Bibliô #04

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Boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP

Setembro de 2013

 

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CAPÍTULO XV - O DESEJO DE DORMIR

 

Na quarta e última parte do Seminário XIX, intitulada por Jacques-Alain Miller de “CODA” – em referência à passagem final de um movimento musical, vemos como Lacan se dirige rumo à conclusão com as duas últimas aulas do seu Seminário de 1971-72 e que ambas giram em torno da temática do “desejo de dormir” e que “os corpos [são] aprisionados pelo discurso”.

 

TEMA I – O UM E O UNIANO

 

Podemos salientar que um dos temas deste capítulo se dá no movimento realizado por Lacan do mito do Pai que unia em direção ao campo que ele elucubra como sendo da ordem do UM, denomina de campo Uniano – ou seja,a função de ao menos um que diz não, a função da exceção, função de uniar. Existe um que diz que não, e esse “não” é mesmo que negar, porém, a partir do verbo uniar se pode dizer que em relação à castração, o Pai unia.

 

A) O Pai que unia ou a universalidade da função paterna

 

No mito freudiano de Totem e Tabu (1912) o pai unia as mulheres, mas ele as une, porém não todas. Considerar a função paterna nos moldes do pai da horda primitiva é pensar a função paterna no nível do complexo de Édipo, ou seja, considerar a função do pai na sua universalidade e que toca o registro do ser. É o pai que diz “não”, sustenta a função da castração na condição de lei geral na medida em que ele se extrai como exceção. Esta inauguração do universal do pai foi um dos marcos do primeiro ensino de Lacan do qual ele extrai, dos textos de Freud, a universalidade da função paterna condensada na metáfora paterna. O pai, através do seu “não”, desprende o sujeito de sua alienação ao Outro materno e do gozo implicado nesta relação.

 

B) A função é-pater ou a singularidade de umpai

 

Numa outra perspectiva que se encontra no seu último ensino, Lacan trata do pai não mais na sua universalidade, mas na sua singularidade. E o que singulariza um pai se encontra no nível do seu desejo em relação a uma mulher tomada entre outras. A singularidade de um pai é uma pai-versão (père-version), ou seja, é a relação de um pai com o que sua função possui de recusa a toda norma universal. Neste sentido, nos diz Miller, é que caberia a diferenciação do pai no registro do ser (nível do universal) e o pai no registro da existência (nível da singularidade). O pai se torna, assim, o que se mantém fora do universal considerado uma função singularmente incarnada por Um: Há-Um.


No capítulo anterior, Lacan diz que um pai identificado com o puro legislador é um pai schreberiano, ou seja, que produzirá filhos psicóticos: “Muitas interrogações se fizeram sobre a função do pater familias. Conviria centrar melhor o que podemos exigir da função do pai. Essa história de carência paterna, como a turma se compraz com isso! Há uma crise, isso é fato, não é inteiramente falso. Em suma, o é-pater não nos assombra mais. Essa é a única função verdadeiramente decisiva do pai. Já assinalei que não era o Édipo, que isso já era, que, se o pai fosse legislador, daria como filho o presidente Schreber, nada mais” (p. 200).


Lacan cria o neologismo produzido a partir do verbo épater [NT: assombrar, surpreender], cria o é-pater, o pai que assombra cuja função seria espantar. O pai assombroso, impactante, já não assombra, há uma crise dessa função nas sociedades democráticas que colocaram progressivamente em causa o patriarcado. Nesse é-pater a função do pai deveria dar a norma para-além do mito, porque não se trata do Édipo e sim da função de um pai que surpreende, espanta, escandaliza a família.


Lembremos que Lacan indica que a utilidade do uniar é de explicar, por outra via, o que ele renunciou outrora em abordar sob os auspícios dos Nomes-do-Pai – levando, então, a considerar a contingência da sua excomunhão por parte de membros da IPA em 1963. Assim, deste seminário inexistente, só nos restou o traço da sua única aula de 20 de novembro de 1963.


Neste movimento de pluralização dos Nomes-do-pai, vê-se como Lacan, através de diversos recursos, vai cada vez mais contra a ideia da unicidade do Outro – e que corrobora com a tese da inexistência do Outro, ou seja, não mais existe a articulação significante, mas sim o significante único de S(?): não há respondente – nem mesmo não há relação sexual. De todo modo, a ideia gira em torno da falta de um significante desta relação, deste rapport, e que condensaremos na função lógica do não há Outro do Outro.


Com o seu estudo sobre o mito freudiano de Totem e Tabu, Lacan demonstra como o mito freudiano do pai morto encarna a função lógica do significante do Outro barrado S(?). A partir disto, Lacan encontra, na função Nome-do-pai, o correlato de um vazio na ordem simbólica. Dessa aula única deste Seminário, J.-A. Miller nos indica que Lacan, a partir do sacrifício de Abraão, realizaria a articulação entre o Nome-do-pai pluralizado com o objeto a. Parafraseando o que Lacan diz do pai no seu texto “Subversão do sujeito” em 1960, diremos, a partir do presente capítulo, que a verdadeira função do pai é a de uniar um desejo a uma Lei através do que ele encarna na sua função de surpresa, espanto e de despertar.


Lembremos, ainda, que foi devido a essa “excomunhão”, assim nomeada pelo próprio Lacan, a causa pela qual ele não pronunciara seu seminário sobre “Os nomes do pai” e em seu lugar ele desenvolverá Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – ou que poderia ter como título “O pai Freud” (Cf. J.-A. Miller: Le banquet des analystes (1989-90), aula do 13 dezembro de 1989). Lacan nunca tomou essa excomunhão como algo da ordem do acaso justamente quando ele se preparava para abordar o para-além de Freud, um para-além do Nome-do-pai através da articulação da pluralização desta função “Nomes-do-pai” e do objeto a. Esta excomunhão, diz J.-A. Miller, “[...] é de fato seu posicionamento em extimidade. É seguro dizer que Lacan foi posto pra fora da comunidade analítica. Ele foi, ao mesmo tempo, colocado no centro, no seu centro extime. [...] Vê-se que é em torno disto que gira o que se chama de IPA: a extimidade de Lacan diante da comunidade analítica”.


Diante desta excomunhão, Lacan realiza um retorno aos “conceitos fundamentais” não para elogia-los, mas sim para ultrapassa-los e desfaze-los. Para-além desta dimensão do pai (e que a IPA se estruturou de tal modo que não se deve atravessa-la – de onde a equivalência realizada por Lacan entre a IPA e a tradição religiosa, ambas implicadas do lado do Nome-do-Pai), e ao qual Freud se deteve (e que Freud afirmara se encontrar numa posição de pai em demasia, segundo Abram Kardiner), Lacan vai progressivamente demarcar que a posição do analista não é de pai, muito menos de Outro (de onde a referência bíblica de Lacan ao El Shaddaï, “Deus-Todo-Poderoso”enquanto que marco que dirigia Freud no sentido do Pai que se teme e se reverencia e que permanece como ponto instransponível), mas que o analista está no lugar de objeto a.

 

Autores citados:

Abram Kardiner (1891-1981) foi um psiquiatra, psicanalista e antropólogo americano conhecido por ser um dos pioneiros e uma das figuras marcantes do desenvolvimento da psicanálise nos Estados Unidos a partir da perspectiva antropológica e culturalista.

Referências:
Jacques-Alain Miller, Extimité (1985-86), aula do 29 de janeiro de 1986, inédito.
__________________, Le banquet des analystes (1989-90), aula do 13 dezembro de 1989, inédito.
Cf. a propósito de psicanálise e religião: J.-A. Miller, Un effort de poésie (2002-2003), aulas de 14 e 21 de maio de 2003, inédito.
___________________, L’Un-tout-seul (2011), curso do 4 de maio de 2011, inédito.
___________________, L’Autre sans l’Autre, apresentação do próximo tema do Congresso da New Lacanian School (NLS) que ocorrerá em Gante, Bélgica, em 2014. Apresentação realizada na finalização do XI Congresso da NLS “O sujeito psicótico na era dos Geeks”, Atenas, 19 de maio de 2013.
Sigmund Freud, “Totem e Tabu” (1913), in Obras completas de Sigmund Freud; trad. Dr. J.P. Porto. Rio de Janeiro: Delta, s.d. p. 49-239. v.14.
_____________, Moisés e o monoteísmo (1939), in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 29-66. V. 23.
Abram Kardiner, Mon analyse avec Freud (1977), Paris : Les Belles Lettres, 2013.
Jean Paris, « L’agonie du signe », in L’atelier d’écriture. Collection Change numéro 11, Seghers Laffont, mai 1972, p. 133.

 

Referências em Lacan:

Jacques Lacan, “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957), in Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 496-533.
_____________, Nomes-do-Pai (1963), Jorge Zahar, Coleção Série Paradoxos de Lacan, 2005.
_____________, “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1963), in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998, pp. 807-842.
_____________, O triunfo da religião (1974), precedido de Discurso aos católicos (1960), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

Sobre o Outro do Outro ou sobre a metáfora paterna (Nome-do-pai):
Cf. O Seminário, Livro V, As formações do inconsciente: capítulos IX (“A metáfora paterna”), X (“Os três tempos do Édipo”), XI (“Os três tempos do Édipo (II)”) e XII (“Da imagem ao significante no prazer e na realidade”).

Sobre a inexistência do Outro do Outro ou a função paterna posta em causa:
Jacques Lacan, Le Séminaire, Livre VI, Le désir et son interprétation (1958-1959), Paris : Editions de la Martinière, Le Champ freudien Editeur, 2013.

Sobre o drama do pai na trilogia claudeliana:
Cf. O Seminário, Livro VIII, A Transferência. Sobretudo a parte intitulada “O mito de Édipo Hoje. Um comentário da trilogia das Coûfontaine, de Paul Claudel”. Capítulos XIX, XX, XXI e XXII.

 

TEMA II – DO NOME-DO-PAI AO DESEJO. A HARMONIA LACANIANA DE QUATRO NOTAS

 

Deslocando-nos da metáfora paterna, de sua função, nos dirigimos com Lacan em direção à metonímia do desejo a partir dos sonhos. Sob o prisma que Lacan destaca neste capítulo, vemos que o sonho serve para suspender a ambiguidade que há na relação do corpo consigo mesmo, a saber, o gozo. O dormir consiste em suspender o que está implicado na tétrade lacaniana, nesse acorde de quatros notas que compõe a estrutura do discurso que são: o semblante, a verdade, o gozo e o mais-de-gozar.

 

A) O desejo de dormir e o gozo

 

Se os sonhos são sonhos de desejo, e aí onde haveria uma relação sexual – que não existe – nesse axioma lacaniano, há toda uma ordem que funciona. E é nessa ordem que, como consequência do efeito da linguagem, que podemos dizer que surge o desejo. Se “a relação sexual não existe” em seu lugar se encontra uma ordem cuja consequência é o desejo como efeito dessa ordem que somente pode ser da estrutura da linguagem, puro efeito, sem substância, do significante. E o desejo fundamental do sonho para Freud é o desejo de dormir. Esse dormir consiste em suspender a famosa tétrade lacaniana: semblante, verdade, gozo e mais-de-gozar, interrompendo, assim, a perturbação do gozo.

 

B) O que se toca do real é a Spaltung, a cisão subjetiva

 

Ao abordar a dificuldade do discurso analítico a partir da posição de semblante do objeto a, de semblante deste objeto-dejeto ao qual o homem tira sua substância, Lacan passa a tergiversar sobre o discurso científico como único discurso onde a posição de semblante é sustentável, pois é a Spaltung (S/) – a falha do ser – que se encontra na posição de comando e é o que mais se aproxima da ordem do real – no sentido que Miller nos lembra que é no último texto, inacabado, de Freud onde ele demonstra que o real é causa da divisão subjetiva e o sujeito vem, então, como resposta do real.


A partir desta perspectiva da Spaltung, podemos deduzir duas vias nas quais a experiência analítica pode se sustentar: a) experiência do real e b) experiência de Spaltung, do sujeito na sua fenda.


Ou seja, de um lado temos p. ex., o Lacan de 1965 da “A ciência e a verdade” em que afirma que o analista na sua práxis “dá conta do estado de fenda, de Spaltung” do sujeito. Esse nível é o da experiência analítica considerada como experiência da Spaltung e do reconhecimento do inconsciente enquanto tal. Do lado do analista, teríamos o nível da interpretação simbólica apreendida como a prática do decifrar o sintoma a partir do desejo inconsciente e dos efeitos do recalque e do retorno do recalcado.


Por outro lado, temos o Lacan que considera a experiência analítica como uma experiência do real. Então, a interpretação é a interpretação fora do sentido, pelo equívoco, que toca o real no sentido que perturba a defesa, no nível do arranjo de gozo, da disposição libidinal da pulsão e que implica uma mobilização do corpo do analista no seu ato, a exemplo de uma mobilização e do uso da voz, do tom, do gesto ou mesmo do olhar.


A experiência analítica seria, então, uma experiência do real e a interpretação do analista, ao passo em que objeto a – objeto-dejeto, se encontra no registro de um dizer que é operante quanto mais ele não tenha sentido e se assemelha a um real (cf. Lacan 1974).

 

Autores citados:

Didier Anzieu (1923-1999) foi um psicanalista e universitário francês. Realizou sua primeira análise com Lacan, ignorando o fato de que sua mãe, Marguerite Anzieu – ou mais conhecida como o caso “Aimée” da tese de psiquiatria de Lacan – tivera sido tratada por Lacan. Alguns anos depois, Anzieu se distancia de Lacan e desenvolve uma obra teórica (p. ex. o conceito de eu-pele) que é profundamente marcada, segundo J.-A. Miller, pelo interesse e cuidado que tem sua mãe por esse único objeto de sua preocupação que é este filho.

François Recanati (1952-) é um filósofo da linguagem francês, orientador de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (C.N.R.S.) e diretor de estudos na Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS). Ex-presidente da European Society for Analytic Philosophy.

Henri Poincaré(1854-1912) foi um matemático, físico, filósofo e engenheiro francês. Realizou, entre outros, trabalhos em óptica e em cálculo infinitesimal. Um dos seus remarcáveis trabalhos foram seus desenvolvimentos a respeito do problema dos três corpos no que tange ao estudo qualitativo dos sistemas de equações diferenciais e da teoria do caos. Considerado um dos últimos grandes cientistas, Poincaré foi um dos precursores da teoria da relatividade restrita e da teoria dos sistemas dinâmicos.

 

Referências:

Sigmund Freud, “A interpretação dos sonhos” (1900), in Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
______________, “A interpretação dos sonhos” (1900), in Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
______________, “A Divisão do ego no processo de defesa” (1938), in Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Vol. XXIII.

Didier Anzieu, A autoanálise de Freud e a descoberta da psicanálise, trad.
Francisco Franke Settineri, São Paulo: Artes Médicas, 1989.
___________, Le Moi-peau, Paris : Dunod, 1985, 254 p.

François Recanati, Philosophie de la logique et philosophie du langage, Paris : Odile Jacob, 1991.
________________, Philosophie du langage (et de l'esprit), Paris : Gallimard (Folio Essais), 2008.

Henri Poincaré, A ciência e a hipótese (1908), Brasília: UnB, 1988.

Jacques-Alain Miller, La clinique différentielle des psychoses, Séminaire de D.E.A., Département de Psychanalyse de Paris VIII, aula do 26 de março de 1987, inédito.
___________, L’expérience du réel dans la cure analytique (1998-1999), aula do 27 de janeiro de 1999, inédito.
_________________, L’Un-tout-seul (2011), aula de 30 de março de 2011, inédito.

 

Referências em Lacan:

Jacques Lacan, Cf. capítulos XIII “O sonho da injeção de Irma” e capítulo XIV “O sonho da injeção de Irma” (fim), in O Seminário, Livro II, O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Cf. “Radiofonia” (1970), in Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.400-447. Encontra-se nesse escrito de Lacan (sobretudo na página 434) o conceito de mais-de-gozar no seu máximo desenvolvimento quando ele transcreve o conceito de mais valia de Karl Marx, para o de mais-de-gozar. Lacan escreve que se pode ler desta forma: “O Mehrwert é o Marxlust, o mais-de-gozar de Marx”.
______________, Le phénomène lacanien (1970), Les Cahiers Cliniques de Nice, Publication de la Section Clinique de Nice, 2011, Conferência pronunciada no Centre universitaire méditerranéen de Nice.

 

CAPÍTULO XVI – OS CORPOS APRISIONADOS PELO DISCURSO

 

TEMA I - O UM CONSTITUI (faz) O SER – COMO A HISTÉRICA CONSTITUI (faz) O HOMEM

Lacan não se despede de seu ensino nesta última aula do seminário ...ou pior, não fará um resumo da sua transmissão ao longo desse ano, mas assinala que o que nos interessa do discurso analítico é poder cingir esse impossível que chamamos real, e que como tal une os analistas na sua prática. Destaca-se, nesse impossível de dizer, o axioma: Que se diga, como fato fica esquecido por trás do que é dito, / que não se ouve. E quem comanda, segundo o enunciado Há-um é o Um, esse Um que cria o Ser, no âmbito da ontologia, conforme o Parmênides, sem por isso fazer ontologia demais. Em relação ao gozo, encontra-se, em Radiofonia,o conceito de mais-de-gozar no seu máximo desenvolvimento, onde Lacan transcreve o conceito de mais valia de Marx para o de mais-de-gozar, pode-se ler: “O Mehrwert é o Marxlust, o mais-de-gozar de Marx”. (Cf. p.434)

 

Obra de arte citada:

O escamoteador
L'escamoteur tableau
L’escamoteur de Hieronymus Bosch
Ao se referir ao quadro O Escamoteador – do pintor holandês Hieoronymus Bosch–, Lacan faz alusão àquilo que justamente não ocupa o discurso analítico.  Pintado entre 1475 e 1505, o quadro mostra um escamoteador fazendo seu número frente aos passantes. O primeiro tem, em sua mão direita, uma noz-moscada (chamada antigamente de “escamot”) no qual ele fará aparecer e desaparecer por meio de copinhos de dedos. Ora, ele encarna o mundo com seus enganos, dissimulações e artifícios. Seus passes de mágica desviam os passantes daquilo que é importante. Assim, o burguês, hipnotizado pelo jogo, tem sua bolsa roubada por um cúmplice do mágico. Justamente, o ilusionista não diz o que ele faz e faz o que ele não diz. Assim, ele joga com as aparências e triunfa ao desviar a atenção do público do essencial.    

 

A) O suporte é o corpo (p. 217):

Lacan diz que quem comanda é o que ele produziu nesse seminário sob o título de Há-um (Ya d’lun) e o Um cria o Ser, para isso ele reenvia novamente ao Parmênides para, no diálogo platônico, encontrar esse Um que cria o ser. Vale ressaltar que o Um não é o Ser, mas o constitui, como insiste Lacan no presente capítulo.

 

B) O gozo, ele existe (p. 218):

Lacan articula tal formulação com o discurso, já que o discurso como tal é sempre discurso do semblante. Dessa forma, se há alguma coisa que se autorize pelo gozo, é simular (faire semblant), no que se apreende o mais-de-gozar.

 

Autores citados:

Platon, OBRAS COMPLETAS. Parmênides o de las ideias. Aguilar, Madrid, 1969. 
“[...] se o Um é, é possível que seja e que não participe do ser? – Isso não é possível. – Portanto, o ser será ser do Um, sem que por isso seja idêntico ao Um; pois senão o ser não seria ser do Um, nem o Um participaria do ser e seria a mesma coisa dizer que o um é e que o Um é o Um. 
(...) com o qual o que é, tem outra significação que o Um.
(...) são distintos no Um, seu ser e o que ele mesmo é. Pois como o Um não é ser senão um, como tal participa do ser.” Cf. pp. 968-969”.

Karl Marx, O capital (1867), Coleção Os economistas, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

Referências em Lacan:

O seminário, Livro III, As psicoses, aula de 11 de abril de 1956, sobre o caso do Presidente Schreber.
Cf. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (1957), in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 537-590.
Cf. “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946), op. Cit. Neste artigo, Lacan destaca os que não podem ser substituídos: Sócrates, Platon, Marx e Freud. p. 193
Cf. “Do sujeito enfim em questão” (1966), op. Cit., Marx e Hegel sobre a questão da verdade. p. 234.
Cf. “Radiofonia” (1970), in Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.434.

 

TEMA II – O DISCURSO COMO TAL É SEMPRE DISCURSO DO SEMBLANTE

 

Lacan pensa os discursos no que ele chamou de “a ronda dos quatro discursos”.  Nesta última aula do seminário, vai do discurso do mestre ao discurso do analista, seu avesso, para dizer que o que nasce de uma análise, nasce no nível do sujeito da fala, do falasser. E o produto de uma análise será o resultado do que o analista, entanto objeto a, ocupando o lugar do semblante e ao mesmo tempo de agente no discurso analítico, vir a propor ao sujeito no decorrer da análise, como via de acesso aos seus modos de gozo. Proposta que será acolhida pelo sujeito porque, como dizia Aristóteles, ele pensa com sua alma.

 

A) De que se trata na análise?

Diferentemente do discurso do mestre onde você – como corpo – é petrificado, no discurso analítico, o analista como corpo se encontra em posição de semblante do objeto a. Ao nos referirmos à Conferência de Lacan em Genebra – pronunciada três anos mais tarde, em 4 de outubro de 1975, encontramos justamente a seguinte formulação: Na análise “então a pessoa que fez esta demanda de análise, quando ela começa o trabalho, é ela que trabalha. Você não a deve considerar como alguém que você tenha que petrificar. O que você faz lá? Esta pergunta é tudo aquilo do porquê eu me interrogo desde que comecei”.

 

Referências em Lacan:

Conférence à Genève sur le symptôme (4 octobre 1975). In : Bloc-notes de la Psychanalyse, n°5.

 

A) A interpretação com fim:

Em contraposição ao esquema ternário de Charles S. Pierce, Lacan o substitui colocando no lugar da representamen pierciana o objeto a. Assim, para representamen-objeto (Onde estou no dizer? em termos lacanianos) tem que ser sempre reinterpretado. Trata-se de uma operação lógica, da extração daquilo que é dito e não do dizer. Lacan retomará as formulações de Pierce nos anos ulteriores, como em seus Seminários XXI, XXII e XXIII. Neste último, ao evocar a relação ternária de Pierce, Lacan a substituirá por “Simbólico – Real – Imaginário”.

Cf. O Seminário, Livro 23, O Sinthoma (197561976), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. Sobretudo a aula de 16 de março de 1976 sobre a orientação do real e a forclusão do sentido.

 

Autores citados e Referências:

Aristóteles. Organon. Tradução, prefácio e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1985. Cf. texto sobre A Lógica e “As proposições modais”.
Charles S. Pierce. Referência aos quadrantes com seus traços verticais e horizontais para falar em Universal afirmativo e negativo Particular. (Cf. a este respeitoo Seminário Ato analítico de 1967-1968).
Platon.  A República, Livro VII,O mito da caverna”.

 

Pesquisa realizada por Mirta Zbrun (coordenadora), Luciana Castilho de Souza e Patrick Almeida.