tomaz considerou Deus a partir de cinco vias: primeiro, do movimento como princípio de onde tudo se move; segundo, como causa de todas as causas; terceiro e quarto, do necessário e do contingente; e por fim, a última via, o princípio da perfeição.


O argumento etnológico da existência de Deus se valida pelo fato que desde sempre os humanos acreditaram em divindades6. O antropológico positivo significa alcançar a Deus pelo espírito elevado e pela grandeza da alma. Em contrapartida, o argumento antropológico negativo, proposto por Pascal, enuncia que, como a razão e os sentidos se enganam mutuamente, é prudente acreditar em Deus7. A aposta de Pascal se conecta ao salto de Kierkegaard, que assinala como sendo a única alternativa ao homem, diante de seu desamparo, é um verdadeiro salto sem qualquer mediação em direção a Deus. O argumento moral de Kant enuncia que a existência de Deus é condição à priori da moral e da ética. Por fim, de Descartes a Einstein, o argumento da garantia impõe-se para que se possa fazer ciência.

 

Deus de Abraão

Contudo há Outro Deus, o de Abraão. Entidade poderosa do primeiro Testamento, o qual, em Gênesis 22:2, coloca-o à prova: "Toma teu único filho, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e o oferece ali em holocausto sobre o monte que eu te indicar". O desfecho desse episódio, todos conhecem. Mas, qual é a sua essência? A obediência total, indiscutível. Kierkegaard escreveu a obra Temor e tremor, na qual apresenta Abraão como "o cavaleiro da fé", o que porta o tipo ideal de fé. Para Kierkegaard, Abraão sai da universalidade ética e entra na particularidade da religião, na relação particular do indivíduo com Deus.

 
O Deus de Abraão é um Deus que "joga os dados" e que está fora do campo da compreensão. Trata-se de um Deus de uma vontade absoluta e indeterminada, a não ser pelo seu próprio querer. Portanto, trata-se de um Deus arbitrário, soberano terrível e de vontades insondáveis. A frase de Santo Agostinho: "Se compreendeste, não é Deus; e se pudeste compreender, compreendeste outra coisa em vez de Deus8", se aplica tanto ao Deus dos filósofos quanto ao Deus de Abraão.


Estudante de colégio católico, deparei-me intrigado com uma incógnita: "Jesus morreu na cruz para nos salvar". Indagava: mas Cristo morreu na cruz para nos salvar de que ou de quem? Cristo morreu na cruz para nos salvar da cólera do próprio Deus. É digna de nota o ódio eterno de Deus para com seus filhos9. Como o novo testamento trouxe o conceito de trindade, o Deus único existe em três formas: pai, filho e espírito santo; então, se Cristo é filho, também é pai e espírito santo. Portanto, com a crucificação, Ele se sacrifica ao sacrificar seu único filho para nos salvar dele próprio.


Se por um lado, o Deus de Abraão é exigente, infunde culpa nos seus filhos, impõe tremor e temor, e demanda provas de amor através de sacrifícios de seus filhos; por outro, o Deus do novo testamento é o Deus do perdão e do amor, que, ao sacrificar-se como o messias e como o cordeiro para o perdão de nossos pecados, estabelece uma "nova aliança". Portanto, a religião judaica é a religião do pai e da culpa; em contrapartida, a religião cristã é a religião do filho e do perdão.


Depois do cisma de Lutero, surgem as religiões pentecostais e, mais recentemente, as novas pentecostais invadem o mundo evangélico. Atualmente, novas religiões, sem ortodoxia e de forte apelo eclético, são constituídas por retalhos obtidos de diversas origens - como a ecologia, o esoterismo, a psicologia, o paganismo, o cientificismo, as tradições orientais, entre outras - reconfigurando um cenário religioso múltiplo e plural10.

 

Crença e Fé:

As crenças são princípios de ação, expressas pela linguagem como atitudes proposicionais: acreditamos que, esperamos que, juramos que... Acreditar em uma afirmação implica em considerar que ela representa fielmente algum estado no mundo. A liberdade de crença é um mito, pois se não houver certa coerência, lógica e alguma evidência, a crença perderá sua força11. Assim, a crença é capaz de avaliar novas verdades propostas à luz de inúmeras outras já aceitas.


Contudo, a fé como um subconjunto da crença é uma predisposição para crer. A experiência religiosa incide sob duas modalidades: "a fé com a qual se crê", a fé como confiança; e "a fé em que se crê", a fé como crença.12 Portanto, o conceito de fé abriga a confiança subjetiva e a crença objetiva. Se por um lado, o ato subjetivo, fides qua, faz do homem um fiel ou um crente; por outro, os conteúdos objetivos, fides quae, especificam qual tipo de crente ele é. O nexo entre as duas fés é decisivo, contudo, não é garantia de entusiasmo com a fidelidade doutrinária.


Se Deus é relativo, é relação; religião é religare, coligar o homem com Deus. A religião nasce como tentativa de dar sentido ao mistério da vida e utiliza o mito para realizar essa tarefa. O mito, como pensamento mágico e causa eficiente13, é a forma mais original do pensamento humano e, como verdade, é para além da exatidão, pois ela coincide com a lógica que move a vida.


A tradição é um termo que se presta à religião para reviver o sentido do rito e da ordem simbólica. A tradição é a causa e o efeito de conservação da ordem formal da mensagem de uma instituição que coloca em pauta sua ortodoxia sob a égide do Nome do pai14. Aliás, a tradição quando se imiscui na instituição psicanalítica acaba por lhe conferir semelhança com a igreja. Lacan denunciou a tradição na IPA como uma SAMCDA. Em contrapartida, a transmissão vai de encontro à tradição para nos orientar em direção ao matema. Contudo, Lacan foi mais além ao propor a reinvenção da psicanálise a partir do passe. Portanto, cada um terá que inventar, de modo singular, a psicanálise sob prisma de seu próprio sinthoma15.

 

A Ética da Convicção e a Ética das Consequências

A psicanálise e a religião são vizinhas e distantes. Cotejar ambas nos faz considerar a ética das consequências e a ética da convicção. A religião estabelece a conexão entre o pecado e o afã de salvação. O pecado não é senão uma maneira de nomear um gozo fora da lei. Assim, a psicanálise não engendra a culpa, não penitencia, não absolve o pecador, não perdoa, tampouco alivia; entretanto responsabiliza, retifica o sujeito, tornando-o capaz de assumir seus modos de gozo. Na ética das consequências, o falasser reconhece o peso de seus atos e seus efeitos, que alcançam o real. Portanto, se a religião percorre o caminho do real ao sentido; a psicanálise retorna do sentido ao real.


O sujeito suposto saber é fruto da ética das consequências. Ele é uma crença de que se pode saber algo, que se pode descobrir através do dizer, que se pode saber sua própria causa e se responsabilizar por ela. Se na entrada de análise, o sujeito suposto saber está encarnado no analista, no processo analítico, ele se destaca a favor de uma alteridade como inconsciente intérprete da realidade sexual para, no fim, se apagar na destituição subjetiva e no des-ser do analista16 .


A ética da convicção é a ética religiosa ou da salvação, é crer que o Outro não falta e que garante. Essa ética outorga as convenções acolhidas por ela e as consagram como invioláveis17. Assim, o mistério divino pode ser interpretado, mas não suspenso, à medida que o direito religioso se torna sagrado. A ética das convicções está no campo da magia, como causa eficiente, presente nas prescrições dos tabus. Portanto, o silêncio das normas, diante das mutações contemporâneas, contribui para sua permanência inquebrantável. Entretanto, se a ética da convicção por alguma razão se torna inválida, esse acontecimento promove profundas revoluções, agudas ou paulatinas18.


Sob o horizonte da salvação, o religioso tem sua demanda submetida a um desejo suposto de um Deus. Ele entrega a incumbência de sua causa a Deus, expressa como desejo de sacrifício, mas por consequência, corta o seu acesso à verdade, que retorna como culpa19. Aliás, é preciso seduzir Deus, para que sua verdade sirva a uma causa final. Então, o Deus dos filósofos está para a causa formal, assim como o Deus de Abraão está para a causa final.

 

Confissão e confessional

A confissão, a penitência e a reconciliação constituem um dos sete sacramentos da igreja católica. A confissão promove um alívio interior do necessitado de salvação, além da absolvição da culpa e reconciliação. A confissão dos pecados e a penitência, vinculados ao perdão, dispensam a expiação e a compensação de quem foi lesado 20. Embora a confissão transcorra em segredo, ela demonstra o reconhecimento coletivo de haver pecado. 


As confissões determinam um grupo social, se constituem por pessoas unidas pela crença, embora mais evanescentes do que os ritos, são incomensuravelmente superiores em sua eficiência. As confissões não são um todo concreto, visível, que se conhece no seio da sociedade por um interesse comum, mas sim, estruturas coletivizadas, plurais, representando um número indefinido de pessoas que se reconhecem não por um interesse específico, mas pela soma de interesses particulares21·. As confissões representam a tutela dos interesses dos próprios fiéis. A partir do cisma provocado por Lutero, os protestantes e evangélicos abriram mão do sacramento da penitência e da confissão.


Contudo, os evangélicos, gradualmente, passaram a praticar o confessionalismo. Derivado da confissão, o confessionalismo indica uma atitude religiosa inserida no Estado, com a finalidade de privilegiar um grupo religioso, assumindo seus princípios e sua doutrina, incorporando-os na própria legislação do Estado. Portanto, as tentativas dos evangélicos de regulamentarem a psicanálise é uma prática, sobretudo, do confessionalismo, com a finalidade de obter "a confissão no divã", como meio de controle social em benefício da instituição religiosa.


A sociedade civil evita um Estado confessional quando se recusa dar sanção jurídica e legislativa que legitime os preceitos ético-religiosos de um determinado tipo de confissão religiosa. Cabe à psicanálise fazer a sua parte. Portanto, para que as leis tenham apenas um conteúdo ético-racional, é preciso que elas sejam inspiradas na justiça natural e racional, e percebidas pela consciência comum dentro de um período histórico.


1 Membro da EBP e AMP.

2 JUSTINO, filósofo cristão medieval, Segunda apologia, 6,1 (Trad. ital. Gliapologetigreci, Clara Burini(Org.). Roma: CittàNuovaIltália, 1992. p.10-13.

3MANCUSO, V. Eu e Deus. São Paulo: edições Paulinas, 2014. p.70.

4 Idem, p.69. ISAAC NEWTON. [1687] Principimatematici dela filosofia naturale, Alberto Pala (Org.). Torino, Uret, 1965. p.792.

5 Idem, p.77.

6David Hume assinala que a ignorância é a mãe da devoção, contudo, Karl Jaspers replica ao dizer se Deus não existisse, é um fato maravilhoso que uma ilusão tenha inspirado, através de séculos, homens de altíssima categoria.

7HARRIS, S. Natureza da crença. A morte da fé. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p.71.

8AGOSTINHO, Agostinho de Hipona. Sermones, 52, 6, 16.

9 LACAN, J., (1959-1960). A ética da psicanálise. O Seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1988. p.123.

10 LIBANIO, J. B. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. Teologia fundamental. São Paulo: Edições Paulinas, 2010, 42.

11 HARRIS, S. Natureza da crença. A morte da fé. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p.56-58.

12 MANCUSO, V. Eu e Deus. São Paulo: edições Paulinas, 2014. p.60.

13 LACAN, J. Ciência e verdade.  Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998. p.886.

14 WEBER, M. (1922) Economia e sociedade. Livro II. México: Fondo de Cultura Econômica, 1964. p.755.

15 MILLER, J.A-. (1995) Silet, os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Campo Freudiano no Brasil, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005. Lição 7, p.91-92.

16MILLER, J.-A. Introducción a la clínica lacaniana. Conferencias en España. Barcelona: RBA Livros, 2006.

17 WEBER, M. (1922), Economia e sociedade, Livro I. México: Fondo de Cultura Econômica, 1964. p.452.

18 Idem, 453.

19 LACAN, J. Ciência e verdade. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998. p.887.

20WEBER, M. (1922) Economia e sociedade, Livro I. México: Fondo de Cultura Econômica, 1964. p.441.

21BARILLARD, D. BOBBIO, Dicionário de política. Brasília: Editora UNB, 1986. p.224.

 

 

um zero

Raquel Azevedo

 

a + 0 = a parece ser um cálculo sem maiores repercussões cósmicas. Mas o matemático indiano Brahmagupta chegou a um maravilhoso paradoxo ao estabelecer as regras para as operações com o número zero no século VII. Qual seria o resultado da divisão de um número qualquer por zero? Bhaskara, no século XII, acreditava que a resposta era uma quantidade infinita. Sua imagem do infinito advinha de um relógio de sol: a sombra do gnômon no relógio no nascer e no pôr-do-sol é infinitamente longa, dizia, independente do raio do mostrador do relógio ou da altura de seu gnômon. O enigma da divisão por zero ganharia novos contornos quando Leibniz e Newton deram um estatuto de existência ao infinitamente pequeno. Ao fazer a distância entre dois pontos de uma curva tender a zero, o cálculo diferencial inseria uma infinidade de zeros relativos – como Leibniz chamava os infinitesimais – em cada átimo de movimento que pode ser descrito pela simplicidade de uma parábola. Sim, um intervalo qualquer pode ser dividido indefinidamente até Aquiles perder a corrida para a tartaruga, como propunha Zenão, mas os intervalos também são feitos de pequenos zeros – é o que diz a ciência moderna. O medo da tartaruga é a zoomorfia do medo da inoperância (a operação com o zero). Newton vira os infinitesimais nas trajetórias dos planetas em torno do sol. Quando o intervalo de tempo entre os impulsos que desviam um planeta da linha tangente à sua órbita tende a zero, a força de atração parece atuar continuamente. O formato elíptico do movimento translacional da Terra está permeado pelos infinitesimais e, para Newton, os infinitesimais eram o tempo. É aí, como diria Lacan, que ciência e real se enlaçam.


Na conferência Psicanálise e cibernética, ou da natureza da linguagem, Lacan diz que a unidade de tempo é sempre tomada emprestada do real, isto é, se refere ao fato de ele retornar sempre ao mesmo lugar. Teria Newton inventado o real? Pergunta absurda, afinal, como poderia a repetição ter uma origem? Não é de outra parte que vem a exatidão das ciências exatas, argumenta Lacan, senão da sincronia entre o relógio natural que é o sistema solar e o relógio de bolso do homem (primeira mercadoria que vemos ser montada nO Capital de Marx). Huyghens fabricou o primeiro pêndulo perfeitamente isócrono e, portanto, o primeiro relógio perfeitamente preciso, a partir da medida de tempo de Newton, a aceleração da gravidade. Medir tempo com tempo é como estar preso a uma hora dentro de um relógio que não funciona: essa é a experiência que narra Lewis Carroll no Chá Maluco das Aventuras de Alice no País das Maravilhas.


Alice estava sentada à mesa com o Chapeleiro, a Lebre de Março e o Caxinguelê, todos espremidos em uma ponta. "Que dia do mês é hoje?", perguntou o Chapeleiro. Seu relógio estava dois dias atrasado, apesar da tentativa de consertá-lo com manteiga da melhor qualidade. "Que relógio engraçado!", disse Alice. "Marca o dia do mês, e não marca a hora". "Por que deveria? Por acaso o seu relógio marca o ano?", respondeu de forma inesperada o Chapeleiro. "Claro que não", respondeu Alice, "mas é porque continua sendo o mesmo ano por muito tempo seguido". "O que é exatamente o caso do meu", retrucou o Chapeleiro. Mais cedo ele havia proposto uma adivinhação para Alice: por que um corvo se parece com uma escrivaninha? Ao descobrir que ele não tinha a resposta para o próprio enigma, Alice sugeriu que seus companheiros de chá gastassem o tempo com algo melhor. O Chapeleiro pediu para ela ter mais respeito com o Tempo e não chamá-lo de it, mas de him. "Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo", disse o Chapeleiro. "Talvez não, mas sei que tenho de bater o tempo quando estudo música", respondeu Alice. "Ah! Isso explica tudo. Ele não suporta apanhar". O Chapeleiro contou que havia brigado com o tempo no último concerto oferecido pela Rainha de Copas. Enquanto cantava, a Rainha esbravejou que ele estava assassinando o tempo. "E desde aquele momento ele não faz o que peço! Agora, são sempre seis horas". "É por isso que há tanta louça de chá na mesa?", perguntou Alice. "É, é por isso", suspirou o Chapeleiro. "É sempre hora do chá, e não temos tempo de lavar a louça nos intervalos". "Então ficam mudando de um lugar para outro em círculos, não é?", teorizou Alice. O Chapeleiro confirmou. "Mas o que acontece quando chegam de novo ao começo?". Nesse momento, a Lebre pede para mudarem de assunto.


É possível passar da ciência daquilo que se reencontra sempre no mesmo lugar à ciência das possibilidades de encontro, isto é, à ciência da combinação de lugares como tais, através do cálculo de probabilidade, propõe Lacan. O triângulo de Pascal, em que os números são escritos por recursão – como se se espelhassem uns aos outros –, está na base da estrutura binária de que é feita a cibernética. Essa ciência dos lugares vazios nada mais é do que uma outra forma de operar com o zero, transformando-o, ao lado do um, num circuito elétrico. Não se trata mais de escandir o movimento e inventar o real, mas de ligar o real de uma ordem binária a uma sintaxe. Como escrever a a partir de uma combinação de zeros e uns, é isso que importa.


Com o assassinato do tempo nas Aventuras de Alice (e vale lembrar que a utopia de Marx também era a eliminação do tempo – do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da vida), resta apenas um cálculo de permutação circular. De quantos modos se pode sentar à mesa, diante de pratos limpos, quando é sempre seis horas? Talvez Lacan acreditasse que a única ciência verdadeira a ser seguida era a science-fiction porque ela é também o desencontro entre o relógio do sistema solar e o relógio da algibeira, entre o tempo atmosférico e o tempo cronológico. É o encontro entre lugares vazios, como quando H. G. Wells aponta um futuro, em A máquina do tempo, no qual não há mais nenhum rastro do humano: a espécie humana se diferenciou em duas, uma subterrânea, sensível à luz, descendente do operariado inglês do fim do século XIX, a quem era praticamente negado o acesso à superfície natural da terra; e outra que vivia na superfície, como reis carolíngios, débeis e donos da terra porque a outra espécie não podia suportar a luz do sol. A ficção científica é o sintoma da ciência.


Na continuação das Aventuras, Alice encontra atrás do espelho uma Rainha que vivia às avessas. "Agora vou lhe dar uma coisa em que acreditar", disse a Rainha. "Tenho precisamente cento e um anos, cinco meses e um dia". "Não posso acreditar nisso", respondeu Alice. "Tente de novo: respire fundo e feche os olhos", ensinou a Rainha. "Não adianta tentar, não se pode acreditar em coisas impossíveis", riu Alice. "Com certeza não tem muita prática. Quando eu era da sua idade, sempre praticava meia hora por dia. Ora, algumas vezes cheguei a acreditar em até seis coisas impossíveis antes do café da manhã", disse a Rainha. Há um saber no impossível – a/0 não existe.

 

 

REFERÊNCIAS

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

KAPLAN, Robert. O nada que existe: uma história natural do zero. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

LACAN, Jacques. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

WELLS, H. G. A máquina do tempo. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

 

 

 

A AGRESSIVIDADE CONSTITUTIVA: GATILHO DA VIOLÊNCIA?

Silvia Ghizzo

 

Em 1961, Steven Millgram (2008), psicólogo social e professor da Universidade de Yale (EU), investiga como pessoas comuns são capazes de atos de violência sob o comando de uma autoridade. No experimento foram utilizados 40 voluntários, que deveriam empreender choques elétricos que iam avançando de voltagem, cada vez que a pessoa detrás de uma porta respondesse incorretamente palavras de uma lista que deveriam estar, supostamente, memorizadas. Sessenta e cinco por cento dos participantes aplicaram choques até 420 volts; nunca houve um voluntário que parasse o teste para ajudar o "aluno"; só uma pequena parte dos voluntários interrompeu a prova, mas não procurou denunciar o departamento nem prestou auxílio. Essa pesquisa foi eticamente questionada tanto pelo fato de os voluntários não saberem o real objeto de estudo da pesquisa, como principalmente porque o experimento poderia ser extremamente impactante sobre alguns dos voluntários que se sentiram culpados e assombrados com sua própria atitude.

 

O que nos faz tão propensos a atos de violência? O que acontece em nossa constituição que faz da raça humana a única que "mata por matar"? Que gatilho é este que temos dentro de nós que dispara a passagem ao ato da violência como uma resposta tão comum?

 

Assassinatos, guerras, genocídios, racismo, extermínios, suicídio, adições, violência doméstica, abuso infantil, estupros etc. Todas essas manifestações põem em questão a racionalidade e a bondade humana. Em realidade, deixam à vista a capacidade humana para atos violentos. Talvez, primeiramente, devamos diferenciar a agressividade da violência. Segundo Carlos Dante Garcia (2013), a psicanálise pode vincular os fenômenos de violência com as falhas do simbólico e sua interrelação com o imaginário. Os três registros – imaginário, simbólico e real – constituem-se como resultado da tentativa de adaptação do individuo à cultura: "Cada vez que se produz uma falha na dimensão simbólica, alguma coisa da ordem do imaginário é convocada para remediá-la". (MILLER, 2013, p.306). A agressividade surge na relação do homem com seu semelhante e no jogo das identificações que ao passar pela lei é recalcada. A violência, por sua vez, rompe com o sentido e nos direciona ao real. A passagem ao ato seria seu paradigma, uma força que prescinde do Outro, um curto-circuito da fantasia, uma forma radical de defesa contra a divisão subjetiva, um mergulho no real. (GARCIA, 2013).

 

Quando se estuda a subjetividade a partir da ótica da psicanálise, passa-se a compreender a complexidade de tal constituição subjetiva, a força da pulsão de morte, a divisão subjetiva, o gozo, as passagens ao ato como resultado do encontro com o real. A contingência do encontro de lalangue com o corpo nos conduz ao gozo, gozo este que se manifesta também nos atos de violência. Nascemos em um berço de significantes, um vulcão de palavras que nos constituem como sujeitos falantes e deixam marcas, marcas de gozo.

 

Em sua tese sobre a agressividade, Lacan (1998b, p.112) coloca: "A agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos de narcísica; e que determina a estrutura formal do homem e do registro de entidades características de seu mundo". Destaca-se aqui o imaginário, este registro encarregado de tramitar a experiência da linguagem no corpo, função impossível que sempre deixa um rastro. A imagem especular vai do jubilo à depressão, segundo Miller (2005, p.309): "A imagem é total e, em relação a ela, o sujeito sente-se em déficit. Essa imagem, ainda que seja dele mesmo, é Outra, pois ela é total, e ele é incompleto. [...] Lacan acrescenta o efeito depressivo ao estádio do espelho, no qual enfatizara o afeto do júbilo produzido pela imagem do sujeito sobre o sentimento de si mesmo. O efeito depressivo comporta referência à onipotência da mãe, dissimulando a referência à sua falta".

 

Segundo Lacan (1998b, p.105), "a agressividade se manifesta em uma experiência que é subjetiva por sua própria constituição". Nessa perspectiva, "[...] a agressividade se exerce de uma forma ou de outra, no silêncio mudo das palavras ou no grito reverberante da ira. Ela marca e nos é estruturante, surge através da experiência especular que deixa uma hiância entre a sensação de desmembramento do corpo e a imagem do espelho, a imago do corpo despedaçado ecoa em agressividade".

 

A hiância entre a imagem especular e a desorganização do corpo nos aliena ao Outro e deixa como traço a agressividade em relação à imagem deste Outro imaginariamente completo e onipotente. A linguagem vinda deste, repetitivamente, nos revela a impossibilidade de tal completude, deixa marcas profundas, feridas narcísicas que constroem a agressividade constitutiva, potencial disparador de morte e violência.

 

Nesse jogo especular com o Outro, toda vez que essa imagem narcísica falha surge o espaço para agressividade. É importante lembrar que a agressividade tem um papel importante na economia psíquica. Em todas as etapas do crescimento como sujeitos nos deparamos com uma série ilimitada de castrações que nos ferem narcisicamente, a agressividade estrutural se constitui pela necessidade da luta pela vida, da conquista de um espaço no campo do Outro, no reconhecimento do homem pelo homem. A agressividade estrutural nos constitui dentro do mal-estar da civilização, no combate interno do sujeito assujeitado no mundo da linguagem. Há um gatilho dentro de nós, um potencial de violência que, diante de uma ameaça à própria imagem e da falha do simbólico, ali onde não há a palavras, pode ser disparado.

 

Se tudo vai bem, diante deste enredo, entre o espelho e o Outro, entra a lei. Lei edípica, o supereu paterno que interdita e permite a identificação fálica. Constitui-se a instância apaziguadora do ideal do eu que, segundo Lacan, "é aquela através da qual o sujeito transcende a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva...". Porém, subjacente a isso, está o supereu materno com o imperativo de gozo, que aponta para fora do simbólico, "...mais próximo do real, da ruptura com o sentido, da premência sempre renovada da satisfação". (MACHADO, 2013, p.139). É nessa desordem subjetiva paradoxal que nos constituímos, diante da constatação da impossibilidade de adequação entre o real e o mental.

 

Para Lacan, "a violência é o que pode se produzir em uma relação inter-humana quando não impera a palavra que constitui o essencial da agressão". Como palavras nunca são suficientes é utópico acreditar na "paz mundial". O que se pode pretender é que, através da abertura de espaços de escuta, a psicanálise possa abrir caminhos que permitam a subjetivação dos crimes e o aparecimento da singularidade dos sujeitos envolvidos, espaços onde os sujeitos possam deparar-se com seus significantes amos para que outros possam aparecer e assim permitir a reinvenção. Isso é o que se pode tentar na busca de minimizar os estragos causados pelo puxar do gatilho ou antes que o gatilho seja puxado. Talvez um bom exemplo seja a atuação de psicanalistas em Belo Horizonte, relatada no texto de Cristina Sandra Pinelli Nogueira (2013): "Justiça restaurativa, oportunidade Olé e psicanálise aplicada".

 

REFERÊNCIAS

 

EXPERIÊNCIA de Milgram sobre a obediência à autoridade. Disponível em: <http://redepsicologia.com/experiencia-milgram-obediencia- autoridade>. Postado em 6 jul. 2008. Avesso em: 17 jul. 2014.

 

GARCIA, Carlos Dante. La violência: Que locura! In: MACHADO, Ondina Maria; DERENZENSKY, Ernesto (Orgs.). A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, Escola Brasileira de Psicanálise, 2013. p.121-128.

 

LACAN, Jacques. A agressividade em psicanálise. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998b. p.104-126.

 

LACAN, Jacques. Introdução teórica às funções de criminologia em psicanálise. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998c. p.127- 151.

 

LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998a. p.96-103.

 

LAURENT, Eric. Psicanálise e violência: sobre as manifestações da pulsão de morte. In: MACHADO, Ondina Maria; DERENZENSKY, Ernesto (Orgs.). A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, Escola Brasileira de Psicanálise, 2013.

 

MACHADO, Ondina Maria. Violência e feminização do mundo. In: MACHADO, Ondina Maria; DERENZENSKY, Ernesto (Orgs.). A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, Escola Brasileira de Psicanálise, 2013, p. 129-141.

 

MILLER, Jacque-Alain. Silet: os paradoxos da pulsão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

 

NOGUEIRA, Cristina Pinelli. Justiça restaurativa, oportunidade Olé e psicanálise aplicada. In: MACHADO, Ondina Maria; DERENZENSKY, Ernesto (Orgs.). A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, Escola Brasileira de Psicanálise, 2013.