Ao final do Seminário haun, Maria Josefina Sota Fuentes fez uma homenagem à artista Tomie Ohtake que publicamos abaixo.
As pinturas cegas de Tomie
Chegamos no momento de concluir.
Ainda no ressoar das vozes que aqui se ouviram, uma a uma mas enlaçadas ao Outro da Escola pelas transferências de trabalho, é chegada também a hora de celebrar este acontecimento, o da feliz contingência de que hoje uma das mais renomadas artistas plásticas brasileiras do século 20, Tomie Ohtake, faz 100 anos.
Mais uma vez, a arte vem iluminar o campo da psicanálise.
Para esta ocasião e com o apoio e autorização do Instituto Tomie Ohtake, escolhemos projetar parte do que foi a mostra das Pinturas Cegas, realizada sob a curadoria de Paulo Herkenhoff em 2011, que retrata a aventura da artista em meados do século 20, entre 1959 e 1962, quando ela se lançava numa experiência única de pintar com os olhos vendados.
O que pretenderia a artista?
“Quando fiz esta série de olhos fechados – ela explica – , buscava retirar a cor e a forma para encontrar o osso da pintura” .
Para o curador, a experiência de Tomie interroga a relação entre a arte e a cegueira, inserindo-se numa tradição que desconfia de uma visão lúcida capaz de compreender o mundo. É o real inacessível do quadro que interessa à artista. Ela procura o ponto cego da pintura, o vazio da imagem subtraída da forma e da cor, do sentido e do próprio olhar, para adentrar numa experiência singular na qual nos dá a ver sua cegueira, a cegueira de cada um, rasgando o véu da realidade e do sentido com o qual recobrimos o mundo: “estou interessada em transparências e profundidade” – ela afirma.
Da cegueira às sombras, percorrendo a opacidade e a profunda escuridão, Tomie, no dizer de Paulo Herkenhoff “[...] extrai um traço fundante: a origem da linguagem está onde o olho se defrontava com sua absoluta impotência. Ela enfrenta, então, a inconfigurabilidade” .
Assim, nos é exigido uma abstenção, a de não ver para além daquilo que a pintura apresenta e assim, talvez, possamos também alcançar a cor cega, o osso da sua pintura.
Tomie Otake jamais deu nome às suas telas. Pinturas cegas, explica o curador, não é o título de quadro algum, senão um meio de designar o método de trabalho que consiste em pintar de olhos vendados. Além de cega, a pintura de Tomie, inominada, é também silenciosa. Ela assim enfrenta o indizível, dispensando os títulos que outorgam uma significação à obra. É o próprio ato da artista de lançar-se nessa experiência o essencial, ou seja, a ausência de uma essência que sua pintura, cega e sem nome, transmitiria. À cegueira, soma-se a mudez, o limite da palavra de atingir o que a artista procura abraçar nesse encontro.
Num gesto sem intencionalidade, em pleno silêncio e escuridão, Tomie lança o pincel ao encontro do acaso. É o acaso que ela engendra nessa experiência que se dá no tempo e exige a repetição do gesto, na qual ela celebra o acontecimento despojado da necessidade semântica ou pictórica. Ela assim pinta esse acontecimento que é sua pintura mesma.
Mas, longe de buscar uma experiência dramática, de perder-se nos labirintos de um mundo sem centro, tal como sugere Hernkenhoff, há um elogio à cegueira e ao inominável que se positiva na pintura da artista. Ao se colocar em estado de cegueira, Tomie finalmente encontrou o que se revela em sua pintura: um osso, as “marcas cegas” que ela por fim pintou, que ex-sistem à realidade que nos habita.
Buenos Aires, 21 de novembro de 2013