Bibliô #05

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Boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP

Outubro de 2013

Bibliô Entrevista
        

 

Entrevista com Petra Costa

por Tânia Abreu

 

 

Em uma quinta feira do mês de agosto conversei com Petra Costa, diretora, produtora e atriz do filme Elena, um documentário de fundo psicológico, que em 80 minutos discorre sobre temas que deslizam da situação política do Brasil sob ditadura e seus rescaldos, ao íntimo de uma jovem em busca de elaborar o luto da perda da irmã 13 anos mais velha.


O que para Petra era uma dívida para com sua irmã tornou-se um sonho realizado sob a égide de imagens e arquétipos inesquecíveis para quem ver Elena.


Tânia Abreu: Qual a função da arte em sua vida?

 

Petra Costa: As mulheres da família têm uma paixão pela arte. É algo que vinha da minha mãe, da avó que, em 1950, já tinha uma câmera filmadora. Meu primeiro curta, Olhos de Ressaca, foi feito com imagens captadas pela minha avó. A arte dá sentido para a vida, para a existência das mulheres da família. Através dela consegui resignificar o trauma da perda da minha irmã, elaborando meu luto por este viés.

 

TA: Que influências artísticas, literárias, culturais, enfim, foram  desencadeantes para fazer o filme?

 

PC: A leitura de Bachelar, A água e os sonhos,inspirou sobremaneira a filmagem de Elena; a partir dele a água foi usada como elemento que significava tanto a morte quanto o nascimento.
O filme Bicho de Sete Cabeças de Laís Bodanzy também foi importante para Elena, visto que ele trata do rito de passagem para a vida adulta pelo ponto de vista masculino, e Elena quer discutir estes rituais de passagem do ponto de vista feminino. O filme, por um lado, era algo que devia a minha irmã e havia me prometido 10 anos antes fazer e por outro é uma oportunidade de se discutir sobre o suicídio do ponto de vista feminino.

 

TA: Sim é importante, inclusive que se aborde o suicídio como ato de coragem e não de covardia.

 

PC: Sim, é verdade, mesmo que Elena não tivesse a intenção de se matar – houve uma contingência, minha mãe demorou para voltar e um amigo não conseguiu chegar a tempo de evitar –foi um ato de coragem.
O filme tem como objetivo tirar minha irmã do mundo dos esquecidos e trazê-la de volta, para se discutir muitos tabus que giram em torno das mulheres. Deste modo podemos discutir o trauma de muitas mulheres através de uma mulher.

 

TA: O elemento água é pregnante no filme. Qual a função dele na sua vida?

 

PC: Outra influência importante em minha vida foi Ofélia que se afoga nas águas do rio, assim como as pinturas românticas com as quais me identificava. Ofélia funcionou como uma espécie de arquétipo em Elena, podendo mesmo dizer que é um filme sobre o momento de Ofélia. O primeiro encontro como os diários de Elena foi como tocar o mundo dos esquecidos, por isso falei em trazê-la de volta. Esse encontro criou uma espécie de crise de identidade, pois em alguns momentos já não sabia mais quem era minha irmã e quem era eu. Ambas apresentavam dificuldades para transitar da adolescência para a vida adulta, sobretudo no lidar com a emoções que transbordam, dificultando a canalização.
Há também a importância dos sonhos.  Um dia eu acordei perturbada de um sonho em que Elena e eu nos confundíamos e eu já não sabia quem havia morrido, se era ela ou eu, e foi a partir dessa confusão de identidades entre as duas que pensei iniciar o filme. Mergulhei no filme para cumprir minha promessa, pois sentia que devia isto a Elena. É possível se ler mais sobre a importância dos sonhos para a construção do filme no nosso site ou no pressbook onde há mais elementos sobre estes pontos.

 

TA: Qual a sua relação com a psicanálise ou com terapias?
Eu passei por vários momentos de tristeza na minha infância e poucas pessoas conseguiram me ajudar a lidar com essa melancolia. Poucos estão dispostos a ouvir, não há o hábito de falar sobre esses assuntos. O filme é fruto desse desejo de chamar a atenção para a tristeza, para a melancolia. Acredito que quando a tristeza é ressignificada a dor se transforma em força. 

 

No meu caso, a arte por si só não seria suficiente para que eu me encontrasse. Receber apoio terapêutico também foi muito importante. Eu faço terapia desde os sete anos, mas nunca com alguém que fosse focado na questão do suicídio. Então, quando fiz o filme, entrevistei alguns sobreviventes. Nos Estados Unidos, conversei com uma mãe que havia perdido seu filho e que se tornou líder de um grupo de apoio. Ela foi a primeira pessoa com quem falei que entendia a dor pela qual eu e minha mãe tínhamos passado.

 

Se eu tivesse participado de algum grupo de apoio para crianças sobreviventes, isso teria feito muita diferença. A gente passa por coisas muito parecidas. Primeiro vem a culpa, depois o medo de perder os outros – eu passei a temer a morte da minha mãe –, mais adiante o temor de que a mesma coisa pudesse acontecer com a gente. Ninguém me falou que isso tudo poderia ser normal. Se eu tivesse me tratado com um profissional com essa experiência, teria me poupado muito. Demorei 20 anos para falar com alguém sobre esse assunto.

 

A arte me deu a possibilidade de compartilhar a minha história e, com isso, ver como essa história produz ecos nas de outras pessoas, como ela pode inspirá-las a ressignificar traumas e memórias inconsoláveis, como falamos no filme. Quando falo que “Elena é minha memória inconsolável e que é disso que tudo nasce e dança”, quero dizer que ela me inspira, que me ensina sobre a morte e, portanto, sobre a essência da vida.

TA: Muito obrigado Petra pela entrevista assim como pela autorização para exibirmos o filme nas sedes da Escola Brasileira de Psicanálise. Ele é belíssimo e tem sido visto e admirado por muitas mulheres e psicólogas como você queria.


PC: Fico feliz em saber que vocês se interessaram por Elena. Muito obrigado.

 

 

 

 

Cristiana Pittella de Mattos entrevista Philippe Lacadée

 

Neste número, o Bibliô Entrevista destaca o lançamento do novo livro de Philippe Lacadée, La vraie vie à l’école, (A verdadeira vida na escola), entrevistando o autor, a quem agradecemos.

 

No momento em que a ordem simbólica não é mais o que era e a desordem alcança o real, este livro aborda temas e questões cruciais em nossa época, de modo vivo e eloquente: a adolescência, a educação, o lugar da escola e a responsabilidade dos docentes e dos alunos. Ele nos ensina que não se trata de restaurar uma ordem ultrapassada.

 

Propusemos ao autor algumas questões a fim de que ele nos apresente seu livro, um testemunho do encontro entre o psicanalista, os professores e os estudantes. Nestes encontros, não se trata de partir de um saber pronto, de um saber que seria suficiente transmiti-lo, mas, à partir da dimensão desejante do docente, da dimensão subjetiva do aluno e do que surge como impasse entre eles, a psicanálise abre um espaço na via do impossível de educar para pensar os lugares e os laços e indagar o sobre o saber e a língua na escola.

 

 

Cristiana Pittella de Mattos: Neste livro, La vrai vie à l’école, podemos encontrar testemunhos e escritos que seguem o seu trabalho anterior Vie éprise de parole. Qual o laço entre os dois?

 

Philippe Lacadée: O laço entre os dois situa-se no nível da vida, em si mesmo difícil de definir para o ser vivente. Trata-se, sobretudo, daquilo que da vida se enlaça à linguagem. Em Vie éprise de parole, quis especialmente insistir sobre o que se passa quando o ser humano consente em entrar na dialética da palavra. Recolhi fragmentos de vida de sujeitos, tal como eles falam disto em análise ou nos testemunhos escritos em livros. Quis mostrar, sobretudo, que a linguagem não serve só para a comunicação; há um uso da linguagem que é um uso de gozo, um uso de evocação, ou até mesmo de invocação, como nos ensina Lacan em seu último ensino. Isso tem repercursões na prática, mas também nos laços que tentamos estabelecer com os sujeitos que nos encontram. É o que chamei Vie éprise de parole, quer dizer, um uso da fala que se sustenta em um uso vivo do gozo como se, por exemplo, a criança, com seu balbucio, situasse sua vida na evocação de palavras isoladas como significantes sozinhos, sem nenhuma preocupação de se comunicar com o outro, mas gozando de sua língua – o que Lacan chama lalíngua.

 

Esses elementos de lalíngua surgem assim no quadro da fala em análise, mas também nos escritos do autor, como em As palavras de Sartre. Esses elementos de lalíngua são também o que pode surgir nos insultos ou nas injúrias. Eles têm um valor de gozo que não favorece o laço ao Outro. Proponho-me, em Vie éprise de parole, a mostrar como, graças a Lacan, podemos escutar que o insulto não visa o outro, mas o ser do sujeito, a saber, o objeto indizível que está no coração do ser.

 

Isso muda tudo e abre perspectivas. Lacan precisa que o insulto é tanto a primeira como a última palavra do diálogo e, além disso, é o início da grande poesia. Portanto, tudo depende da resposta do Outro. O insulto é, por conseguinte, a transferência da dimensão simbólica ao real. Assim, de repente, uma palavra se desencadeia e surge no real. Essa palavra é, muitas vezes, um modo do sujeito tratar um gozo indizível, fora do sentido, que o inunda. Vemos isso muito bem no livro O jovem Torless, de Robert Musil (Les désarois de l’élève Torless).

 

Este uso de lalíngua atualiza-se no momento e no movimento da adolescência, o que traz dificuldades para os adolescentes na escola quando, em nome da autenticidade, eles se acham autorizados a dizer tudo o que lhes vem à cabeça. É aí que a escola deve ser, como diz Freud, em seu texto Para introduzir a discussão sobre o suicídio, um lugar onde se joga a vida. Aí está o que chamo a verdadeira vida na escola. Isto leva em conta que a escola deve ser o lugar onde se joga a verdadeira vida do espírito, um lugar onde se tem prazer em entrar na conversação com os professores para aprender – e para isso os professores devem estar presentes na escola –, onde se mostre a alegria em aprender e em dar aulas vivas.

 

Se o aluno se der conta de que a verdadeira vida pode assim se situar na transmissão e no prazer em aprender, ele consentirá em fazer laço com o professor e seus colegas, não pensando mais que a verdadeira vida está alhures, fora da escola. 

 

CPM: Quais são os princípios fundamentais da educação e, em sua experiência, como as escolas podem colocá-los em movimento?


PL:  Aí está, a escola deve estar em movimento e isto especialmente porque ela pode ser muito experiente como uma empresa de mortificação. É verdade que a escolar, por essência, entra com a função de refrear o gozo do vivente. O aluno deve fazer silêncio mesmo se ele quer aprender com o outro. O princípio da educação implica consentir ao Outro que ensina. É ele quem diz à criança o que se pode fazer e o que não se pode. A criança encontra assim o mundo do não, mas que só pode ser eficaz se antes ele tenha encontrado um sim à sua existência, à sua presença ou ao seu sintoma. Esta função do sintoma é fundamental respeitá-la.


No livro La vraie vie à l’école, digo que a escola deve encontrar o meio de dizer sim ao que a criança apresenta em sua singularidade, quer seja, ao seu sintoma, dizendo não ao que transborda no uso do gozo nocivo que ele pode produzir. Sim, por exemplo, ao sofrimento, mas não à solução que ele crê ter encontrado insultando seu professor.


Frequentemente, a escola é vivida como uma situação humilhante, sentem-se tratados como cachorros e, para se defender desse real, insultam o outro, quando são eles que estão sofrendo muito. Há algo a fazer.

 

CPM: Os aparelhos de saber visam subjugar o sujeito e este assujeitamento não vale, apesar disto, como freio, como limite ao gozo. Para a psicanálise este limite se constrói a partir do saber que o adolescente constroi em seu laço com o gozo. Como a experiência da conversação coloca em jogo lalíngua?

 

PL: Em relação à isto, não estou necessariamente de acordo. Há no livro belos testemunhos de encontros com os professors que tiveram funções decisivas na posição subjetiva de certas pessoas, aliás Freud mesmo fala disto em seu texto Sobre a psicologia do escolar. O encontro com a presença de um professor, com seu modo de ser, com seu estilo, pode permitir ao aluno localizar, como diz Freud, um ponto de apoio sobre a língua que funcione como ajuda, permitindo ao sujeito alojar uma parte de seu ser, de suas questões fora do sentido, que o perturbavam no saber transmitido pelo Outro.

 

Há um alívio em relação às questões essenciais do ser humano sobre o sexo ou a morte, quando o sujeito se dá conta de que são questões cujas respostas não vêm do Outro, mas que, por outra parte, ele pode perceber como o Outro soube fazer aí com, como soube se virar na sua vida e fazer essa transmissão.

 

É também ao que Freud se refere ao falar do lugar onde se joga o espírito da vida. A escola deve escutar que o corpo vivo do falasser não pode viver sem se sustentar em um espírito, o pensamento deve ter o apoio do significante, e é aí onde a escola deve fazer circulá-los, oferecendo alívio com um discurso lá onde alguns estão sem recurso, em perigo, em precariedade simbólica – o que chamei a insegurança linguageira.

 

O princípio da conversação apoia-se sobre o que Lacan diz da função do pai no Seminário O sintoma. À propósito do pai de Joyce, diz que é um pai que não ensinou nada, não ensinou a Joyce um saber fazer com o mundo, como negociar com as coisas de sua vida.

 

A função do pai é de ter uma missão que humanize o desejo e ensine a comunicação. As conversações que organizei nas escolas com alunos têm como meta, justamente, ensinar o que falar quer dizer; ensinar a comunicação no sentido de ajudar à elocubrar uma linguagem a partir dos elementos de lalíngua; introduzir uma rotina no discurso para fazer coincidir o significante com o significado. Frequentemente, eles utilizam as palavras sem saber o que significam, e a verdadeira vida na escola será, para alguns, ensinar-lhes a utilizar os argumentos para fazer valer seus pensamentos.

 

CPM: À propósito do título La vraie vie à l’école,o que é a verdadeira vida na escola? Os adolescentes podem ter uma “verdadeira vida na escola”?

 

PL: Tomei emprestado a verdadeira vida de Arthur Rimbaud que pensava que a verdadeira vida situava-se fora da escola, fora de toda coação, ou até mesmo, fora da língua articulada ao Outro.  Uma vida de gozo que escaparia da alienação significante, uma vida fora do par significante, daí sua preocupação em encontrar uma outra língua e de encontrar a liberdade. É o perigo que espreita os adolescentes.  Eles pensam que a verdadeira vida deve se realizar em outro lugar, fora de toda restrição, até mesmo fora do discurso que faça laço social, isto é, que fascina muito os adolescentes que apresentam psicoses ordinárias.

 

Assim, de maneira paradoxal, devemos lhes mostrar que a verdadeira vida é aquela que se encontra na vida do espírito, na alegria do saber que recebemos na escola, que há prazer em aprender e que isto alivia a dor da existência. A escola deve então ensinar como saber fazer aí com a vida e, para isto, os professors devem se colocar em cena e demonstrar como o saber transformou suas vidas. Dou exemplos em meu livro. Eles devem transmitir um saber autêntico e não um saber programado que serve somente à avaliação.

 

CPM: Qual o lugar e o laço entre este trabalho La vraie vie à l’école e sua experiência como analisante?

 

PL:  Respondo esta pergunta no livro Vie éprise de parole, onde falo da minha relação à língua e do meu lugar de criança como cadáver vivo, identificado ao cadáver de minha irmã morta de 3 anos, quando eu tinha 5 anos. Situava-me no lugar de falo morto. Foi uma intervenção do meu analista – “há um cadáver vivo no armário” – que me abriu a porta da língua viva, que transformou minha relação com a língua e com o saber.

 

É isto que orienta minha relação com a língua e o pequeno impulso que posso dar em relação à língua de alguns. É preciso instalar lugares para escutar e oferecer laços para que cada um possa criar sua língua, enquanto ela dá vida ao falar para um outro.